Uma certa paz

Um livro melhora com o tempo, diz Oz

Autor israelense tem romance “Uma Certa Paz” publicado no Brasil após 28 anos do lançamento no exterior…   Escritor afirma que toda a sua literatura é metapolítica: aborda o tema, sem carregar uma mensagem definida…

Um descanso certo” seria a tradução literal do título do livro de Amós Oz. Trata-se de um trecho da Bíblia, que roga por um descanso merecido.

Em português, a tradução optou por “Uma Certa Paz“, o que, como o autor comenta na entrevista abaixo, foi correto. A ambiguidade, em que a palavra “certa” indica correção e indefinição, existe também no hebraico.
E essa ambiguidade se encontra no kibutz onde vivem Ionatan, Iulek e Azaria. Ionatan está cansado das concessões do kibutz e quer abandoná-lo. Iulek, seu pai, é um antigo pioneiro, doente, mas ainda idealista. Na entrevista abaixo, Oz fala sobre a decadência do modelo de kibutz, sua visão sobre a Israel atual e seu método de trabalho.

 

Amós Oz - entrevistaFolha – Qual é o significado de publicar um livro tantos anos depois de sua criação?
Amós Oz –
Um livro é como vinho, melhora com o tempo. Considero o kibutz o melhor experimento social do mundo. Estão em decadência, porque Israel também se tornou capitalista, não há mais espaço para o kibutz.

Em outra entrevista, o senhor disse que Israel estava se tornando mais triste. Mantém essa opinião?
Não se pode generalizar nada sobre Israel. Jerusalém não é Israel. É um país triste, sim, mas Tel Aviv é uma cidade viva, secular e lá as pessoas estão mais otimistas. A maior parte do país não vive em Jerusalém, que está se tornando fanática.

Ionatan é um exemplo de desilusão e Azaria, de confiança, mas também de vaidade e ingenuidade. Mesmo assim, o senhor diz que são gêmeos.
Eles partilham os mesmos sonhos e são o retrato de Israel. Tenho carinho pelos sonhadores messiânicos, que ainda acreditam no país. Mas me identifico pessoalmente com Srulek, o musicista transgressor.

O senhor considera que todo romance é político?
Minha literatura é metapolítica. Os personagens discutem política, mas o livro não carrega uma mensagem específica. Se quero escrever sobre isso, escrevo um artigo e mando ao governo. Escrevo o mesmo artigo há 50 anos, mandando o governo para o inferno, mas eles não me obedecem. Não foram para o inferno. Se quero escrever uma história, escrevo um livro.

Israel é um país muito tomado por conflitos internos. É possível pensar em paz enquanto eles existirem?
Os conflitos internos não são tão graves, porque não há derramamento de sangue. Israel é um país conflituoso. Há uma piada: no primeiro ano de chegada, um imigrante reclama do governo. No segundo ano, reclama dos israelenses. No terceiro, ele reclama dos novos imigrantes, que querem tudo numa bandeja de prata.

Ionatan sempre diz que tem medo de perder sua hora. Que hora é essa?
Estamos sempre temendo perder algo em outro lugar e não sabemos o que é. Se soubéssemos, não teríamos medo e não sentiríamos falta.

O senhor ainda se definiria como um “apagador”? Alguém que apaga mais do que escreve?
Sim, eu apago mais do que escrevo. Faço mais de 15 versões de um livro. Vou apagando até a versão final. Escrevo tudo à mão e, no final, digito com dois dedos. Não uso o computador para nada.

[ entrevista por NOEMI JAFFE para a Folha de S.Paulo ]

 

Sinopse

No inverno de 1965, Ionatan Lifschitz resolveu abandonar sua mulher e o kibutz onde nascera e crescera. Decidiu sair e começar uma vida nova. No entanto, a saída de Ionatan não se concretiza assim tão facilmente. Filho de Iulek, o líder da comunidade, sua insatisfação é contraposta à esperança que marcou a geração anterior. Os dilemas de Ionatan se agravam quando chega ao kibutz o sonhador Azaria Guitlin. Conversador, sempre repleto de opiniões, apaixonado pela ideia de um mundo justo, Azaria Guitlin é a antítese de Ionatan. Entre os dois se forma uma estranha amizade, que se torna ainda mais confusa quando Azaria se muda para a residência dos Lifschitz e se interessa por Rimona, a esposa que Ionatan negligencia e trata com desdém.

