Uma chuva de balas corta a calma da noite. Estou num posto avançado do EDI diante de Tulkarm, na Cisjordânia, e as balas assobiam antes de atingir a parede do posto. Momentos depois, encontro-me segurando um lançador de granadas – uma arma que dispara dezenas de granadas por minuto, com alcance de até 2 quilômetros. Empunho o lançador e, sem pensar duas vezes, abro fogo sobre casas em Tulkarm.
No meu fervor juvenil, não paro para pensar sobre o significado de disparar uma arma tão imprecisa na direção de uma cidade. É 2001, auge da segunda intifada, e enxergamos vermelho. Não me ocorre que eu possa estar fazendo algo errado, que posso ferir gente inocente. Recebi uma ordem e e só isso importa: eles atiram em nós e nós atiramos de volta. Quanto se tem que atirar, atire. Não pense.
Talvez, naquela época, alguém do B’Tselem tenha feito uma queixa, solicitando investigações sobre o que eu tinha feito. Agora, este alguém sou eu. Como coordenador de dados, uma das minhas responsabilidades é demandar que sejam abertas investigações sobre infrações que supostamente foram cometicas por soldados e policiais contra palestinos nos territórios ocupados.
Fui trazido para contribuir com a minha sociedade. Foi por isto que cumpri um ano de serviço público entre o curso secundário e o exército, servi numa unidade seleta do exército e me tornei um comandante.
Foram estes mesmos valores que me levaram a me unir ao B’Tselem. Trabalho aqui porque acredito que Israel pode ser mais moral e mais justo, e porque é essa a sociedade na qual desejo viver e criar a minha filha. Acredito que isto pode ser melhor alcançado apresentando à população aquelas coisas que normalmente eles não querem ouvir e que procuram ignorar. Não é uma tarefa fácil, mas a vejo como o dever de um cidadão que ama seu país e que deseja passar sua vida nele.
Mas a minha realidade está gradualmente se tornando inconcebível. De um lado, alguns estão chamando a mim e a outros que fazem trabalhos semelhantes de “cúmplices do terrorismo”. Por outro lado, ainda faço o serviço regular de reservista no exército, mesmo nos territórios ocupados. Alguns dos meus companheiros no B’Tselem podem discordar desta escolha. Não nego que eu, também, fico desconfortável em ser mais uma engrenagem na máquina da ocupação. Ainda assim, sem contar este conflito interno, quando a ordem chega na minha caixa de correio, ponho o meu uniforme e me apresento na base. Em vez de recusar ir ao serviço de reserva, prefiro tentar fazer uma mudança por dentro. .
Prevenção futura
Quando pesquiso sobre um incidente para o B’Tselem, sinto-me mal para qualquer lado que eu vá. Sou cheio de simpatia pelos civis, normalmente palestinos, que foram feridos por ações das forças de segurança israelenses ou outras autoridades. Mas também penso nos soldados, aqueles jovens rapazes enviados com a missão psicologicamente destrutiva de policiar uma população civil, e acabam agindo com maldade ou cometendo atos evidentes criminosos.
Não me leve a mal – em nenhuma circunstância posso aceitar ou justificar soldados que destróem propriedades, batem, humilham e abusam de pessoas, ou que atiram nelas sem qualquer razão. Israel tem todo o direito de se defender, e deve fazê-lo, mas a segurança não pode ser usada como justificativa de atos condenáveis. Tais atos precisam ser investigados e julgados, e seus perpetradores processados.
Mas não é suficiente que a justiça seja feita. A justiça também tem que ser vista. O dano à vítima não pode ser desfeito, mas a publicação do seu caso pode ajudar a evitar incidentes similares no futuro – ao fazer com que soldados e, mais importante, os comandantes e os políticos que os enviam, pensem duas vezes antes de ferir cidadãos sem razão. Nossa população tem o direito de saber o que está sendo feito em seu nome. É importante que nossa sociedade saiba o que acontece quando seus filhos e filhas são mandados para controlar outra população.
É claramente para sabotar esse novo objetivo, que o ministro do exterior Lieberman e seu partido estão trabalhando para criar uma comissão parlamentar para supostamente investigar o fornecimento estrangeiro de fundos a organizações que monitoram violações de direitos humanos pelo EDI. Claramente, o objetivo é silenciar o B’Tselem e outras ONGs que procuram melhorar os direitos humanos nos territórios ocupados.
Acho irônico que Lieberman tenha iniciado o ataque com alegações de que não somos transparentes. Isto não é apenas uma mentira absurda, mas contradiz a própria essência da transparência: informar a população israelense do que as autoridades estão fazendo em seu nome nos territórios. Enquanto ainda houver liberdade de expressão, posso questionar em voz alta: Até onde isso pode ir? Será que o próximo passo será impedir a mídia de falar aos israelenses e ao mundo sobre as violações de direitos humanos nos territórios? E quanto à Procuradoria Geral do Estado? Talvez a devemos barrar em investigações de suspeitas infrações cometidas por soldados? Será que o Procurador Geral. também, está colaborando com o inimigo?
Por que deveria alguém que se preocupa em criticar, que grita contra a tão longa política governamental nos territórios ocupados, que tem a coragem de levantar e dizer “Goste ou não … é assim que você é visto”, por que ele, entre todas as pessoas é visto como traidor? Como é que um criminoso se torna “uma maçã podre”, enquanto a pessoa que mostra o crime é um “traidor” ?
Eu nasci e me criei em Israel e construí o meu lar aqui. Quero viver aqui e em nenhum outro lugar.
Critico o meu país porque eu o amo demais. Estou cansado de ter que me desculpar por isso.
Noam Raz é coordenador dados do B’Tselem – Centro Israelense de Informações sobre Direitos Humanos nos Territórios Ocupados.
[ publicado no YNet em 02/02/11 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]