Com a morte de Scliar, desaparece um dos maiores contadores de história da literatura brasileira.
A tradição judaica (e seus traumas) se faz presente desde o primeiro romance, “A Guerra do Bom Fim” (1972), em que as brincadeiras de crianças são perturbadas por notícias da Segunda Guerra.
A história se fará presente também nos livros em que, como médico, Scliar parte de personagens reais como o sanitarista Oswaldo Cruz (“Sonhos Tropicais”).
Comentando a relação entre medicina e literatura, que o inscreve numa linhagem de médicos-escritores, Scliar costumava dizer que a medicina proporciona a experiência de conviver com pessoas que, fragilizadas pela doença, se despem das máscaras sociais, revelando angústias.
E boa parte de seus romances consiste em inocular em cenas cotidianas um acontecimento fantástico, que desestrutura a normalidade.
Herdeiro confesso de Kafka, de quem emulou as parábolas sobre o absurdo vazadas em linguagem aparentemente neutra e também o humor judaico, Scliar fez do escritor a personagem de “Os Leopardos de Kafka” e parodiou relatos bíblicos.
Em seu último romance, “Eu Vos Abraço, Milhões”, narra trajetória de militante da época da Revolução de 30.
Essa envolvente ficção histórica é uma feliz metáfora da obra de Scliar: um escritor que descobriu na arte de narrar uma chave para compreender as fraquezas e complexidades do homem concreto, escondidas sob o véu de costumes e ideologias.
[ Manuel da Costa Pinto é colunista da Folha de S. Paulo, onde este texto foi publicado ]