ElBaradei diz que se preocupa com exército no Egito

Em entrevista a Marcelo Nínio, no Cairo, o reformista egípcio ElBaradei também critica o Brasil pela política de não criticar ditaduras como a de Mubarak em nome da não-intervenção e da solidariedade com países em desenvolvimento.



Folha – Na última quinta-feira, depois que Mubarak anunciou que não renunciaria, o sr. alertou que o Egito ira “explodir”. Menos de 20 horas depois ele deixou o poder. O que acha aconteceu nesse meio tempo?


Mohamed ElBaradei – Acho que ele estava tentando de tudo para ficar no poder. Mas ficou óbvio que a saída de Mubarak tornou-se uma obsessão para o povo egípcio, como um símbolo de que o regime chegara ao fim e seria o começo de um novo Egito. As pessoas viam em Mubarak o próprio regime e estavam certas. Era um regime de um homem, ou como eu já disse, um regime faraônico.

Como animal político, ele não entendeu que perdeu a credibilidade e a legitimidade e que teria que aceitar com dignidade que era hora de ir. Em vez disso, recorreu a todo tipo de truque para ficar: mudou o gabinete, disse iria alterar a Constituição e permitir outras pessoas a concorrer [à Presidência], anunciou que seu filho não seria candidato,. Também eliminou a liderança de seu partido, escolhendo assim alguns bodes expiatórias de seu regime, e passou os poderes ao vice-presidente. Mas este perdeu a credibilidade em apenas três dias, pois era muito ligado a Mubarak.

No fim das contas, quando o Egito inteiro estava nas ruas na sexta-feira, eu escrevi no Twitter que o Exército deveria intervir, porque o país estava indo pelo ralo. Por sorte o Exército assumiu o controle. Acho que viu que precisava salvar o país. Mubarak nunca entendeu que como líder ele deveria escutar a voz das ruas, e que àquela altura ninguém queria mais continuar olhando para ele, mesmo que fosse só até setembro. As pessoas só queriam vê-lo pelas costas. E ele saiu sem sequer se despedir do povo. Não foi capaz nem de ir à TV e dizer que, pelo bem da nação, estava se aposentando. Teria sido mais digno. Mubarak se retirou em total humilhação.


O sr. diz que era o regime de um homem só. Mas o Exército, base do regime, continua no poder. O regime caiu?

Esta ainda é uma questão inteiramente aberta. Estou apreensivo. Queríamos o Exército para salvar o país e evitar uma guerra civil, mas não como ponte entre a ditadura e a democracia. Não queremos que o regime seja substituído por uma junta militar. Os militares dizem que estão no governo apenas por seis meses, até transferir o poder, mas o que temos visto não é muito tranquilizador. Em primeiro lugar, o chefe do Exército não fala com o povo, nós só recebemos comunicados periódicos do Conselho Supremo das Forças Armadas, basicamente dizendo que seu papel é de defender a democracia e que entende a legitimidade dos protestos. Não acho que eles estão lá para ficar, mas não estenderam a mão ao povo, Nenhum deles foi à TV explicar qual o roteiro desta transição, o que é crucial. As medidas que poderiam restaurar a credibilidade imediatamente são a abolição da lei de emergência, a liberdade para estabelecer partidos e a libertação dos prisioneiros políticos. Nada disso foi feito.

A esta altura, no mínimo deveríamos ter um governo compartilhado. Um conselho presidencial que incluísse não apenas militares, mas alguns civis, com o poder de legislar. Ouvir que o Exército governará o país sozinho nos próximos meses, sem uma Constituição e sem um Parlamento, não é muito tranquilizador. Também falam de emendas na Constituição para eleições justas e livres, mas nós sabemos que eleições são só uma parte da democracia. É preciso construir instituições. Ainda não sabemos que artigos [da Constituição] serão alterados e por quem. Eles ainda não disseram quem são as pessoas que formarão o comitê de reforma da Constituição e como elas foram escolhidas. Não há comunicação com o povo. Eles falam em seis meses, mas como novos partidos políticos podem florescer e se integrar ao sistema político em seis meses? Democracia não é só a urna eleitoral, é preciso dar tempo e espaço para construir instituições e permitir que os partidos, antigos e novos, cheguem ao eleitorado. Em seis meses é possível ter eleições livres e justas, mas não representantes políticos legítimos e organizados.  


