A medida mais extrema da ditadura egípcia até agora contra os insurgentes foi cortar serviços de comunicação fundamentais para a revolta popular (e para a economia do país): internet e celulares.
Facebook, Twitter e SMS detonaram o que pode ser a primeira grande revolução do século 21. Ou não. Seja o que venha a ser, ela será twittada.
Google e Twitter se uniram contra o apagão de Mubarak e viabilizaram um sistema que prescinde de conexão com a internet para publicar mensagens de voz no Twitter, a central global de mensagens curtas.
Acessado em twitter.com/speak2tweet, ele grava ligações telefônicas e as reproduz no Twitter. Tudo de graça.
É tecnologia literalmente revolucionária, a maior arma da sociedade civil mundial. E o muro do medo e da opressão que aprisiona o mundo árabe desde sempre pode finalmente começar a ruir. Ou não.
As autocracias do mundo árabe, esse colosso de 22 países e 350 milhões de habitantes, resistiram sordidamente às ondas liberalizantes pós-queda do Muro de Berlim usando todo tipo de artifício, principalmente a opressão, a corrupção e o fantasma do islamismo extremado.
Imagine se o general João Figueiredo ainda fosse o presidente do Brasil, ou Ronald Reagan seguisse na Casa Branca. Isso é Mubarak no poder. A ditadura militar egípcia na verdade é muito mais antiga do que os 30 anos de Mubarak. Ela nasceu com a República, depois de o general Gamal Abdel Nasser derrubar a monarquia, nos anos 1950.
Nasser governou por quase 25 anos e foi sucedido por outro general, Anwar Sadat, assassinado pelo grupo islâmico Irmandade Muçulmana, em 1981. Desde então, os egípcios vivem sob estado de emergência e sob Mubarak.
É a mesma história em quase todos os países árabes (o Iraque se democratizou a ferro e fogo), comandados por líderes autoritários, corruptos, sem conexão com a população, socialmente atrasada, sem oportunidades de desenvolvimento.
É uma panela de pressão permanente, com explosões eventuais. Sempre que possível, direcionadas contra fantasmas externos como EUA, Israel, Ocidente.
Mas a explosão em curso nas ruas do Cairo é diferente de tudo o que vimos.
Ela mal fala dessa agenda dissuasória oficial, como a questão palestina, o conflito árabe-israelense, a defesa dos valores do islã. Mas de desenvolvimento, emprego, liberdade, segurança.
Ela ocorre no país mais populoso e influente do mundo árabe e curvou em poucos dias o poderoso ditador que, aos 82 anos, já preparava uma sucessão dinástica, como aconteceu na Síria, na Jordânia, em Marrocos, na Arábia Saudita… As semelhanças pan-árabes são tantas, da tinta preta no cabelo dos ditadores às divergências étnico-religiosas, que a tese do efeito dominó pode se comprovar.
E há a globalização, econômica e cultural, incontrolável. A cortina de medo e opressão não consegue mais isolar seus governados do mundo livre e mais desenvolvido, e isso está se provando fatal.
Quando o ditador sírio Hafez al Assad, pai do ditador atual, viu-se ameaçado pelos militantes islâmicos da, adivinhe, Irmandade Muçulmana, em 1982, o “Leão de Damasco” ordenou o bombardeio da cidade de Hama, bastião dos islamistas, liquidando de 10 mil a 40 mil pessoas, segundo imprecisas estimativas.
Quase não há imagens desse ataque macabro. Mas imagine se Mubarak decidisse enfrentar na bala os manifestantes na praça central do Cairo, sob as lentes das centenas de milhares de portadores de celulares e redes de TV internacionais transmitindo ao vivo para o mundo.
Mubarak está caindo, e todos os dirigentes árabes estão nervosamente observando. O que virá depois dele será o grande teste desse novo poder popular e das novas tecnologias.
Derrubar um ditador numa revolta popular nunca foi garantia de democracia. O consenso acaba quando o trono fica vazio. Os militantes islâmicos são geralmente os atores políticos mais organizados nos países árabes, com genuíno apoio popular. A ascensão neste mês do partido-exército islâmico Hizbollah ao poder no Líbano, restaurando cinicamente o domínio sírio no país, aponta retrocesso.
A possibilidade de a Irmandade Muçulmana vencer as eleições no Egito, se elas vierem, é enorme. Não existem outros partidos relevantes. E a Irmandade defende basicamente a instalação de um Estado islâmico regido estritamente pela Charia, as leis islâmicas baseadas no Alcorão.
Mas se a chance de a autocracia virar teocracia não é pequena, há espaço para otimismo? Sim, embora otimismo quase sempre seja exagero ou ignorância no Oriente Médio.
As novas tecnologias permitiram que uma nova geração de árabes mobilizasse as massas para derrubar uma tirania. Podem agora ajudar a construir uma democracia. Será um feito ainda maior.