Em vez de insistir, por anos, sobre o número e a identidade dos prisioneiros do Hamas que serão libertados em troca de Gilad Shalit − prisoneiros que Israel acabará soltando de qualquer jeito no final, num acordo ou outro – talvez Israel devesse agora voltar-se ao Hamas com uma oferta bem mais ampla e atrativa. A oferta de um memorando de entendimento que incluiria um cessar-fogo total, o fim a todas atividades terroristas de Gaza e o levantamento do bloqueio. Um acordo no qual a questão de Gilad Shalit e dos prisioneiros do Hamas seriam apenas uma cláusula entre muitas, e que seria implementado imediatamente com o início de negociações.
É claro que na situação conhecida – em outras palavras, a situação que estamos acostumados a ver – tal idéia soa irrealista. Mas será tão irrealista? Com a ajuda de mediadores estrangeiros, serão realmente incapazes o Estado de Israel e o governo do Hamas de chegarem a um acordo parcial mas eficaz deste tipo? Tal acordo estaria “legitimando uma organização terrorista”, como diriam os oponentes a qualquer contato com o Hamas, ou seria de fato uma ação realista de um país que tenta com vontade e flexibilidade melhorar sua difícil situação? Em qualquer caso, não estariam estas negociações que atualmente estão sendo conduzidas com o Hamas, de certa forma, já “legitimando uma organização terrorista”?
E por que fazê-lo apenas para a (muito desejada) libertação de Gilad Shalit, quando é possível – a um preço que no fim não seria muito mais alto do que Israel acabará pagando – criar uma situação na qual as vantagens e conquistas para Israel seriam bem maiores?
Israel não será capaz de chegar a uma paz completa e duradoura com o Hamas num futuro visível. Quem sabe se ela será conseguida mesmo num futuro distante? O Hamas não reconhece Israel e condiciona um acordo de paz à aceitação do princípio do “direito de retorno” e à retirada completa para as linhas de 1967. Não há chance de que Israel concorde com essas condições. Mas, por que Israel não poderia tentar alcançar ao menos o que é possível nesta conjuntura, na sua situação difícil com o Hamas? Talvez se revele que mesmo o Hamas está disposto – e até espera – por algum movimento dentro da camisa de força que eles resolveram vestir na sua inflexível recusa?
É embaraçoso observar o padrão de comportamento ao qual Israel está repetidamente condenado, como na rejeição total, por décadas, da Organização de Libertação da Palestina como interlocutora, na evacuação dos assentamentos da Faixa de Gaza em 2005, na retirada apressada do Líbano em 2000, e no episódio da flotilha, que levou ao levantamento do bloqueio em Gaza.
Por anos, Israel apresentou uma posição inflexível, rígida e unilateral. Cada vez mais impôs a força e declarou que não iria conceder nem um centímetro e, de repente, a situação reverteu-se em um dia. A terra – ou o mar – move-se sob seus pés e Israel é forçado a conceder bem mais do que teria concedido em negociações (e, claro, recebendo retorno menor por essas concessões).
E mesmo na questão dolorosa e frustrante de Gilad Shalit, parece que as coisas estão indo nesta direção. Mas talvez desta vez, com ambos os lados atolados em suas posições e sem soluções no horizonte, possamos expandir nosso ponto de vista, libertar-nos das condições costumeiras e determinar o estímulo à mudança e a sua magnitude por nossa própria iniciativa (ah, uma palavra esquecida!).
O Hamas não concordaria? Possivelmente. Vamos desafiá-los, talvez tenhamos uma surpresa… O Hamas é realmente um governo fanático que frequentemente trabalha de modos abomináveis e desumanos, mesmo com relação aos próprios palestinos. Mas, isto pode ser uma justificativa para a total paralisia israelense? A paralisia, de fato, não é uma paralisia, porque se inclui num processo no qual Israel está cada vez mais sendo forçado a se retirar de suas posições sem receber nada em troca. Como na retirada de Faixa de Gaza e no episódio da flotilha.
