A esta mesa sentemo-nos, pois.
Somos muitos, nesta noite.
Somos os que estão e os que já foram: somos os pais e os filhos, e somos também os nossos antepassados. Somos um povo inteiro, em torno a esta mesa. Aqui estamos, para celebrar, aqui estamos para dar testemunho.
Dar testemunho é a missão maior do judaísmo. Dar testemunho é distinguir entre a luz e as trevas, entre o justo e o injusto. É relembrar os tempos que passaram para que deles se extraia o presente a sua lição.
Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa.
Este é o pão da pobreza que comeram
os nossos antepassados na terra do Egito.
Quem tiver fome – e muitos são os que têm fome,
neste mundo em que vivemos – que venha e coma.
Quem estiver necessitado –
e muitos são os que amargam necessidades,
neste mundo em que vivemos – que venha e celebre conosco o Pessach.
É o legado ético de nosso povo,
a mensagem contida neste simples alimento,
neste pão ázimo que sustentou no deserto,
e o que o vem sustentando ao longo das gerações.
É preciso ser justo e solidário,
é preciso amparar o fraco e ajudar o desvalido.
O deserto que hoje temos de atravessar
não é uma extensão de areia estéril,
calcinada pelo sol implacável.
É o deserto da desconfiança, da hostilidade,
da alienação de seres humanos.
Para esta travessia
temos de nos munir das reservas morais
que o judaísmo acumulou,
das poucas e simples verdades
que constituem a sabedoria do povo.
Ama teu próximo como a ti mesmo.
Reparte com ele teu pão.
Convida-o para tua mesa.
Ajuda-o a atravessar o deserto de sua existência.
Tu me perguntas, meu filho,
porque é diferente esta noite de todas as noites[1].
Porque todas as noites comemos chamets e matzá,
e esta noite somente matzá.
Porque todas as noites comemos verduras diversas,
e esta noite somente maror.
Porque molhamos os alimentos duas vezes.
Porque comemos reclinados.
Eu te agradeço, meu filho.
Agradeço-te por perguntares.
Porque, se me perguntas, não posso esquecer:
se indagas, não posso ficar calado.
Por tua voz inocente, meu filho, fala a nossa consciência.
Tua voz me conduz à verdade.
Por que esta noite é diferente de todas as noites, meu filhos?
Porque esta noite lembramos.
Lembramos os que foram escravos no Egito,
aqueles sobre cujo dorso estalava o látego do Faraó.
Lembramos a fome,
o cansaço, o suor, o sangue, as lágrimas.
Lembramos o desamparo dos oprimidos
diante da arrogância dos poderoso.
Lembramos com alívio: é o passado.
Lembramos com tristeza: é o presente.
Ainda existem Faraós.
Ainda existem escravos.
Os Faraós modernos já não constróem pirâmides,
mas sim estruturas de poder e impérios financeiros.
Os Faraós modernos já não usam apenas o látego:
submetem corações e mentes mediante técnicas sofisticadas.
Seus escravos se contam aos milhões, neste mundo em que vivemos.
São os negros privados de seus direitos, na África do Sul;
os poetas que, em Cuba, não podem publicar seus versos;
os imigrantes a quem, na Europa,
está reversado o trabalho pesa e a hostilidade dos grupos fascistas;
os refuseniks soviéticos que clamam por sua identidade;
as mulheres e os jovens fanatizados pelo regime do Aiatolá,
os prisioneiros políticos do Chile,
os famélicos do Sahel e do nordeste brasileiro,
as populações indígenas lentamente exterminadas em tantos lugares;
os operários explorados e os camponeses sem terra.
Para estes, ainda não chegou o dia da travessia.
Estes ainda não encontraram a sua Terra Prometida.
Para eles, a vida ainda é amarga como o maror.
É a eles também que lembramos nesta noite, meu filho.
Com eles repartirmos, em imaginação, o nosso pedaço de matzá.
Não sejas como o ingênuo, que ignora os dramas de seu mundo.
Não sejas como o perverso, que os conhece,
mas nada faz para mudar a situação.
Pergunta, meu filho, pergunta tudo o que queres saber
– a dúvida é o caminho para o conhecimento.
Mas quando te tornares sábio,
procura usar a tua sabedoria em benefício dos outros.
Reparte-a, como hoje repartirmos nossa matzá.
Segue o conselho de nossos sábios,
e lembra a saída do Egito,
não só na noite de Pessach,
mas todos os dias de tua vida.
Falemos deste povo, então.
Falemos dos judeus:
pequeno grupo humano que viria
a desempenhar um grande papel na história da humanidade.
Um povo inquieto.
Um povo que não buscava o repouso,
nem para si, nem para os outros povos.
Há cerca de 4000 anos a trajetória deste povo teve início
– quando Abraão deixou o seu lugar de origem,
na região entre o Tigre e o Eufrates, para ir a Canaan.
Pois disse-lhe o Senhor:
“Sai de tua terra, e da terra de tua gente, e da casa de teu pai,
e vem para a terra que eu te mostrarei;
Eu farei de ti uma grande nação,
e te abençoarei, e farei grande teu nome;e serás uma benção;
E eu abençoarei quem te abençoar,
e amaldiçoarei quem te amaldiçoar;
e em ti serão todos os povos da terra abençoados.” (Gênesis 12, 1-3)
Mas não cessou com a chegada a Cannan e peregrinação judaica.
Povo nômade, os hebreus deslocavam-se constantemente.
E por isso não construíram grandes cidades,
nem monumentos comparáveis às pirâmides.
O que os hebreus levavam consigo,
em suas migrações, era a sua tradição,
era a palavra do Senhor, da qual eram guardiães;
a palavra que deu origem ao livro sagrado, a Bíblia,
seu grande legado para a humanidade [2].
De Abraão nasceu Isaac, de Isaac Jacob, e de Jacob, José e seus irmãos.
José, o vidente; José, que se tornou vizir do Faraó.
Com José foram Ter seus ingratos irmãos,
quando a fome assaltou as terras de Canaan.
Na terra de Goshen foram viver,
e ali se multiplicaram como as estrelas no céu
e os grãos de areia das praias do mar.
Mas então nuvens negras surgem neste céu tranqüilo.
Um novo Faraó reina no Egito;
ele teme que os filhos de Israel,
agora numerosos, se rebelem contra ele.
E decreta: toda criança judia, de sexo masculino,
deve ser morta ao nascer.
Mas um menino escapa.
O destino poupa-o para ser o libertador de seu povo:
é Moisés, que a filha do Faraó
salva das águas para dele fazer um príncipe.
Moisés, Príncipe do Egito, Moisés,
poderoso entre os poderosos.
Há um instante na vida de cada homem
em que ele se vê diante de seu destino.
Um instante em que lhe é dado fazer a escolha transcendente,
a escolha que será o divisor de águas de sua existência.
Este instante chegou para Moisés.
Diante do feitor que espancava cruelmente o escravo judeu,
ele não hesitou:
tomou o lado do fraco contra o forte,
do oprimido contra o opressor.
Jogou sua sorte com a sorte pobre, desprotegido povo.
E então que D’us lhe fala.
Não antes do gesto de coragem, mas depois:
é como se a divindade só se pudesse revelar
depois que Moisés descobriu a si mesmo.
Este é o deus de Abraão, o Deus de Isaac, o deus de Jacob;
o D’us que fala da sarça ardente,
como a indicar que é preciso manter viva a chama da fé e da dignidade.
Este D’us estende Sua mão para Moisés,
e acena-lhe com a promessa que desde então tem animado a todos os povos: terra e liberdade, liberdade e terra.
A doce liberdade, a fértil terra da qual fluiria o leite e o mel.
E então, acompanhado de Arão, que por ele falava,
Moisés foi ter com o Faraó e disse:
Deixa meu povo sair.
Deixa meu povo sair.
Era a primeira vez que ecoava esta frase no reduto do poder,
mas não seria a última.
Nas masmorras dos romanos: deixa meu povo sair.
Nos guetos medievais: deixa meu povo sair.
Nas aldeias ameaçadas pelos pogroms: deixa meu povo sair.
Na Alemanha nazista: deixa meu povo sair.
Na Rússia, na Síria, na Etiópia: deixa meu povo sair.
Este apelo desesperado não encontra eco.
A insensibilidade dos poderosos torna-os surdos e cegos.
O sofrimento dos oprimidos clama aos céus.
E os céus respondem com fúria.
Mas a divindade poupa a seu povo o ódio.
Minha é a vingança, diz o Senhor.
Só Deus pode dosar o castigo do ímpio,
de maneira a não pagar ingustiça com injustiça
São as forças da natureza que Adonai mobiliza para punir os pecadores; como a sugerir a própria natureza se revolta contra a iniqüidade E vêm as pragas.
As águas se transformam em sangue.
Feras atacam os homens.
Gafanhotos devoram as colheitas.
Pestilências ceifam vidas.
O granizo cai sobre as plantações.
As trevas reinam sobre a Terra.
Castigos terríveis, mas que nos soam estranhamente familiares.
Pois hoje, como ontem,
seres humanos fazem da natureza palco de luta contra outros seres humanos.
A casa do homem é uma casa dividida.
Punhos se erguem ameaçadores, vozes bradam iradas.
A ganância e a especulação sobrepujam a solidariedade e a compensação.
E de novo as pragas nos ameaçam.
As águas já não se transformam em sangue,
mas nos rios poluídos e nos mares envenenados os peixes bóiam mortos.
As pragas que devoravam as colheitas foram repelidas,
mas ficam nos frutos da terra os resíduos dos venenos usados.
Indiscriminadamente.
As feras que os homens temiam hoje são pobres criaturas em extinção.
Mas o tigre com dentes atômicos faz ouvir o seu rugido,
os submarinos nucleares percorrem os mares como sinistros Leviatãs.
Enquanto enormes contingentes humanos vegetam na mais espantosa miséria,
há nas metrópoles uma minoria que busca no consumismo desenfreado,
no álcool e na droga, a satisfação que jamais encontra.
As trevas reinam sobre a Terra,
mas não são as trevas resultantes de um sol eclipsado;
são, isto sim, as trevas do obscurantismo,
que alimenta o fanatismo e arma o braço do terrorista.
As pestilências de outrora deram lugar às doenças da civilização,
igualmente mortíferas; e de outra parte,
se perpetuam entre aqueles que não têm acesso às conquistas da medicina.
Dir-se-ia que os homens não aprendem.
Que a escalada do erro – e do castigo – não tem fim.
A paciência do Senhor chega a seu término.
Decide dar ao faraó a prova definitiva de Seu poder:
os primogênitos serão exterminados.
Mas pelas portas das casas judaicas,
untadas com o sangue do animal sacrificado,
a ira do Senhor passará sem se deter
É a Páscoa: a passagem.
Mais uma vez Deus avoca a si o castigo.
Pois somente a um desígnio insondável tão espantosa punição pode ser
atribuída.
E o Faraó cede.
Por fim, o Faraó cede.
Podeis partir, ele diz a Moisés e Arão.
E os judeus partem.
Às pressas: o pão que levam sequer pode fermentar.
É da matzá que eles agora comerão.
E há razão para a pressa.
Os poderosos não costumam honrar compromissos.
Promessas são esquecidas, tratados são rasgados.
E os exércitos do Faraó vão no encalço dos fugitivos,
surpreendem-nos às margens do Mar Vermelho.
Mais uma vez Deus protege seu povo.
Mais uma vez um prodígio da natureza dá testemunho da aliança sagrada.
As águas do mar se abrem diante dos hebreus
e se fecham sobre as armadas do Faraó. É o castigo definitivo.
É um castigo, mas não é um ato de ódio.
Pois, conta o Talmud,
depois que os judeus atravessaram o Mar Vermelho,
entoaram um hino de agradecimento ao senhor –
que Ele recusou dizendo:
“Não cantareis enquanto meus outros filhos se afogam”.
A violência?
Sim, é permitida, como resposta à violência.
Mas não é permitido a ninguém alegrar-se na violência.
Ao fim e ao cabo, somos todos irmãos.
Mesmo quando um destino trágico nos coloca face a face, armas na mão.
Uma lição que vale para o Oriente Médio de nossos dias.
Esta é a narrativa do Êxodo.
Dela, o que é lenda? O que é História?
Impossível saber.
Na poeira do tempo confunde-se fantasia e realidade, fato e imaginação.
Não importa, porém.
Não é o fato histórico que conta, mas sim a lição que dele se extrai.
Como diz o Seder:
“Em toda geração deve o homem considerar como se tivesse saído do Egito”.
Neste, como está sintetizada toda a gama de possibilidades que a tradição,
mais que o frio relato dos acontecimentos, proporciona aos seres humanos.
A possibilidade de evocarmos, por uma noite que seja, o terror da
escravidão.
A possibilidade de vivermos, por uma noite que seja, a glória da libertação.
Como se é suficiente. Uma noite é suficiente.
Foi numa noite que Jacob lutou contra o anjo,
e, vencendo-o, tornou-se Israel, legando-nos esta lição:
que um povo tem de lutar por sua identidade,
ainda que desafiando os mensageiros do Senhor.
Foi numa noite que Daniel foi salvo da cova dos leões,
mostrando que o justo nada tem a temer, nem mesmo as feras selvagens.
Foi numa noite que o perverso Haman foi condenado e o povo judeu foi salvo.
Porque a justiça brilha na escuridão da noite como a luz do dia.
Sentem-nos, pois, em torno à mesa nesta noite,
e tomemos o vinho de Pessach, doce como a liberdade.
E falemos da doçura de ser livres; falemos principalmente aos jovens.
Sigamos o que diz o nosso Seder: “contarás a teu filho”.
Porque a mensagem de Pessach é dirigida sobretudo às crianças e aos jovens.
Como sentinelas na noite, temos de velar por eles,
velar para que recebam a mensagem de liberdade.
Pessach é a festa das gerações.
É a festa em que os pais falam a seus filhos.
E é por isso que a festa do Pessach é celebrada em família.
Não num templo, mas em casa.
Em torno a uma mesa, de modo que as pessoas se possam olhar,
de modo que o filho possa ouvir do pai o simples, eloqüente relato.
A saga de um pequeno povo de incultos nômades
que ensinou a um poderoso império uma lição de justiça e de dignidade.
Esta é a lição que os judeus vem repetindo ao longo de muitos e muitos séculos.
Nos dias esplendorosos do Templo de Jerusalém
e nos amargos tempos da dispersão.
No Galut e agora, em Israel.
Os prodígios da saída do Egito
ficaram reverberando pelos séculos afora.
Pois tantos foram, e tão notáveis,
que evocá-los leva-nos ao limite do suportável: daienu,
diz o Seder: bastar-nos-ia.
Se nos tirasse do Egito e não os justificasse, bastar-nos-ia.
Se não abrisse o mar, se não nos desse o maná,
se não nos desse o Sábado,se não nos desse a Torá – bastar-nos-ia.
O primeiro agradecimento ao Senhor é pela liberdade:
se nos tirasse do Egito, bastar-nos-ia.
Todo o resto é conseqüência.
O maná, a Lei, a Terra prometida, tudo é decorrência da libertação do povo.
Falemos da luta pela liberdade.
Falemos do gueto de Varsóvia.
No começo da Segunda Guerra,
Varsóvia era um centro judaico de primeira grandeza,
célebre por suas ieshivot, seu teatro ídiche,
seus centros culturais, seus artistas e escritores.
Mas então veio a invasão nazista,
e com ela a fria deliberação de transformar
a cidade num portal para o inferno.
Quase meio milhão de pessoas
foram confinadas na minúscula área do gueto, cercado e isolado.
Logo a fome, a falta de higiene,
as doenças começaram a fazer suas vítimas.
A um ritmo que não era satisfatório para os nazis:
em julho de 1942 começaram as deportações para os campos de Treblinka, Auschwitz, Maidanek e Belsen.
Foi então que as organizações juvenis adotaram uma decisão:
a de resistir até o fim.
Armas e munição começaram a ser contrabandeadas para o gueto…
Na madrugada de 19 de abril de 1943 um tiro ecoou na rua Nalewki.
Era o sinal para a rebelião,
que oporia 40.000 remanescentes da população judaica,
lutadores famintos e mal armados,
contra a poderosa máquina de guerra nazista.
Durante semanas os combatentes resistiram.
O comandante do levante, Mordechai Anielewicz
e seus companheiros, morreram lutando no quartel-general
da Rua Mila, 18. Ninguém se rendeu.
Não podemos falar em liberdade sem falar no Gueto de Varsóvia.
Não podemos falar em liberdade enquanto outros guetos existirem em nosso mundo.
Agora, meu filho, vamos colocar vinho neste copo, e vamos abrir a porta.
Perguntas se estamos esperando alguém.
Sim, esperamos alguém.
Esperamos Eliahu Hanavi, o Profeta Elias, o precursor do Messias.
É um hóspede ilustre, aguardado há ‘séculos.
Até hoje não veio, e não é certo que nos visite esta noite.
Não tem importância.
O importante é que nossa porta esteja aberta.
Para o profeta ou para o nosso vizinho;
para o Messias ou para o pobre que nos vem pedir um pouco de comida.
Que espiem, os de fora, por estar a porta aberta.
Que vejam uma família reunida em torno à mesa, celebrando.
Que constatem: eles nada têm a esconder.
Eles não praticam rituais secretos, eles não são uma seita misteriosa.
São gente como a gente.
Os cristãos, os judeus, os muçulmanos, os budistas,
somos todos iguais.
Nossas festas têm nomes diferentes, ocorrem em datas diferentes,
mas no fundo, une-nos a alegria da celebração.
Eu sei, meu filho, que nem todos pensam assim.
E é por isso que a porta precisa ficar aberta.
Para que o profeta Elias venha,
anunciando a paz entre os povos.
A travessia do Mar Vermelho não pôs fim aos infortúnios do povo judeu.
Muito teriam eles de vagar, ainda, na desolação do deserto.
Foi uma dura prova, a que nem sempre resistiram.
Quando mais forte se tornou o assédio da fome e a sede,
foram queixar-se a Moisés: tu nos trouxeste ao deserto,
disseram, para que aqui morramos à míngua.
E em seu desespero,
chegavam a lembrar com saudade os tempos do Egito:
éramos escravos, mas tínhamos o que comer.
Como Esaú,
estavam dispostos a trocar sua dignidade por um prato de comida.
Deus não os castigou.
Ao contrário: deu-lhes o manjar do céu.
O Maná, e as tábuas da lei.
Nesta ordem: o alimento e depois o mandamento.
A nutrição para o corpo, seguida do dever espiritual.
E esta é mais uma lição que o judaísmo,
na sua sóbria e milenar sabedoria,
nos transmite: não se pode exigir deveres morais de quem tem fome.
Os direitos humanos começam pelo simples, e pelo elementar.
Os direitos do homem começam por um pedaço de pão, ázimo ou não.
Vejo, meu filho, que encontras o afikoman que escondi [3].
Muito bem, tens direito a uma recompensa.
O que queres? É uma história, que queres?
Muito bem.
Deixa que te conte então uma história muito curta.
É a história de um homem e de sua mala.
O homem já não vive; a mala, que eu saiba, já não existe.
Mas a mala estava com a família desse homem há muitas gerações.
Nesta mala ele colocou todas suas coisas quando, jovem ainda,
deixou sua casa, numa aldeia da Rússia czarista, e foi para a Polônia,
onde esperava viver.
Lá ficou alguns anos, até que teve de fugir de novo,
por causa da ameaça de bandos anti-semitas.
Pegou a mala e foi para a Alemanha, a civilizada Alemanha,
pensando encontrar a paz.
Mas o ano era 1939…
Conseguiu fugir para o Brasil, sempre com sua mala.
Trabalhou duro, no comércio;
conseguiu juntar alguma coisa e
já estava até esquecendo as privações que passara quando,
por ocasião dos distúrbios de rua
que se seguiram ao suicídio de Getúlio Vargas,
sua loja foi depredada.
Ficou tão assustado, que decidiu:
daí em diante, nunca mais desmanchou a mala.
Estava sempre pronto para partir,
a qualquer hora do dia e da noite.
Várias vezes pensou que o momento tinha chegado:
quando Jânio renunciou, em 1961;
quando houve o golpe militar, em 1964,
e os policiais prenderam os filhos de seu vizinho.
Não chegou a ser necessário.
Aparentemente, ele era considerado um homenzinho inofensivo;
ninguém se preocupava com ele.
No entanto, continuava preparado.
Para o Êxodo. Como seus antepassados no Egito,
que constantemente evocava.
Uma noite um ladrão entrou na casa e roubou-lhe a mala.
E de repente, ele se deu conta: já não podia mais fugir.
E assim ficou.
Até que uma noite o Anjo da Morte veio chamá-lo;
e as pessoas que estavam a seu lado,
no quarto do hospital,
ouviram-no murmurar baixinho:
Eu não fugi. Eu estou aqui.
Nós estamos aqui.
E podemos saborear em paz nosso manjar,
nosso afikoman.
Nós o merecemos, como tudo mereceste.
Tu, porque o encontraste;
nós, porque nos encontramos.
Chag Sameach [4] , meu filho.
Notas:
[1] O autor faz referência à música “ma nishtaná”, que o mais jovem presente deve cantar no jantar de pessach, na qual ela pergunta porque naquela noite não se come nada fermentado, se comem ervas amargas, se molha a comida em salmoura e se deve recostar as costas nas cadeiras.
[2] Diz-se que o bem mais precioso para um judeu é o estudo, pois possivelmente não poderá levar nada além de sua própria cabeça consigo quando precisar fugir na próxima onda de antissemitismo.
[3] Espécie de gincana, para manter as crianças mais novas acordadas e atentas até o fim da cerimônia. São premiadas as crianças que, ao final da cerimônia, encontrarem um pedaço de matzá (afikoman) que foi escondido pelo anfitrião.
[4] “Felizes Festas”.
Moacyr Scliar z”L foi membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 2011, deixando-nos uma vasta obra, riquíssima em mensagens de brasilidade, judaísmo, liberdade e humanismo.
Esta Hagadá – narrativa da História do Êxodo para ser lida em família no Pessach – foi escrita por Moacyr Scliar em março de 1988, sob a atmosfera pesada da ditadura militar.
Foi publicada em março de 1988 pela antiga Revista Shalom dirigida por Patrícia Finzi.
É parte do legado humanista e imortal que Moacyr deixou para as futuras gerações.