Inventamos o Tempo. E então o dividimos, atribuindo nomes a esses pedaços que não têm nome próprio nem essência. Milênios que carregam histórias que comentam fatos que geram dogmas que definem o perfil dos habitantes desse templo que se chama Vida, e no qual a Morte é a única deidade.
Redigimos e planejamos os nossos projetos comuns – a maioria deles bem menos humanos do que o simples olhar de um cão ao seu dono – pedindo e exigindo tudo para nós e nada para vós. E dentro dessa bomba de Tempo tecemos antagonismos, desenhamos prepotências, vomitamos guerras e guerrilhas, parimos discursos que matam palavra a palavra, e tudo isso em nome do pai e do filho e do espírito santo e de elokim barukh hu e de Alá uakhbar, e de tantos nomes que inventamos para apelidar um mesmo dogma, que para isso é que nos hipnotizam desde seus púlpitos, desde as suas consignas, desde as suas mentiras bem vestidas, com suas armadilhas divinas, suas verves cativantes, suas verbas sem fronteiras.
E quando 5.772 anos dessa história que circula em nossas veias dizem tanto e tão pouco, e nada de nada do muito e do nada que aprendemos, é hora de regenerar um imenso desejo de futuro ao contemplar o imenso vazio do presente.
Sim, falo do Estado de Israel, a pátria genética de um sonho milenário e que hoje jaz – doente terminal de si mesmo – vítima de um precipício ético que ao contrário do anteontem em que desertos viravam jardins, faz que hoje projetos humanistas se transformem em fracassos políticos; que realidades possíveis não passem de ser pura fantasia; que sonhos de Paz sucumbam perante pesadelos de guerra.
De ano novo em ano novo retrocedemos, renunciando a direitos conquistados, desprezando os que pensam diferente, demolindo pontes.
Sim, e a despeito de tudo, nós, que somos a sementinha sã, o óvulo que espera ser fecundado pelo melhor do Humanismo e não pelo mais veloz maratonista do fanatismo, devemos somar esforços e lutar, com unhas e palavras, com dentes e discursos, com raiva e serenidade, contra aqueles que sequestraram o passado que corre nas nossas veias e em nome de falsas premissas, de manuseados dogmas, tentam transformar a herança que é de todos, em instrumento particular de destruição.
Sim, Rosh Hashaná nos exige um compromisso de respeitar os valores herdados geração trás geração, shtetl após shtetl, pioneiro após pioneiro, impedindo que o sonho irrealizável de Eretz Israel hagdolá (o Grande Israel) acabe por destruir tudo que foi construido: uma pátria fértil, um chão comum, o império do Direito sobre os dogmas, e do Parlamento sobre todas as coisas.
Sei que vocês, todos, amigos queridos, companheiros de viagem, são feitos desse material indelével ao efeito corrosivo que hoje está deslegitimando o Estado de Israel, e por analogia, disseminando um neoantissemitismo que – se não lhe pusermos um freio – acabará por ressuscitar in totum o fantasma do nazismo.
Pessoalmente não sou nada otimista, mas espero e desejo estar errado. O importante hoje, agora, quando o novo ano toca a campainha da nossa vida, do nosso povo, da nossa História, é desejar ardentemente e fazer o impossível acontecer para que, no jantar de Rosh hashaná de 5.773, esta mensagem pareça saída de um conto de terror, e mais nada.
Que não nos enganemos. Cada um de nós é o Estado de Israel redivivo.
Shaná tová umetuká!
Bruno Kampel, da Suécia