Sinopse (Livraria Cultura)
A narrativa de ‘Fogo Amigo’ é pontuada pelo acendimento gradual das velas do candelabro festivo do Hanukah, e acompanha sete dias decisivos na vida de um casal israelense de meia-idade.
Yaari, o protagonista, está às voltas com os cuidados exigidos pela doença do pai e as visitas devidas aos filhos e netos, enquanto os uivos lancinantes emitidos pelo poço de elevadores de um edifício ultramoderno recém-construído em Tel Aviv desafiam sua reputação de bem-sucedido engenheiro projetista. Sua esposa Daniela, professora do ensino secundário, aproveita o feriado escolar para viajar até um lugarejo perdido nas savanas da Tanzânia, procurando no silêncio de Yirmiyahu, ex-cunhado decidido a cortar todos os vínculos com Israel, os traços fugidios da presença da irmã morta.
Ecoando os guinchos do elevador semiclandestino instalado por seu pai num velho apartamento em Jerusalém, assim como os lamentos das numerosas famílias israelenses dilaceradas pela violência da guerra, os misteriosos ruídos que perturbam a frágil tranquilidade do feriado de Yaari sinalizam a alegorização dos cenários do livro.
Nas desoladas paisagens africanas, a ancestralidade arqueológica da espécie humana convive com as sombras do passado da pequena família israelense, perturbada pela morte de um de seus membros pelo ‘fogo amigo’ das forças de ocupação na fronteira da Cisjordânia. Os acontecimentos soterrados na memória de Yaari e Daniela afloram de maneira inusitada, formando uma totalidade apenas resolvida, como numa composição em contraponto, com o esperado reencontro das vozes amorosas do casal.
Crítica (Alcir Pécora – especial para a Folha de São Paulo)
Yehoshua alterna ação entre Israel e África em romance
“Fogo Amigo – Um Dueto”, romance do escritor israelense A. B. Yehoshua (1936), passa-se durante os oito dias de Hanukah, festa judaica de refundação do Templo, quando é costume acender, num candelabro próprio, uma vela para cada dia.
Um casal sexagenário tem, então, o seu convívio alterado: a mulher decide ir à Tanzânia, a fim de partilhar com o cunhado, antigo diplomata, o luto pela irmã falecida, enquanto o marido fica em Tel Aviv, a cuidar dos negócios e do restante da família. Todo o livro se dispõe como uma alternância de capítulos entre o que se passa em Israel e África, como contraponto entre os berços do judaísmo e o da humanidade.
As duas séries têm interesse, mas suscitam narrativas de tons bem diversos. O marido engenheiro, homem prático, está às voltas com problemas de sua empresa de projetos de elevadores: o barulho dos ventos que penetram os fossos de um arranha-céu recém-construído; a garantia eterna dada por seu velho pai ao elevador privado da antiga amante; a encomenda de um elevador secreto pelo Ministério da Defesa.
A mulher, mais intelectualizada, lida com assuntos íntimos: a retomada do sentimento de luto pela perda da irmã, diluído no dia-a-dia de professora, mulher e avó; a revolta do cunhado contra Israel e os profetas bélicos de sua religião, causada tanto pela morte do filho por “fogo amigo” – isto é, pelas próprias tropas israelenses, durante uma emboscada fracassada nos territórios ocupados- , como pela consequente perda de sexualidade e da vontade de viver de sua mulher. A pontuar o percurso doloroso há uma irônica missão arqueológica de “scholars” africanos em busca de um ramo interrompido na escala evolutiva entre o macaco e o homo sapiens.
EXORCIZAR OS ESPÍRITOS
Nas duas histórias existem duas personagens envoltas em mistério e sofrimento, as quais guardam propriedades terapêuticas, taumatúrgicas até. Pelo lado israelense, é a especialista em ouvir barulhos nos elevadores e identificar suas causas: quase anã, órfã, sem idade definida; da parte africana, uma sudanesa alta, enfermeira e motorista da expedição, cujos parentes foram todos assassinados num massacre de civis.
São mulheres sem sexo e sem pertença, mas são as únicas que exorcizam os ventos e os espíritos revoltos -referidos pelo mesmo termo hebraico- que assombram as duas séries narrativas. Afora tais simetrias, não há muito em comum nas duas histórias.
O “dueto” entre elas não chega a se afinar, a menos que se force a ponto de produzir o que é ruim para ambas: sacrificar os acontecimentos, minuciosamente descritos, em favor de elementos simbólicos de uma tese pouco desenvolvida.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp
FOGO AMIGO
AUTOR A. B. Yehoshua
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Davy Bogomoletz
QUANTO R$ 54,50 (400 págs.)
AVALIAÇÃO bom