Comentários sobre o livro “Haskalá, O iluminismo Judaico”, por Arnaldo Niskier (Ed Altadena, 191 pgs.)
Ao encerrar o seu livro com uma citação de Sérgio Paulo Rouanet, Arnaldo Niskier aponta para uma das intenções de seu trabalho: “neste momento em que o mundo está ameaçado por todos os desvarios da desrazão, em que os esoterismos pululam e em que magos produzem best-sellers, precisamos mais do que nunca da razão, tal qual ela sempre foi cultivada pelo povo judaico: faculdade crítica a serviço de objetivos éticos”. Afirmação do mestre Rouanet que não seria muito bem recebida pelos intelectuais judeus descritos no “Haskalá. O iluminismo judaico”. Eles viam os antigos mestres mais parecidos com o citado mago, colega de fardão do acadêmico Arnaldo Niskier, do que com o intelectual autor do estudo.
Niskier apresenta um rico relato dos pensadores judeus europeus que, na falta de uma Bastilha, atacavam a própria cultura. Breslauer, por exemplo, profetizava que “somente por causa da razão que passamos por este mundo, sem ela a vida seria inútil e desprovida de valor” De um ser humano que vem ao mundo para praticar a Torah e concertá-lo, passaríamos pela existência para exercitar a razão.
À adesão entusiasmada pelo tema por parte do autor faltou uma visão crítica da Europa Iluminista que, iniciada num banho de sangue em Paris, menos de cento e cinqüenta anos depois terminaria levando às câmaras de gás os descendentes dos judeus que aderiram entusiasmados à possibilidade de participar ativamente da historia. O continente da civilização sofisticada e do cristianismo enraizado foi incapaz de proteger-se da catástrofe que ele mesmo gestou ao longo de sua história.
Para aprofundar um debate sobre o iluminismo judaico, seria fundamental pensar o destino da comunidade alemã descrita no livro através da figura de Moises Mendelssohn (1729-17860) Talvez Franz Rosenzweig, o filósofo judeu-alemão autor de “A Estrela da Redenção”, possa nos ajudar. Em 1929, numa homenagem ao seu precursor ele dizia que “Mendelssohn foi o primeiro judeu-alemão num sentido árduo que dá conta das duas palavras com as quais nós, os judeus alemães, entendemos o nosso judaísmo alemão (no entanto) ele não conseguiu nos transmitir a proteção sob a qual consumou esta nova combinação (o fato de) nenhum dos seus herdeiros pertencerem hoje a nossa comunidade é o símbolo da ameaça a qual expôs a nossa descendência e existência espiritual que também era a sua” Destino trágico dos iluministas judeus que não conseguiram juntar à sua aflição messiânica de salvação a perspectiva de sobreviverem enquanto identidade num mundo que prometia fraternidade.
Enquanto em 1929 Rosenzweig falava do desaparecimento espiritual dos judeus alemães como conseqüência da Haskalá, a pátria germânica gestava um golpe mortal nos seus descendentes. Em 1933, quatro anos depois, o filósofo Emanuel Lévinas denunciava o Hitlerismo como filosofia. Uma filosofia do Hitlerismo desfaz o mito da loucura individual. Filosofia que traz uma visão de homens ligados pelo sangue exclui qualquer liberdade de escolha ou conversão. Filosofia paganizada que acabou por enterrar com alegre participação coletiva o sonho europeu iluminista do homem livre e esclarecido.
Elegendo o Talmud como culpado de quase tudo, os autores da Haskalá reduziram a obra fundadora do judaísmo a uma crendice popular. E aqui, uma vez mais, o autor não parece preocupado em fazer a análise crítica deste posicionamento. Como tem nos ensinado o filósofo Emanuel Levinas o judaísmo que conhecemos é a Torah lida pelo Talmud. Fruto do esforço contínuo de desvelar infinitas camadas de sentido na Torah, o Talmud, chamado de Torah Oral, criou uma prática interpretativa que derreteu o lacre da sacralidade limitadora da Bíblia Judaica, transformando-a num texto aberto ao tempo dos homens. Em 1848, assinala Niskier, Abraham Buchner publicava “O Vazio do Talmud”. O título vale pela obra.
Esquecidos do anti-semitismo, os judeus atribuíam a si mesmos as causas do seu infortúnio. Sem poder questionar a realidade política, os autores da Haskalá atacavam símbolos no lugar de governos. Fazendo o possível para emancipar-se da própria imagem, pensavam que trocando de forma seriam aceitos pela sociedade cristã. “Rituais desorganizados”, “corpos pequenos” e “língua decadente”, “gestos exagerados e sem refinamento”, era assim que se descreviam antecipando-se aos manuais nazistas.
Niskier nos trás estes relatos sem lembrar que, tal qual inúmeros povos africanos subjugados pelo colonialismo europeu, os judeus também mimetizaram o dominador construindo a sua aparência identitária à imagem da visão do opressor. Fato que também conhecemos aqui no Brasil de todos nós.
Uma razão mística?
A Europa conturbada da segunda metade do século XX viu surgir um novo iluminismo sem pretensões à verdade. Afirmando a diversidade de racionalidades Henri Atlan, expoente do pensamento da complexidade, nos ensina de modo provocativo a possibilidade de uma razão mística. Exemplo de uma razão mística seria o trato talmúdico da passagem das “águas amargas” (Números, 5:5-31.) onde se lê que uma mulher suspeita de adultério deveria ser submetida ao ritual das “águas amargas”. Se fosse culpada o seu ventre incharia e, diante da prova, ela seria condenada ao apedrejamento até a morte.
Diante deste mandato divino da Torah os talmudistas (renegados por Paulo de Tarso) afirmaram que estas decisões “nunca aconteceram e nem acontecerão” porque “na medida em que se multiplicaram os transgressores, as águas amargas foram suspensas”. A sua aplicação exigiria a prática geral dos preceitos da Torah por uma comunidade de homens perfeitos. Como isto nunca aconteceu, acrescentou Maimônides no século XII, o mandato das “águas amargas” nunca foi praticado. Uma argumentação calcada na realidade humana e capaz de impedir o submetimento da mulher a uma exigência de santidade que ninguém cumpria pode ser considerada irracional, supersticiosa e vazia?
Ao lidar com o texto de maneira anacrônica e interpretando os seus inúmeros sentidos na atualidade do leitor, os Talmudistas firmaram uma posição judaica frente aos mandatos divinos: a cada geração os seus interpretes. Principio que transformou a revelação num ato permanente de reflexão, excluindo a necessidade de homens iluminados em comunhão com Deus. Construiu-se desta maneira uma ilustração baseada no estudo conjunto enquanto o estudo isolado é desencorajado pelo Talmud. A presença do outro serve como garantia contra o perigo de homens devotos se declarem enviados de Deus. Do mesmo modo ela exclui a possibilidade de comuns mortais se autodenominarem guardiães e intérpretes da verdade divina.
Paulo Blank , membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA, é psicanalista, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, autor de “CABALA: O MISTERIO DOS CASAIS” e pesquisador independente de pensamento judaico..
[ publicado originalmente no blog http://judaismohumanista.ning.com/ ]]