Quando eu era pequeno, meus pais me diziam: Um dia, não durante as nossas vidas, mas nas suas, Jerusalém tornar-se-á uma cidade de verdade. Eu não entendia o que queriam me dizer. Jerusalém era a única cidade verdadeira na minha vida então – até mesmo Tel Aviv era só um sonho. Mas, hoje sei que quando meus pais diziam “cidade de verdade”, queriam dizer uma cidade com um rio no meio e pontes sobre ele – uma cidade européia. E na Jerusalém dos anos ’30 e ’40, quase conseguiram criar uma pequena Europa, com boas maneiras – Frau Doktor e Herr Direktor, paz e silêncio entre as 12h e 16h, e telhados vermelhos. Sei que o amor dos meus pais pela Europa era um tipo de amor não correspondido. E sei que este sentimento de amor não correspondido pela terra natal é algo sentido por milhões de judeus israelenses que fugiram ou foram expulsos de países islâmicos como o Iraque, Marrocos e Egito. A Israel judaica é um campo de refugiados, A Palestina também é um campo de refugiados.
O conflito israelense-palestino é uma luta trágica entre duas vítimas da Europa – os árabes foram as vítimas do imperialismo, colonialismo, repressão e humilhação. Os judeus foram as vítimas da discriminação, perseguição e, finalmente, de um genocídio sem paralelo na História. Frente a isto, duas vítimas, e do mesmo opressor, devem tornar-se irmãos.
Mas a verdade é que, tanto quando se trata de indivíduos quanto de países, algumas das piores lutas irrompem entre duas vítimas do mesmo opressor. Os dois filhos de um pai abusivo irão ver, cada um em seu irmão, a imagem do antigo opressor. Os árabes olham para o Israel judaico e não o vê como é na realidade – um campo de refugiados semi-histérico. Em vez disso, vêem-no como um braço longo, arrogante, opressivo e explorador, do colonialismo europeu. Nós, judeus, olhamos para os árabes e, em vez de vê-los como companheiros de sofrimento, os vemos como os perseguidores do nosso passado – os cossacos, os antissemitas. Nazistas que deixaram bigodes e ficaram bronzeados, mas que ainda estão ansiosos para nos matar.
O coração do conflito israelense-palestino é um choque entre certo e certo, e muitas vezes um choque entre errado e errado. Os palestinos estão na Palestina porque a Palestina é a terra dos palestinos, tanto quanto a Grécia é a terra dos gregos e a Noruega é a terra dos noruegueses. Os judeus israelenses estão em Israel porque eles não têm nenhum outro país natal, e como nação nunca tiveram qualquer outra Pátria exceto a Terra de Israel. Os palestinos não têm nenhum outro lugar par ir. Nem os israelenses. A terra disputada é, em seu todo, menor do que a Holanda. Mas não alternativa a dividi-la em dois países, Israel e Palestina.
Israelenses e palestinos não podem se transformar num único povo vivendo num único país. E não adianta tentar enfia-los numa cama dupla após um século de violência e ódio. Ninguém teria sonhado, logo após a Segunda Guerra Mundial, em tentar transformar Alemanha e Polônia num único país. Os judeus israelenses e os árabes palestinos não podem, neste estágio, virar uma família feliz porque eles não são um, são estão felizes, e não são uma família. Eles são duas famílias infelizes, e por isto é vital dividir a casa em dois apartamentos menores – assim como fizeram os tchecos e os eslovacos sem derramar uma gota de sangue.
Estes são tempos de esperanças renovadas. Não é pequena a distância entre as posições israelenses e palestinas nas negociações de paz, mas certamente é muito menor do que jamais foi durante um século de conflito. É difícil ser profeta, especialmente em Jerusalém – a concorrência é acirrada – mas permitam-me concluir com uma pequena profecia. Um dia chegará em que haverá uma embaixada israelense na Palestina e uma embaixada palestina em Israel. Essas duas embaixadas estarão a uma distância que será coberta a pé, porque uma delas estará em Jerusalém Ocidental, a capital de Israel, e a outra ficará em Jerusalém Oriental, capital da Palestina. Extremistas dos dois lados continuarão a fazer de tudo para sabotar um compromisso histórico e a paz – mas a paz cegará, porque a maioria dos dois povos a quer e porque os extremistas são minorias nos dois lados.
E, quanto a paz chegar, um dos seus heróis será meu companheiro vencedor deste distinto prêmio, o meu amigo Professor Sari Nusseibeh. Sari combate há décadas por uma paz pragmática, uma paz de compromisso, um paz onde cada lado abre mão, pelo bem do futuro, de alguns de seus sonhos e alguns dos seus sentimentos de direitos históricos. O livro de Sari Nusseibeh, Once Upon a Country, engaja-se num amplo e fascinante diálogo com o meu A Tale of Love and Darkness (Um Conto de Amor e Escuridão). Sari e eu nascemos a apenas um quilômetro ou dois um do outro; ele no bairro de Sheikh Jarrah e eu em Kerem Avraham, uma caminhada de 20 minutos. Ainda assim, eram dois mundos, separados por muros de ódio, medo e violência, O excelente livro de Sari ajudou-me a entender melhor o outro lado da história, e a ver a similitude por trás da diferenças e o comum atrás da disparidade. É escrito com honestidade, tristeza, coragem e devoção à idéia de compromisso e paz.
Se vocês sentassem Sari Nusseibeh comigo numa ante-sala deste salão, poderíamos – em poucas horas – definir as linhas gerais de um acordo de paz entre Israel e Palestina. Nós dois acreditamos num compromisso histórico e em coexistência; e ambos acreditamos que não podemos permitir que a angústia do passado estrangule a promessa do futuro. É meu grande prazer e honra dividir o prêmio Siegfried Unseld com o meu amigo Sari Nusseibeh. Mas o verdadeiro grande prêmio que eu tenho a esperança de dividir com Sari um dia é a própria paz.
[ Discurso de Amos Oz ao receber o Prêmio ‘Siegfried Unseld’ em 28/09/10, junto com Sari Nusseibeh, em Berlim, ]
Este artigo, assim como “A magia dentro de nós”, discurso de Sari Nusseibeh na ocasiaão da premiação, foram publicados pela New York Review of Books e traduzidos por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR.