SOUBE DA morte de Moacyr Scliar quando lia Moacyr Scliar. Haverá coisa mais irônica? Talvez não. Nem mais apropriada à leitura em causa: a editora portuguesa Cotovia resolveu publicar alguns livros fundamentais sobre o judaísmo. E um deles é “Judaísmo – Dispersão e Unidade”, uma interpretação pessoal de Scliar sobre a matéria, originalmente lançada no Brasil em 2001.
E, nessa interpretação, o que abunda é a ironia: não apenas no estilo de Scliar, que sempre tive como um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos. Mas em atribuir ao humor um dos traços fundamentais da condição judaica.
O que não deixa de ser bizarro: os judeus, explica Scliar, estão longe de ser os únicos perseguidos na história. Como lembrava Churchill, a história da humanidade é a história dos seus recorrentes massacres.
Mas o que distingue os judeus não é a perseguição “per se”. É a continuidade milenar dela. Como explicar essa continuidade?
Não existem respostas definitivas. Mas a melhor tentativa é de George Steiner, para quem a humanidade nunca perdoou os judeus pela suprema ousadia de terem criado um deus vigilante e castigador. A humanidade nunca perdoou os judeus por eles terem oferecido uma consciência moral aos homens.
Moacyr Scliar ocupa-se dessa “consciência moral” e, recuando até os tempos bíblicos de Canaã, desenha com palavras a monotonia do deserto e o Deus único que dele só poderia emergir. É fácil ser politeísta quando a natureza em volta reflete riqueza e diversidade. Mas, no deserto, monotonia é monoteísmo.
O monoteísmo teve consequências. Scliar não se ocupa das consequências científicas dessa verdadeira revolução intelectual: a existência de um único Deus criador, capaz de dotar o mundo de leis que podem ser racionalmente descobertas, é a base do pensamento crítico.
Scliar prefere as consequências filosóficas e, uma vez mais, humorísticas. Falar com um Deus só é diferente de falar com vários. Uma questão de “intimidade”. Um Deus só, sobretudo um Deus que gosta de testar as suas criaturas com provas e provações, é mais do que um patriarca; é um companheiro de estrada, com quem vamos conversando, debatendo, por vezes provocando.
Um dos casos notáveis desse espírito encontra-se em Tevie, personagem de “Um Violinista no Telhado”, que vai polvilhando a sua submissão a Deus com críticas e remoques. Inevitável: quando a vida terrena não é fácil, o cliente tem toda razão para protestar com a chefia.
E a vida não foi fácil para os judeus da diáspora. O humor é o produto dessas privações. Mas, na era moderna, o humor não foi a única saída para a condição precária dos judeus dispersos.
Muitos judeus preferiram pegar em armas, seguir o camarada Karl Marx e construir o socialismo, sobretudo na Rússia de 1917. Iniciavam um processo que, sobretudo com Stálin, acabaria por destruir a eles também.
Outros, depois do vergonhoso caso Dreyfus, que mostrou à Europa o caráter inapelável do antissemitismo mesmo na mais cosmopolita das cidades modernas, entenderam que a solução para a precariedade residia num lar nacional judaico. A criação de Israel, já depois da Segunda Guerra e do Holocausto, foi a resposta a essas aspirações.
E os restantes optaram pela emigração. Para os Estados Unidos. Para a América Latina. Para o Brasil. Será possível pensar na vitalidade cultural e científica de Nova York ou de São Paulo sem a impressão digital judaica? Sei do que falo: a perseguição e a expulsão dos judeus da península Ibérica no século 16 foi uma contribuição determinante para o atraso econômico e mental de Portugal e Espanha.
O livro de Moacyr Scliar é uma introdução brilhante para a história do judaísmo: cruzando fontes bíblicas com documentos históricos, sem esquecer a tradição oral e o sr. Woody Allen, meu único lamento é não poder continuar uma conversa epistolar com Scliar, que começou anos atrás, quando publiquei na Folha um texto crítico sobre sua santidade Simone Weil.
Minha derradeira esperança é poder continuar a conversa lá em cima, quando minha hora chegar. Só espero que, nas portas do paraíso, Scliar possa dizer a mim o que ele esperava que Deus lhe dissesse: “Já não era sem tempo”.
[ publicado na Folha de São Paulo em 08|03|2011 ]