O Nobel da Paz Mohamed ElBaradei falou à Folha no Cairo e manifestou preocupação com a atuação do Exército

O Nobel da Paz Mohamed ElBaradei falou à Folha no Cairo e manifestou preocupação com a atuação do Exército

O período de transição deveria ser mais longo?

Sim, acho que precisamos de no mínimo um ano para dar às pessoas o direito de estabelecer partidos, de se engajar, explicar as diferentes ideologias. Nada disso foi feito. O pior é que ainda estamos com o governo Mubarak, sem nenhuma indicação de quando o novo governo assumirá. Eu defendo que haja um governo de união nacional, com pessoas que não necessariamente possuam filiação política, mas que tenham credibilidade e experiência. Mas não esses sujeitos [do gabinete], que provavelmente irão a julgamento em breve. Claro que essa é uma situação nova para o Exército, mas eles não procuraram ninguém, não conversaram com ninguém. Conversei hoje com as pessoas da Associação Nacional para a Mudança, com a Irmandade Muçulmana e outras forças políticas do Egito e nenhum deles foi procurado.

 

Houve um encontro de generais com jovens líderes, isso não é um começo?

Esses jovens deflagraram a revolução, mas administrá-la é algo diferente e eles não podem fazê-lo sozinhos. Se o Exército quer reduzir a revolução aos jovens, acho que não vai funcionar. Eles começaram a revolução, mas todos os egípcios saíram em seu apoio. É uma revolução egípcia e os militares devem incluir a todos. Este é o momento de alterar a Constituição, de fazer as mudanças para criar um novo regime, e os jovens não podem fazer isso. Se eles reduzirem a revolução aos jovens e suas demandas, eles estarão abortando a revolução. Falei com muitas pessoas hoje e percebi a mesma apreensão.


Tanques guardam Museu Egípcio no Cairo
Tanques guardam Museu Egípcio no Cairo

Por temor de que os militares queiram ficar no poder?

Não acho que eles queiram ficar. O que causa apreensão são indícios de que eles não mudaram a forma de pensar. Como se fosse uma reencarnação do regime Mubarak. E não foi para isso que essa revolução ocorreu. Precisamos deixar claro aos militares que essa revolução é por democracia e liberdade, algo bem diferente do que houve até hoje. O que estamos planejando agora é que todas as forças políticas do Egito, esquerda, direita e centro, enviem uma declaração dizendo quais são nossas demandas e o que precisa ser implementado. Se os militares têm boas intenções, e eu espero que sim, eles terão que escutar-nos.

 

Quais as principais propostas?

Um governo de união nacional, com civis e militares dividindo o poder, e um período de um ano até a eleição. Além de todas as demandas que são unanimidade: revogação da lei de emergência, libertação de presos políticos, livre formação de partidos políticos, liberdade de imprensa. É uma questão de senso comum. Não vimos nada disso ainda. A cada dois dias sai um comunicado de dois minutos dessa caixa preta que é o comando militar. Mas nenhum deles disse ainda qual o plano. Sei que isso é algo novo para o Exército e eles não tem experiência em governar o país. Mas essa é mais uma razão para engajar as pessoas. Eles só falaram com jovens selecionados pelo nome, não pediram aos jovens manifestantes que escolham seus representantes. Isso está causando preocupação em muitos lugares.

 

O sr. pretende ser candidato à Presidência?

Minha intenção é ajudar a colocar o Egito no caminho da democracia. Neste estágio não estou procurando um cargo público. Quero continuar dando meus conselhos, mas gostaria de ver uma mudança de geração, pessoas jovens, de 40, 50 anos na Presidência. A minha geração, que viveu 60 anos sob ditadura, fracassou em mover o país para a frente. Na verdade andamos para trás. Gostaria de ver algo como o que aconteceu no Brasil, uma transição da ditadura para a democracia. Quando estive no Brasil, no mês passado, vi o presidente Lula sair com 80% de popularidade, depois de tirar 20 milhões de pessoas da pobreza. Esse é o tipo de conquista que gostaríamos aqui no Egito. Nossa política externa também tem que mudar totalmente. Precisamos trabalhar com países que tem experiências semelhantes, como o Brasil, África do Sul e Índia. Tudo tem que mudar. Estou muito feliz no momento de ter a liberdade e a flexibilidade para aconselhar e conversar com jovens e idosos.


