Primavera em pleno inverno no Cairo

DEPOIS DA QUEDA

A onda de revoluções no mundo árabe parece, por assim dizer, obedecer a uma espécie de roteiro prévio, obscuramente redigido por um autor tão convencido de sua obviedade que sequer se dignou assiná-lo. O Egito repetiu a Tunísia, logo o Iêmen ou a Argélia ou o Bahrein repetirão o Egito, e assim por diante, ao mesmo tempo em que os governantes negam. Mas a queda desses governos, o contágio pelo “vírus revolucionário”, é uma certeza compartilhada no “axxari’ al’arabi”, a rua árabe, como se diz por aqui para falar sobre o povo.

Povo tomou a praça Tahrir

Povo tomou a praça Tahrir

No Egito, a radicalização do processo revolucionário fez quase tudo parar de funcionar, especialmente no centro da capital. Inclusive os cinemas, claro. Num deles, próximo à praça Tahrir, o título do filme cuja exibição se interrompeu parecia uma premonição: “Um Intervalo e Voltamos”. Pura coincidência, mas inspirador, sem dúvida.

A festa nas ruas do Cairo decerto já foi vista à exaustão por mais de um canal de TV e descrita à mancheia por todos os jornais e agências noticiosas. Mas, falando diretamente da praça, talvez não seja inútil dizer que nunca, em toda a minha vida, fui tão abraçado e beijado por pessoas que jamais vi, e que dificilmente tornarei a ver.

A queda de Mubarak passou a impressão de ser a partida de uma presença odiosa atrapalhava o início de uma festa desde há muito programada. A defasagem temporal ficava evidente no olhar esperançoso, mas cheio de melancolia, das pessoas mais velhas.

Uma idosa se aproxima de uma criança no colo do pai e lhe diz: “A vida de vocês será melhor que a minha”. A cena lembra outra, martelada pela TV Al Jazeera, de um velho tunisiano dizendo aos prantos a propósito da “sua” revolução: “Somente os jovens é que poderiam ter feito isso, porque nós envelhecemos, envelhecemos esperando este dia”, enquanto passa a mão nos cabelos grisalhos.

CAMELOS

Para a deflagração desse processo ainda não se aquilatou a real importância dos meios de comunicação. Eles contribuíram para mexer com o imaginário ocidental: foi exatamente após o uso dos camelos em um ato de repressão que o apoio recrudesceu no Ocidente, o que talvez se explique pelo choque causado entre a -ilusória, note-se- imagem simpática desse animal, sempre associado às culturas árabe e islâmica, e o seu uso para aqueles fins. Foi como que um sinal de que havia algo de errado na história.

“Quem mandou os cameleiros atacarem os manifestantes era algum inimigo do regime, não é possível tanta burrice”, muitos comentaram. Em âmbito local, os dirigentes egípcios, e antes deles os tunisianos, queixaram-se do “sensacionalismo” das redes de TV estrangeiras. Deixando de lado a sua conhecida repulsa à imprensa livre, o Estado policial egípcio deve ter considerado sensacionalista a estetização das manifestações promovida por essas emissoras, que criaram slogans e vinhetas tocantes.

Explorou-se com intensidade o já conhecido bom humor egípcio. “Mubarak renunciou, disse que iria se candidatar à presidência da Tunísia e os tunisianos voltaram às ruas exigindo a volta de Ben Ali.”

“Depois do sucesso da ‘Sexta-Feira da Vitória’ na Tunísia e da ‘Sexta-Feira da Partida’ no Egito, Gaddafi resolveu extinguir a sexta-feira por decreto.” “O único cidadão egípcio que respeitou o toque de recolher foi Hosni Mubarak.” “Gaddafi em entrevista à televisão: ‘A mulher deve receber os seus direitos, seja macho, seja fêmea’.”

Muitos revolucionários carregam as marcas da violência, não necessariamente as exibindo, pois sabem que serão vistas, de um modo ou outro. Na livraria fico olhando para um garoto com um corte na testa. Ele chega perto de mim: “Eu até podia mentir, mas esse machucado foi um acidente em casa”.
No café, passa uma moça com sua filhinha e diz, dirigindo-se a mim, não sei exatamente por quê, brandindo a mão enfaixada: “E depois dizem que ganhamos dinheiro!!! Nem um tostão”, ao que a filhinha bebe a minha água sem a menor cerimônia e se vai com sua mãe revolucionária. Terá histórias para contar, sem dúvida.

BOM HUMOR

“O povo quer mudar o regime”, palavra de ordem anterior à queda de Mubarak, logo virou um triunfante “O povo já mudou o regime”, com alguns indo mais longe: “Qualquer povo que estiver zangado com o seu presidente é só avisar que a gente derruba”. De um franco reacionário sobre um carro mal estacionado: “Afinal, foi para isso que fizeram a revolução?”

