A cidadania foi uma invenção política que tornou possível, acima de divisões étnicas, nacionais e religiosas, agregar e fazer conviver as diferenças. Foi necessário, para isto, tirar a questão religiosa do âmbito das questões públicas. Separou-se Estado e Religião visando tornar anacrônicos e minimizar confrontos religiosos no que chamamos processo civilizatório entendido como uma necessidade pacificadora e integradora. Fora deste marco, toda reformulação sobre o lugar da questão religiosa é, acima de tudo, perigosa.
A construção da cidadania não é milagrosa ou panacéia para os conflitos que transitam pelas sociedades modernas (basta ver os assuntos candentes nas eleições em diversos países), mas determina parâmetros nos quais estes podem ser levantados, geridos, resolvidos ou não.
Israel foi idealizada como o Estado dos judeus, tornou-se um Estado de judeus e terá que se ver, queira ou não, com o fato de ser um Estado com judeus. O Estado de Israel atual se pretende laico e democrático. Deriva esta pretensão de serem todos os seus cidadãos considerados israelenses. A singularidade demográfica é a existência de uma maioria étnica judaica, mas também de minorias que chegam, somente nas fronteiras de1967, a 20% ou mais da população.
Fundamentalistas religiosos e seus sócios eventuais pretendem hoje em dia ampliar infinitamente o âmbito do privado, transformando filigranas religiosas em questões públicas. Esta ingerência é crescente, limitando liberdades consagradas em constituições democráticas, mantendo ou criando novas restrições constrangedoras na sociedade local.
Falsos bombeiros procuram minimizar o alcance destas “invasões”, fechando os olhos e se omitindo frente aos obscurantismos transformados em lei ou vigentes contra a lei. Alegam sempre a necessidade de formar coalizões majoritárias. E, de recuo em recuo, tornam questionável a amplitude democrática do país.
Contudo, o sentimento religioso não é o ópio do povo. Ele está presente em todas as civilizações e deve ser considerado não como dado anômalo, mas como parte intrínseca da experiência humana, pelo menos até agora, não importando nossa relação particular com as diferentes teologias e teocracias. Na verdade, vivemos entre crenças e estruturas cruzadas aparentemente incompatíveis, tais como religião e democracia, pelo menos no que diz respeito à idéia de Verdade.
” A voz do povo é legítima,
Mas não garante pressupostos
De apaziguamento e de paz estável. ”
No nosso caso específico, todo sionista informado sabe que existe e existirá sempre uma tensão entre o “judaico” – o particularismo – e o conceito “democrático” – o universalismo. O Estado judaico e democrático, conforme formulação bengurionista, é um desafio que tanto pode alcançar sínteses criativas e libertárias quanto retrógradas e explosivas.
Para os crentes, Deus deixou, em parte, o futuro ao critério dos homens através do livre arbítrio. Esta versão religiosa coincide parcialmente com o critério de que a opinião pública é a voz legítima em uma democracia. Mas esta opinião pública colocou no Poder figuras como Hitler, donde se pode concluir, que, ao contrário do dito popular, a voz do povo é a única legítima, mas não é obrigatoriamente a Sua Voz.
Portanto, reitero que todo cuidado é pouco com os messianistas doidos, nacionalistas transtornados e demagogos suicidas de todas as vertentes que pretendem falarem Seu Nome ou em nome de alguma verdade transcendental.
Em Israel, a única questão transcendental é dar fim a uma colonização desbragada em terras alheias, que ameaça a essência do Sionismo. Ficar divagando sobre detalhes esotéricos não prenuncia visão, inteligência ou coragem para romper impasses.
Aderir ao que a maioria eventual na opinião pública israelense acredita ser possível é um equívoco insustentável, pelos dados presentes. Maiorias podem eleger rabinos fanáticos, demagogos, populistas e cavar sua própria desgraça, dentro da mais estrita legalidade institucional. A voz do povo é legítima, mas não garante pressupostos de apaziguamento e de paz estável.
Os verdadeiros sionistas são aqueles que tentam construir meios de tornar a eternidade de Israel algo viável e sustentável no mundo real, o que exige muito mais do que estes mantenedores profissionais de um status quo podre.
Por paradoxal que possa parecer, as vozes críticas no mundo judaico provenientes das tfutsot (Diáspora) podem ter um papel moderador no embate que se trava dentro da opinião pública israelense, “anestesiada”, em parte, por formulações irracionais (e, no limite, autistas e loucas), mas extremamente mobilizadoras, pois oferecem pão e mel falsificados e redenções para lá de semelhantes às promessas vazias e irrealizáveis de falsos messias.
Quem viver verá.
Henrique Samet, doutor em História, é professor da Faculdade de Letras da UFRJ.
[ Publicado no Boletim da ASA]