E se o sr. for convidado a se candidatar por uma coalizão de partidos?

Eu sempre digo que não desapontarei as pessoas. Se houver um consenso, ou um acordo nacional, de que eu sou necessário para conduzir o país neste período, não desapontarei, embora essa não seja a minha prioridade. Muitas pessoas perguntam [se serei candidato], mas o país passa por um processo de euforia e confusão. A poeira tem de baixar. Acho que alcancei o meu objetivo e estou muito feliz por isso. Pretendo continuar trabalhando nos assuntos que são importantes. Trabalhei muito tempo com controle de armas, desigualdade, inseguranças, democracia, direitos humanos. Quero que o meu portfolio seja amplo, como é no momento.

Que papel o sr. acha que teve nessa revolução?

Odeio falar sobre mim mesmo, mas é um milagre ver o que aconteceu em um ano. Quando cheguei aqui havia uma cultura do medo, as pessoas temiam falar. Não havia esperança, ninguém achava possível que, depois de 60 anos, haveria democracia. Eu percebi que muitos da elite eram um obstáculo para a mudança, pois haviam sido cooptados pelo regime. A cultura do medo estava tão enraizada na alma das pessoas que elas queriam manter suas pequenas posses, seus carros, suas casas. Vi que teria que confiar nos jovens. Basicamente eu falava de como os direitos sociais e econômicos estão ligados à democracia. A prioridade das pessoas passa a ser a prioridade do país. Começamos a falar de mudança, não de uma simples reforma. E a mostrar que a força da unidade popular, por mais terrível que seja o regime, está nos números.

Por causa de nossa história, havia uma expectativa de que o salvador chegaria montado num cavalo branco. E eu disse a eles que a mudança só viria pelas mãos do povo. Começamos a mobilizar e conscientizar as pessoas, coletamos um milhão de assinaturas, boicotamos as eleições. E finalmente, do nada, tudo explodiu. O Egito inteiro aderiu, cada um com seu motivo. Uns por liberdade política, outros contra as desigualdades econômicas, exigências sociais. Todos tinham algum problema com o regime.

Mas são problemas que existem há muito tempo. Por que estourou agora?

Começou há alguns anos, mas havia muito medo e nenhuma esperança. Dou o crédito aos jovens que saíram às ruas. Era como uma bomba prestes a explodir. E ela explodiu quando as pessoas perceberam que era possível. A Tunísia foi uma mensagem psicológica fantástica de que, parafraseando Barack Obama, “yes we can” (sim, nós podemos). Se os tunisianos podem, tendo um regime mais repressor que o nosso, por que nós não podemos? Lhe asseguro que ninguém, mesmo os organizadores dos protestos de 25 de janeiro, sabiam se haveria 5 mil, 100 mil ou 200 mil pessoas nas ruas. Ninguém fazia ideia. Havia muitas adesões no Facebook e na internet, mas ninguém sabia. E foi uma surpresa fantástica ver que as pessoas captaram a mensagem. Depois já não havia como voltar atrás.

Estávamos mobilizando pela internet havia um ano, com discussões e trocas de ideias. Claro que o governo ironizava, dizendo que era um movimento virtual. Eles jamais esperavam que a revolução virtual se tornaria uma revolução real. Não acho que ela teria sido possível sem os meios de comunicação modernos. Essa é também uma revolução de comunicação. Não apenas as pessoas saíram às ruas, mas levaram holofotes. Todo espancamento, toda tortura era documentada e divulgada. Muitas pessoas me criticaram por eu sair e voltar constantemente, mas eu queria mostrar ao mundo o que estava acontecendo, por que não havia ideia de como a situação no Egito era ruim.

Agora os egípcios, do dia para a noite, se transformaram, de lixo, em algo fantástico. Há um mês os egípcios eram almas mortas. Agora, mesmo os pobres tem um sentimento de dignidade, orgulho e autoconfiança. Os egípcios surpreenderam a si próprios, mas olhando para trás o que aconteceu não é tão surpreendente. A panela de pressão explodiu. Quando fui à praça Tahrir, há uma semana, fiquei comovido. As pessoas querem ser livres, mesmo sem saber muito bem o que fazer com essa liberdade. E esse é o nosso desafio agora, como canalizar esse sentimento fantástico de dignidade para algo organizado, a fim de não permitir o descarrilhamento de nossa luta por uma democracia baseada em justiça social.


