Nosso Pai, Nosso Rei, salve-nos de nós mesmos
Nos grandes feriados [Rosh Hashaná e Iom Kipur], quando eu era pequeno, os judeus vestiam roupas desconfortáveis, para se fazerem perguntas desconfortáveis.
Algumas coisas não mudam.
Nos Grandes Feriados – Rosh Hashaná e Iom Kipur – quando eu era pequeno, os mais velhos, quando não conversavam sobre o seu país, falavam sobre a Terra Santa e a paz. E como não viveriam para ver nenhuma delas.
Enquanto isto, o rabino falava sobre o Livro da Vida de Deus, no qual todos nós aparecíamos, cada qual com o que fizemos no ano anterior, o que fizemos de errado e o que deixamos de fazer. No Rosh Hashaná Deus abriria o livro para revisar e no fim dos Dia do Julgamento, Iom Kipur, o nosso veredito para o ano novo seria lançado – e o livro ficaria fechado até o próximo ano.
Pensando no Livro da Vida, eu costumava me perguntar em que se transfomou o que deixamos de fazer. Neste ano, na sexta-feira antes do Rosh Hashaná, eu descobri. Graças às Nações Unidas. Graças ao debate sobre a Palestina.
Tudo que se deixa de fazer torna-se uma mentira.
Quem diria que o que é verdade no dia-a-dia é também verdadeiro na ONU? Quem imaginaria que o que deixei de ser feito quando era pequeno, ainda estaria por fazer, muitos anos depois?
Quando eu era um menino e não conseguia tirar mais nada dos Dias Santos e não havia futebol no rádio, eu abria um livro. Um deles começava com uma observação de Pablo Picasso. “A arte”- dizia ele – “é uma mentira que nos faz perceber a verdade”.
Rezamos para o mesmo Deus – todos nós – nós e os palestinos, que são nossos primos e vizinhos. Oramos para o Senhor por uma segunda chance. Estamos frustrados e paralisados. Não podemos nos livrar do nosso pesar e do nosso fracasso e da nossa culpa e do nosso instinto de culpar. Estamos arrasados pela política e pelos maus politicos. Estamos arrasados pela religião distorcida e por clérigos maus. Estamos arrasados por nossa crença em que só do nosso lado as pessoas enxergam com clareza e falam toda a verdade.
Quando eu era pequeno, minha parte predileta dos Grandes Feriados era cantar com os mais velhos a oração chamada Avinu Malkeinu. Em parte, porque parecia haver uma verdade única dentro dela. “Pelo Seu próprio bem, Senhor, se não for pelo nosso” – os velhos cantavam – “perdoe-nos, tire-nos disto, salve-nos de nós mesmos”.
Avínu Malkêinu, Nosso Pai, Nosso Rei – essa gente cujos próprios pais já tinham morrido há muito tempo, essas pessoas que nunca depositaram fé nos nobres que uma vez os tinham dominado, essas pessoas cujas próprias vozes já estavam se dissipaindo. Avínu Malkêinu, shmá kolêinu, chuss v’rachêm alêinu. Ouça a nossa voz. Ajude-nos a ouvir as vozes dos outros cujas histórias e tragédias são diferentes. Ajude-os a nos ouvir.
Ouça nossa verdadeira voz, aquela que vem do coração. Avínu Malkêinu, tenha piedade do que fazemos e somos e tentamos e fracassamos, e ao que nos damos crédito demais. Dê-nos permissão para começar de novo. Dê-nos, neste dia, um tempo.
Avínu Malkêinu, chanêinu v’anêinu, ki ein lánu ma’assim. Avinu Malkêinu. Consiga um acordo com o qual possamos viver. Avínu Malkêinu, ajude-nos a encontrar, por fim, uma resposta que possamos usar, uma saída disto, mesmo que não tenhamos nada para mostrar de todas as nossas tentativas. Porque não temos nada para mostrar de todas as nossas tentativas.
Deus que não erra, Deus a quem nós consistentemente decepcionamos, Deus cuja terra sempre está menor do que o arranjo que sentimos que de alguma forma vestiria as feridas de nossas almas – vista as feridas das nossas almas.
Deus que criou as diferenças humanas e as desavenças humanas e os compromissos humanos, ajude-nos a escrever um novo documento para cada um de nós. Um Livro da Vida.
Mostre-nos o Seu rosto nas faces das pessoas às quais achamos mais fácil não olhar e chamamos de inimigos. Mostre a eles o Seu rosto no nosso. Pela mesma razão. Mostre-nos o que menos queremos ver: que somos iguais.
Avínu Malkêinu, assêh imánu tz’daka va’chessed, v’hoshiêinu. Falamos grande, mas somos, todos nós, pequenos e falíveis e feridos. Seja gentil. Ensina-nos, finalmente, a nos cansarmos das nossas próprias mentiras. Ensine-nos a acabar o que começamos. Este ano, em Jerusalém, mostre-nos como o Ano Novo realmente deve ser.
Avínu Malkêinu, hoshiêinu. Salve-nos de nós mesmos.
[ Publicado no Haaretz em 25|09|2011 e traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR ]