Os povos do mundo árabe têm sofrido nas últimas décadas sob a dominação de governos autocráticos impiedosos e opressores que roubaram suas riquezas e perseguiram qualquer voz dissidente. E o ocidente aceitou, por conveniência ou por interesses comerciais, essa situação degradante que fere os princípios básicos dos direitos e da dignidade humanos. A única alternativa que parecia existir era o regime do islamismo extremista, do tipo da teocracia iraniana.
O cenário mudou radicalmente quando um jovem tunisiano vendedor de frutas se auto-imolou em um ato de desespero após a apreensão de sua barraca pela polícia local. O movimento de protesto que desencadeou foi como um choque de abalo sísmico que atingiu toda a região, desde o Atlântico até o Golfo da Pérsia. Milhões de súditos passivos saíram às ruas para manifestar seus protestos contra os governos autoritários e clamar por reformas democráticas. A relativa facilidade com que as populações revoltadas derrubaram as ditaduras na Tunísia e no Egito não deve iludir os observadores e analistas políticos no mundo ocidental. Nos dois países, a recusa das forças armadas de atirar na população inviabilizaram a resistência dos governos, que foram obrigados a ceder às reivindicações por liberdade e democracia.
A onda de protestos que continua a percorrer o mundo árabe estancou na Líbia, governada há quarenta anos pelo coronel Muammar Qadaffi, seus filhos e um grupo restrito de oligarcas, beneficiados pelo regime que conseguiu acumular uma imensa fortuna, estimada em centenas de bilhões de dólares, boa parte dos quais está nas mãos da família do ditador e depositada em contas bancárias e paraísos fiscais no exterior. São esses recursos apropriados ilegalmente que permitiram o recrutamento, a compra de armas e a manutenção de milícias de mercenários vindos de países africanos. Estão dispostos ao redor da capital Trípoli, com a incumbência de defender o governo ditatorial, semeando o pânico com atos da maior brutalidade entre a população civil e também entre as forças da oposição.
Enquanto combates se travam pela posse de cidades-chave controladoras da rede de oleodutos que abastecem os países europeus, surgem a cada dia mais evidências da resistência dos pilotos da força aérea em acatar as ordens de lançar bombas sobre os redutos dos oposicionistas que avançam de Benghazi, segunda maior cidade do país, em direção à capital, Trípoli. Ao mesmo tempo em que se travam os combates que, segundo diversas fontes, teriam causado milhares de vítimas, surge um crescente consenso entre os países ocidentais e nos órgãos internacionais de acusar Qadaffi de genocídio e de convocá-lo a comparecer perante o TPI – Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, Holanda. O ditador, confiante no poder de fogo de sua guarda pretoriana, não parece disposto a ceder às pressões populares e ameaça com uma guerra civil na qual “arrancará os olhos” de seus adversários. A movimentação de unidades navais da quinta frota de guerra dos EUA, estacionada no Bahrein, bem como as ameaças de fechamento do espaço aéreo sobre a Líbia, impedindo inclusive os vôos de aeronaves civis, não parecem intimidar o ditador, disposto a resistir até o fim.
Diferentemente do Egito, onde a decisão das forças armadas de não atirar no povo inclinou a balança a favor da população revoltada, a lealdade a Qadaffi dos soldados mercenários estrangeiros, portanto sem vínculos com o povo da Líbia, ameaça prolongar o conflito, com danos materiais e vítimas humanas incontáveis.
A indecisão e a demora dos combates na Líbia têm repercussão nos outros países do mundo árabe. O ditador do Iêmen, Ali A. Saleh, há 32 anos no poder, procura conter os protestos da população com promessas de não candidatar-se mais nas eleições de 2013. Essas promessas não conseguem conter os milhares de manifestantes nas principais cidades do país, reforçadas agora pela adesão de chefes tribais que até então apoiaram o governo. No minúsculo reino de Bahrein, o rei H. al Khalifa, sunita, encontra-se sob pressão da maioria xiita da população, clamando por reformas. Movimentos de protestos surgiram também no Omã, país de importância estratégica por sua localização na entrada do Golfo da Pérsia, pelo qual passa grande quantidade de petróleo em direção ao mundo ocidental. Protestos surgiram também no Sudão cujo presidente Omar al Bashir é réu no TPI, acusado de genocídio na região de Darfour, hoje independente.
Um caso aparte é o reino da Arábia Saudita, cujo rei Abdullah, de 86 anos, voltou às pressas de um tratamento médico dos EUA, anunciando pacotes de bondades, ou seja, a distribuição de 36 bilhões de dólares que beneficiariam a todas as famílias do reino. Outras manifestações têm se repetido na Argélia, onde o governo revogou o estado de emergência em vigor desde 1992; na Jordânia, temporariamente acalmadas por tímidas reformas políticas do governo e no Iraque, onde a população sofrida após sete anos de invasão norte-americana, ainda está atolada nos destroços causados pelos bombardeios aéreos que arrasaram a infra-instrutora de água, saneamento, eletricidade e de transporte, além de sofrer de desemprego de milhões de jovens.
Assim, permanece o diagnóstico do mundo árabe em chamas e à procura de uma nova organização social e política que garanta a seus cidadãos os direitos humanos inalienáveis de liberdade e democracia. Entretanto, é impossível ignorar que após décadas de governos autocráticos que depredaram os recursos materiais e se apropriaram das receitas financeiras provindas de exportações, a maioria das populações dessa imensa região do globo encontra-se pauperizada, doente, desempregada, analfabeta e culturalmente atrasada, todos os fatores adversos a uma reconstrução rápida, capaz de assegurar o bem estar e a paz para todos.
Os países ricos do ocidente que dependem, para o funcionamento de suas economias, do fluxo ininterrupto de petróleo, devem abandonar sua imagem míope e enviesada dessas sociedades, o que os levou a apoiar e a vender armas aos tiranos que oprimiram seus povos. Para iniciar um processo de reconstrução de tipo Plano Marshall, tão bem sucedido na Europa Ocidental após o fim da segunda guerra mundial, será necessária a mobilização de todos os países ricos, em seu próprio interesse.
Antes, porém, é preciso dar fim ao conflito na Líbia, por todos os meios diplomáticos, comerciais e financeiros, menos uma intervenção armada que ressuscitaria o espectro da colonização, tão odiada no mundo árabe. Uma rápida solução do conflito na Líbia, além de salvar a estrutura produtiva de uma destruição fatal, estancará também a fuga de centenas de milhares de trabalhadores estrangeiros em direção ao Egito e a Tunísia. A produção de petróleo, principal receita da economia do país, já diminuiu e um terço da população líbia está desempregada, o que aumenta seu ressentimento contra as companhias estrangeiras, particularmente as petrolíferas, que auferiram polpudos lucros enquanto apoiaram o regime ditatorial. Em alguns lugares, trabalhadores entraram em greve e ameaçam destruir os poços de petróleo.
O ponto crucial para o desfecho da crise e o fim da matança de milhares de rebeldes e de civis é o comportamento das milícias de mercenários recrutadas por Qadaffi nos países africanos vizinhos e das quais é improvável esperar atos de solidariedade para com a população. Por outro lado, as forças armadas regulares, desprestigiadas e mal armadas pelo ditador, que sempre receou um golpe do tipo por ele perpetrado contra o rei Idris, parecem inclinar-se a favor dos rebeldes e, assim, reforçar a frente unida contra o ditador. Parece desnecessário frisar que a vitória da população encorajará os movimentos de protestos e clamor por reformas nos outros países árabes.
Henrique Rattner, membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA, é Professor da FEA (USP), IPT, membro da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças (ABDL) e colunista da Revista Espaço Acadêmico, onde este artigo foi publicado originalmente.