O sr. teme que o país esteja vivendo uma curta primavera política e que acabe havendo um retrocesso para o autoritarismo?

Sim, e por isso a conduta do Exército é tão importante. Vejo meu papel como um fiscal, para garantir que esse momento não tenha vida curta. Estamos num momento crucial. Sim, nos livramos do sr. Mubarak e companhia, mas este é só o começo. Removemos o bloqueio, mas ainda não alcançamos nosso objetivo.

 

Muitos afirmam que o sr. está desconectado do Egito após viver tantos anos no exterior e que isso o enfraquece como líder.

No último ano eu apresentei demandas que são senso comum, democracia, eleições livres, uma Constituição apropriada, revogação da lei marcial. Mas não vi nenhum esforço do regime para discutir se elas são legítimas. Tudo o que tive foram ataques no estilo Goebbels, assassinato de caráter por um ano inteiro. Há alguns anos recebi o Colar do Nilo, que é a mais alta honraria concedida no Egito, e que me coloca atrás somente do presidente em termos de protocolo. Mas quando comecei a pedir mudanças, passei a ser acusado de ser agente americano, agente iraniano, anti-Islã, pró-Irmandade Muçulmana, responsável pela guerra no Iraque, entre outras acusações. De repente eu não entendia nada de Egito, pois não havia bebido água poluída e comido comida estragada. Era um regime desesperado para sobreviver. Mas isso ficou para trás. Nos últimos dias abrimos as janelas, o ar puro virá e todos esses mosquitos vão sair.

 

Muitas pessoas também acham que o sr. não representa o Egito

Isso não me incomoda. Fui a algumas das áreas mais pobres do Egito e não tive esse tipo de reação. Mas não estou concorrendo num concurso de popularidade. Não esqueça de que este é um país em que 30% das pessoas não sabem ler e escrever, em que a mídia é totalmente controlada pelo governo e que todos os dias dia população sofre lavagem cerebral. Nossos problemas não são diferentes dos de Brasil ou África do Sul. É pobreza, corrupção, subdesenvolvimento. Voltei para dizer aos egípcios que há alternativa a essa miséria em que vivemos e que o portão para ela é a democracia. Em um ano nos movemos de um país em que a maior ambição era ter uma casa e um emprego, para um país em que o céu é o limite. Por isso queremos democracia, para que as pessoas possam pensar por si próprias. Sob este regime fascista elas não tinham permissão nem para pensar.



Qual foi o principal motor da revolução, a sede de liberdade ou a fome por igualdade social?

Os dois. Muitos da classe média achavam que a repressão política era o pior. Jovens protestavam contra as torturas e a falta de futuro. Outros não tinham comida na mesa nem um lugar decente para morar. Foi difícil convencê-los de que somente por meio de democracia seria possível chegar a uma sociedade mais justa socialmente. Mas todos concordam que esse regime fracassou miseravelmente. 42% dos egípcios vivem com menos de R$ 3,2 por dia. O Egito é considerado um Estado falido. Quando estive no Brasil fiquei impressionado com o desenvolvimento, algo mudou. Ainda há muito a ser feito, mas é possível ver o progresso.

 

Os líderes políticos no Egito são todos de classe média para cima. O sr. acha possível que emerja um líder das classes baixas, como aconteceu no Brasil com Lula?

Não acho que isso seja possível no momento, porque os sindicatos estão totalmente sob o controle do governo, não tem liberdade como no Brasil. No atual estágio, o líder será provavelmente da classe média. Mas é preciso organizar essas pessoas e cooptá-los. Me encontrei com alguns dos sindicalistas, todos estiveram na prisão. Alguns são extremamente educados, até mais que muitos da elite. Fiquei muito impressionado. Eles precisam fazer parte da coalizão. Neste momento precisamos de uma coalizão com todos, socialistas, marxistas, Irmandade Muçulmana, cristãos, todos. Com uma Constituição democrática, que basicamente diga que todos tem os mesmos direitos e deveres, não importa se são brancos, negros ou vermelhos. Estamos condenados a viver juntos e temos que achar um jeito de fazê-lo em paz e harmonia.

 

O sr. tem relações próximas com a Irmandade Muçulmana. Como vê as suspeitas de que o grupo tenha um plano oculto de transformar o país numa teocracia?