As difíceis relações familiares são a tônica desta obra de Amós Oz, que leva para o seio familiar as contradições e dificuldades políticas que o Estado de Israel enfrentava nos anos 1960, às vésperas da Guerra dos Seis Dias. Mais do que um retrato histórico, porém, Uma certa paz se revela uma meditação sobre o poder, a decepção e os relacionamentos amorosos. O talento de Oz está em não privilegiar um único ponto de vista. Pelo contrário, dá voz aos pensamentos das suas personagens, por mais rígidos e chocantes que sejam.

[ “A obra mais poderosa de Amós Oz.” – The New York Times Book Review ] 

 

Vozes dissonantes na construção de um Estado em conflito

Depois da criação do Estado de Israel, nada mais seria igual – nem mesmo o amor. A declaração, feita por um teórico do sionismo em 1948, foi publicada num artigo de jornal israelense poucos meses antes daquele histórico episódio e ficou guardada na memória do escritor Amós Oz, hoje com 71 anos. Ele tinha apenas 9 anos quando a leu.

A assertiva está na base de Uma Certa Paz, obra que, lançada em 1982 e enfim traduzida no Brasil, figura entre as mais importantes do principal nome da literatura israelense. Com narrativa centrada entre 1965 e 1967, período imediatamente anterior à Guerra dos Seis Dias, o romance aborda um momento em que a distância entre os ideais e a realidade tornava-se cada vez mais perceptível para os filhos dos pioneiros de Israel. “A guerra contra os países árabes em 1967 transformou o novo Estado de maneira radical”, diz o autor em entrevista por telefone ao Sabático, de Tel-Aviv, onde estava na última quinta-feira, prestes a viajar para um book tour pela Europa. “Os conflitos já existiam, mas Levi Eshkol (primeiro-ministro de 1963 a 1969) amava a paz, acreditava nela. Foi depois da guerra que Israel desenvolveu o apetite pelos territórios ocupados e a fixação pela força militar como meio de conquistá-los.”

Oz constrói nesse ambiente de tensões pré-conflito uma história de “amor, solidão, desejo e desespero”, em suas próprias palavras. Na narrativa, Ionatan Lifschitz, de 26 anos, filho do líder de um kibutz próximo à fronteira com a Síria, planeja deixar para trás a mulher, Rimona, e a rotina monótona da comunidade rural. Está cansado do círculo social que cerceia seus interesses e tomado pela sensação de que há muito a conhecer. A decisão é anunciada já nas duas primeiras frases do romance (“Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para o outro. O que ele deixa para trás de si fica para trás e só lhe vê as costas”), contudo o caminho até sua concretização, durante úmido e rigoroso inverno, toma quase as duas primeiras centenas de páginas. Enquanto não leva a cabo o projeto, Ionatan conhece o jovem Azaria Guitlin, que faz o caminho inverso – socialista convicto, saído de Tel-Aviv, pretende tornar-se parte daquela comunidade igualitária e democrática. Quando Ionatan enfim se vai, Azaria assume sua casa e sua mulher na expectativa sincera da volta do amigo.

Nove anos mais velho que o Estado de Israel, Amós Oz descreve no romance cenário que lhe é muito familiar. Em 1954, aos 14, dois anos após a morte da mãe, o descendente de russos nascido em Jerusalém deixou a casa do pai em busca de vivências radicais no kibutz, assim como Azaria. Também à semelhança do personagem, é aficionado por Espinoza (1632-1677), filósofo em que se especializou na Universidade Hebraica de Jerusalém. Azaria, incansável conversador, encaixa onde pode ideias do racionalista. “Há mil anos Espinoza escreveu que só com generosidade e amor pode-se conquistar o próximo”, argumenta numa de suas primeiras aparições, na tentativa de convencer Iulek, pai de Ionatan, a deixá-lo ficar na comunidade.

Polifonia. Oz viveu no kibutz de Hulda, onde se casou e teve três filhos, por mais de 30 anos. Trocou a comunidade pela pequena cidade de Arad em 1986, quatro anos depois de descrever a partida de Ionatan em Uma Certa Paz, mas os motivos foram menos emocionais – àquela altura, o filho caçula sofria de asma e foi preciso procurar lugar de clima mais ameno. No livro, à chegada de Azaria e à partida de Ionatan, Oz contrapõe os olhares de Iulek e de sua mulher, Chava, entre outros. “Construí um romance polifônico, mas permaneço por trás de cada uma daquelas vozes. É uma convivência que conheço de dentro para fora, as fofocas, os hábitos, a ideologia.”