As notícias sobre Mubarak e sua família causam, como é natural, muita curiosidade. A imprensa varia o modo de citá-lo: a Al Jazeera usa sem complacência “deposto”. O jornal Al-Hayat fala “ex- presidente”. E a Alarabiya diz “renunciado”. As especulações sobre ele são muitas: está morrendo, parou de comer, beber e tomar o remédio, continua sendo tratado com honras de presidente em Sharm-El-Sheikh, resolveu escrever suas memórias, está mesmo disposto a morrer no Egito, considera-se traído, só não renunciou antes porque os seus ajudantes o enganaram, tem 7 bilhões, tem 40 bilhões, tem 70 bilhões. Já seus filhos teriam trocado sopapos na noite do último discurso, porque Jamál, herdeiro, queria que ele resistisse, ao passo que Alá queria que partisse.
Mubarak se foi recusando-se a ler o discurso de renúncia, passado ao vice, Omar Suleiman. A cena dessa leitura virou um sucesso nacional, não exatamente pela performance pífia do vice, mas sim porque atrás dele se entrevia um tipo meio gordinho que caiu no gosto do povo: “Quem é o sujeito que está atrás de Omar Suleiman?” virou hit musical de sucesso, caricatura, adaptação; fizeram montagens com ele atrás, discreto, em fotos de vários eventos históricos, desde a Segunda Guerra Mundial.

Até que, finalmente, irritado, o sujeito veio a público dizer que se chama Hussein Sharif, é comandante do grupo de combate 64 das Forças Especiais e pede que, por favor, esqueçam-no. Já há quem lhe esteja oferecendo uma operação plástica no “hospital dos contrarrevolucionários”.

REACIONÁRIOS

Aliás, os reacionários andam espumando por estes dias, como seria de esperar. O Cairo é há muito tempo uma cidade caótica, com um trânsito de assustar o mais recalcitrante dos infratores, além da sujeira crônica da cidade e do mau estado de conservação de prédios e vias públicas. Mas é claro que os mubarakistas ressentidos já começaram a atribuir todos os problemas, mesmo os que vêm dos tempos das pirâmides, à revolução. A cada dez metros de caminhada uma imprecação contra os “moleques que nem sabem o que querem”.

“E por que deveriam?”, pode-se legitimamente perguntar. Esses jovens cresceram num ambiente que em tudo os desencorajava de qualquer participação. Natural que apresentem algumas propostas confusas, como a de que os membros do governo de transição sejam, literalmente, “tecnocratas”. Ou que, desconfiados de fato das velhas lideranças políticas de plantão, agora tenham criado uma espécie de “Conselho dos Fiéis Guardiões da Revolução”, o que cheira um pouco a velharia, mas que nada mais é que resultado da falta de experiência dos revolucionários.

Um amigo, muito tocado com a experiência, mas reticente em ter qualquer tipo de esperança no que quer que seja, me disse que, para ele, a revolução, toda revolução, começa a envelhecer no momento mesmo de sua irrupção e que seu esplendor, como o das estrelas, se resume a isso, “pois o antes e o depois não contêm nenhuma beleza”.

JUVENTUDE

É difícil concordar: uma onda de inteligência e vivacidade sem igual corta o país de uma extremidade a outra. Até crianças falam de política. E continuo com a impressão, muito pessoal, de que, não fossem os jovens, nada teria acontecido; logo, a revolução se deve a eles e somente a eles.

Todas as pessoas da minha geração com as quais conversei, fossem de esquerda, conservadoras, arrivistas ou oposicionistas sinceras, demonstraram no início do processo uma hesitação, uma incredulidade, um pessimismo, uma falta de esperança que fatalmente teriam resultado na vitória de Mubarak.
Lembro bem o que disse um editor amigo meu, logo depois do primeiro discurso do ex-presidente, no qual ele se fez de “papai-vítima”: “Acabou, acabou. Enrolou todo mundo. Agora as pessoas voltam para casa e daqui a dois meses ele começa a liquidar as lideranças”.

Mas nenhum jovem engoliu a história. Foi o ardor juvenil, cheio de bom humor e alegria, que o depôs de verdade. Mesmo aos arroubos patrióticos que têm acometido a todos por estes dias -“o Egito em primeiro”- eles imprimem uma jovialidade divertida. “Acabamos” -diz sorrindo um escritor amigo- “e só nós resta voltar para casa e deixá-los resolver tudo”. Não é pouco numa sociedade ciosa com a prevalência dos mais velhos. Uma hora isso se esgota, se é que já não está se esgotando. Mas foi bom, deste outono pessoal, contemplar a primavera neste inverno claudicante.

[ do Cairo, o tradutor brasileiro do “Livro das Mil e Uma Noites” registrou suas impressões na Folha de São Paulo ]

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