Não acho que essa é uma possibilidade. O que Mubarak fez foi espalhar essa ficção, de que depois dele, viria o caos. E isso é de certa forma uma condenação ao seu regime, porque numa democracia presidentes vão e vêm e nada acontece. Mas ele convenceu o mundo de que sem essa ditadura haveria o caos ou que o Egito se tornaria imediatamente um Estado religioso, ou pior, dominado pela Al Qaeda. E que automaticamente seria hostil ao Ocidente e revogaria o acordo de paz com Israel. E tudo isso é ficção. A Irmandade Muçulmana é um grupo religioso conservador, mas não acho que eles estejam pessoalmente interessados em tomar o poder. E mesmo se quiserem, eles terão que fazer isso nos parâmetros de uma Constituição que define um Estado civil, com direitos e deveres iguais para todos. Eles não tem a maioria. São apoiados provavelmente por 20% do povo egípcio. Mas ignorá-los ou bani-los, é agir como um avestruz, que enfia a cabeça na areia para não quer ver a realidade.

 

O sr. acha que a maioria dos egípcios quer um regime secular?

Sim, mas não usamos a palavra secular, chamamos de Estado civil. Acho que a maioria quer um Estado que não seja religioso, inclusive a Irmandade Muçulmana. Temos que colocar isso na nova Constituição. O regime é tão cínico que depois da revolução, todas as demandas da oposição se tornaram legítimas. Na última semana o regime passou a dizer que entende as nossas demandas legítimas. Por que não entenderam isso antes que nós chutássemos o seu traseiro? E até a Irmandade Muçulmana, que era banida, passou a ser convidada para um diálogo nacional com o vice-presidente. Era um regime que queria ficar no poder a todo custo e que não tinha nenhuma visão, apenas a convicção de que o único meio de sobreviver era oprimindo o povo. No século 21, com tudo o que vem acontecendo em termos de tecnologia e comunicação, [o fim do regime] a queda do regime era algo que tinha que acontecer.

 

Como avalia a conduta das potências ocidentais?

Infelizmente elas viam o Oriente Médio somente pela perspectiva da estabilidade. Achavam que o Mubarak e seus colegas autoritários eram a garantia de estabilidade. Mas a única estabilidade é quando há um governo eleito pelo povo e que atende ao povo. Uma estabilidade baseada em repressão, em que o Egito é usado como prisão, como ocorreu no governo Bush, é muito frágil. É por isso que o Ocidente não tem muita credibilidade entre os egípcios. A sensação é que os países ocidentais não praticam o que pregam. Por um lado defendem a democracia e o Estado de direito, por outro, se calam quando trata-se de seus amigos ditadores. Quando o Iraque fez eleições, mesmo tendo sido imperfeitas, a reação no Ocidente foi enorme, porque eles não gostam do Irã. Mas nunca falam dos países árabes que jamais tiveram eleições. Os governos ocidentais tem que entender, e eu digo isso a eles, que para ter credibilidade é preciso ficar ao lado do povo e entender que uma paz duradoura no Oriente Médio só virá quando houver democracias. O que temos com Israel é paz entre governos. Mas pergunte a qualquer egípcio na rua e ele dirá que a paz verdadeira só acontecerá quando os palestinos tiverem seu Estado e Israel parar de ocupar o território deles.


O sr. acha que o Brasil errou nos últimos anos ao se aproximar de ditaduras como a de Mubarak em nome da solidariedade de país em desenvolvimento?

Há uma crença de que porque somos países em desenvolvimento não devemos dizer nada. Mas acho que é um erro considerar isso uma interferência [nos assuntos internos]. Direitos humanos são valores universais. Eu gostaria que Brasil, África do Sul, índia e outros tivessem falado mais alto que o Egito, apesar de também ser um país em desenvolvimento, não tem o direito de torturar seu povo e privá-lo de liberdade política.


Governos como o do Brasil tem que entender agora que perderão credibilidade se não defenderem esses valores universais, mesmo que seja em países amigos do mundo em desenvolvimento. Eu me preocupo com a violação de direitos em qualquer lugar, seja em Burma, Sudão ou Congo. Temos que esquecer esse conceito antigo de intervenção doméstica e soberania.