Os diferentes pontos de vista ajudam a compor esse ambiente bucólico, que se desenvolve perto das ruínas de uma aldeia árabe construída no século 8.º e destruída por ocasião da declaração de independência de Israel. “No alto da colina (…), erguiam-se as ruínas de Sheikh-Dahar: paredes partidas, encarvoadas pelo fogo (…). E elevando-se acima de tudo a mesquita amputada, que foi ceifada, assim se conta entre nós, por um preciso obus de morteiro disparado pelo comandante do Palmach durante a guerra da independência”, descreve o romance.

Entre a promessa de uma vida comunitária e as ruínas, equilibram-se os sonhos de Azaria e as desilusões de Ionatan. Quando Azaria tenta argumentar sobre a ordem obrigatória e fixa da realidade, o amigo interrompe os devaneios filosóficos justamente com a crueza da realidade. Lembra que, num ataque ao Exército sírio, ele e outros soldados israelenses levantaram um cadáver cortado pela metade, acomodaram a parte da barriga para cima no banco do motorista de um jipe, com mãos no volante, e lhe enfiaram um cigarro aceso na boca. “Até hoje entre nós isso é considerado uma piada da qual nos lembramos e rimos. O que seu Espinoza diria sobre isso? Que somos lixo? Animais selvagens?”, provoca Ionatan. A questão é que Azaria, como percebe o líder Iulek, é um “jovem nascido na geração errada”. Acredita na justiça e na paz, porém Ionatan já viveu conflitos o suficiente para pensar de outra forma.

Manifestos. Amós Oz diz que Uma Certa Paz é, acima de tudo, sobre “o amor de dois jovens homens e uma mulher”. Costuma repetir que não é sociólogo para generalizar os traços de uma geração, embora não resista a identificar aqui e ali características comuns a jovens israelenses em diferentes períodos da história. “Ionatan vive sob a sombra de ser filho de um líder, de um fundador de Israel, e de pensar diferente, mas não se pode dizer que ele reflita o que a juventude sentia”, minimiza, para pouco depois concluir: “Os pais e mães fundadores de Israel, a geração dos personagens Iulek e Chava (mãe de Ionatan), eram notáveis, poderosos, até despóticos, mas também idealistas. Não vejo algo similar na Israel do futuro.” Nem mesmo na literatura, onde em seu país se destacam hoje escritores como o best-seller Etgar Keret, autor de romances e graphic novels em que a política não é prioritária: “Tenho a impressão de que os escritores e poetas mais jovens estão mais preocupados com suas vidas de cada dia do que com a vida do país”, sentencia.

O autor de Não Diga Noite (1997) e A Caixa Preta (2003) nunca gostou de críticas que veem alegorias sociais e políticas em sua ficção. “Meus romances não são manifestos políticos”, reclama. “O que acontece é que minha literatura envolve personagens com forte senso de política, de forma que esse caráter acaba ressaltado. Azaria é o maior portador dessa característica nesse romance, no entanto, as opiniões dele e dos outros personagens não são as minhas.” Pensamento diverso do de Oz também tem no romance o músico Srulik, que sucede Iulek no comando do kibutz. Pouco antes de assumir o cargo, o personagem reflete: “Nunca acreditei de verdade que um judeu seja capaz de se assimilar com sucesso total.” Mas é Srulik o único capaz de entender como dialogam as vozes do kibutz, como analisa o autor: “Ele tem o ouvido musical para perceber de que maneira as conflitantes vozes do romance se tornam harmônicas.”

Se diz não fazer manifestos na literatura, Oz é pródigo em ensaios nos quais analisa a questão árabe-israelense – além dos livros publicados, de tempos em tempos resolve enviar para jornais israelenses artigos sobre questões que lhe chamam a atenção, devidamente reproduzidos em veículos como o New York Times e o Guardian. Um dos primeiros integrantes do movimento PAZ AGORA (Peace Now), defensor da coexistência de dois Estados em Israel, o autor tem plena consciência de que é sobre os conflitos que se espera que fale e são mesmo eles que mais o fazem se estender em argumentos. “Tenho noção da injustiça e isso me causa grande revolta. Fico aborrecido com as lideranças de Israel e da Palestina porque ambas sabem que a única solução é a criação de dois Estados, mas não fazem nada por isso.”

 

[ Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo ]
UMA CERTA PAZ
 AUTOR Amós Oz
TRADUÇÃO Paulo Geiger
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 51 (400 págs.)

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