Nos últimos anos há uma discussão em torno da responsabilidade de proteger as pessoas de abusos cometidos por seus próprios governos. É preciso mudar o modo de pensar. Ditadores como Mubarak contavam com esse tipo de não-intervenção para sobreviver. Este é um dos problemas entre países em desenvolvimento, a crença de que não podemos criticar uns aos outros. Mas não estamos nos ajudando dessa forma. Se vemos algo errado devemos falar, seja em países ricos, pobres, vizinhos ou distantes.



O sr. defende que Mubarak vá a julgamento?

Não. Acho que é hora de o Egito olhar para frente. Mubarak está fora de cena. Mas acho que o regime deve prestar contas. Toda essa conversa de que o presidente desviou US$ 70 bilhões, por exemplo. Esse dinheiro tem que ser devolvido ao país. Eu gostaria que os membros do regime fossem proibidos de deixar o país até tudo ser investigado. O tempo dirá se devem ir a julgamento. E numa corte civil, não militar. Quem roubou ou matou, tem que ser responsabilizado. O Mubarak, acho que é melhor deixá-lo de lado. Mas o dinheiro tem que ser devolvido.



O sr. acha que a queda do regime no Egito terá o efeito de um Muro de Berlim no mundo árabe?

 A quantidade de mensagens que tenho recebido do mundo árabe mostra que há uma grande expectativa sobre isso. Poderia ser a primavera árabe. O Egito sempre foi a locomotiva do mundo árabe. A convicção era de que se fosse um Estado moderado, o resto seguiria. Como fomos pelo ralo, o mundo árabe parou na triste situação em que estamos. Kofi Annan me disse que o impacto do que está ocorrendo aqui poderá atingir até a África subsaariana. [O jornalista americano] Tom Friedman me disse aqui, há alguns dias, que pode chegar até a China.

Por isso é que mundo está todo focado no Egito e que é tão importante que façamos tudo certo. Se isso ocorrer, acho que mudaremos a percepção que se tem do mundo árabe e islâmico e a desconfiança mútua com o Ocidente. Poderemos finalmente provar que não somos diferentes, mas parte da família humana e que compartilhamos os mesmos valores universais: respeito, tolerância, solidariedade, confiança. O que aconteceu aqui foi um tsunami e acho que será ainda maior se tiver um impacto global para unir os países em torno desses valores.

 

A mudança de regime pode colocar em risco o acordo de paz com Israel?

Ninguém está interessado em revogar o acordo de paz com Israel. Acho que hoje todos no mundo árabe entendem que Israel tem o direito de viver em fronteiras seguras. Mas também há muito ressentimento em relação a Israel, porque a paz não é só a falta de guerra. A paz precisa ser baseada em interações positivas entre as pessoas. E no sentimento de que há um acordo de paz justo. Isso só acontecerá quando a questão palestina for resolvida.

A bola agora está no campo de Israel e dos Estados Unidos. Eles tem que trabalhar pela solução que todos sabem qual deve ser: um Estado palestino, com retorno dos refugiados, fim dos assentamentos etc. Se formos capazes de fazer isso, teremos paz duradoura. Caso contrário, continuaremos no estágio atual, sem paz e sem guerra. Que paz é essa em que não podemos nem publicar um livro em hebraico aqui no Egito? Ou publicar um livro egípcio em Israel.

Não há muita cooperação hoje, exceto alguns acordos econômicos, de fornecimento de gás e petróleo. Mas entre as sociedades civis não há nenhuma cooperação. Meu sentimento é que, numa democracia, as relações com Israel serão baseadas em igualdade, porque quem quer que seja o novo líder do Egito, terá um mandato para falar em nome da população. Acho que é uma oportunidade para Israel entender que se quiser uma paz abrangente, o Egito pode ser bastante útil no processo. Mas também tem que entender que não podem continuar a comer o bolo e mantê-lo inteiro. Não podem construir assentamentos e ao mesmo tempo dizer que querem a paz.


O sr. se arrisca a dizer qual será a próxima peça do dominó a cair no mundo árabe?

Não faço ideia. Cada país tem sua própria dinâmica. Se o Egito se tornar um Estado democrático moderado, com sua população de 85 milhões de pessoas que é um terço do mundo árabe, não vejo como outros poderão continuar a defender suas políticas opressivas ou não se mover na direção da democracia. Pode levar algum tempo, mas acho que o impacto está chegando.

  

[ publicado na folha.com ]

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