Ninguém está tentando mudar esta situação calcificada. Trazer um processo que talvez possa forçar o Hamas a fazer alguma mudança em seu modus operandi – não estou falando de sua atitude – em relação a Israel. Ninguém está fazendo nada para melhorar a situação de Israel. Dizer “não” não é uma política, é um engessamento mental. Na verdade, é uma rejeição à nossa própria liberdade de ação.
Os argumentos costumeiros, apresentados à população israelense como axiomas sagrados – como “negociações com o Hamas minariam as lideranças palestinas mais moderadas na Cisjordânia” – devem também ser reexaminadas. Talvez também aqui – assim como no bloqueio de Gaza – revele-se que por anos fomos carregados com clichês que não são aplicáveis a todas as nuances e possibilidades da situação.
E talvez se revele que negociações com o Hamas, para algum tipo de acordo, poderiam de fato reforçar os líderes da Autoridade Palestina no sentido de avançar no processo de paz com Israel. E talvez surja uma dinâmica que ponha em movimento um processo de reconciliação entre as duas partes mutuamente hostis do povo palestino, sem o qual nenhum acordo de paz estável será alcançado, nem mesmo com o presidente palestino Mahmoud Abbas e sua gente.
Não é irrealista assumir que a forma mais eficaz de reduzir o poder e influência do Hamas em Gaza, e de restabelecer gradualmente suas dimensões naturais, é criar condições de paz, prosperidade e construção de uma nação para os palestinos na Cisjordânia. Quando alguns gazanos conseguirem ver alguma esperança no seu futuro, a atração do fundamentalismo e dos fanatismos religiosos e nacionalistas irão declinar por si. Podemos ir além e imaginar uma situação na qual o retorno a Gaza de todos os prisioneiros do Hamas não iria criar, imediata e inevitavelmente, uma situação na qual todos eles retomariam seu envolvimento no terror. Existe até mesmo uma chance de que na nova situação que será criada, o terror e a violência deixem de ser sua opção natural.
Todos estes são pensamentos com os quais se pode concordar ou descartar. Ou simplesmente se fechar os olhos. Mais do que as sugestões em si, eu gostaria de dirigir a atenção para o que as motiva: uma sensação de que por vários anos Israel se enredou numa paralisia que gradualmente o está imobilizando, até o ponto onde qualquer um que tenha olhos identifica apatia e impotência e mesmo um enfraquecimento do saudável instinto de viver. Este é o verdadeiro perigo para Israel, muito mais destrutivo do que a ameaça do Hamas.
O primeiro-ministro de Israel deveria ter, há muito tempo, colocado nas mãos o mosaico fixo e calcificado do conflito, para tentar criar um novo cenário com essas mesmas peças familiares, por mais depressivas que possam ser. Afinal, é precisamente este o papel de um líder. É difícil entender por que Israel – o país mais forte na região – não tenta retomar o controle do seu destino pondo processos em movimento em vez de deixar seu futuro nas mãos de outros.
Por que insistir em barganhar, por décadas, sobre detalhes que são importantes mas não cruciais, em vez de procurar trazer uma mudança fundamental no cenário maior?
No final, a tendência tradicional dos líderes israelenses a encontrar razões e desculpas para a sua inatividade e sua incapacidade de distinguir entre problemas e perigos reais e imaginários conduz Israel a dizer um absoluto e generalizado “não” a toda realidade, e às pequenas oportunidade que aparecem de vez em quando. Esta recusa obstinada já foi além de qualquer limite.
Em termos simples de sobrevivência, nós não podemos mais suportar isto. O que mais precisa acontecer para nos chacoalhar e levantar o bloqueio que impusemos a nós mesmos por tantos anos?
DAVID GROSSMAN é um dos três expoentes atuais da literatura contemporânea israelense, ao lado de Amós Oz e A. B. Yeoshua. Como eles, é veterano ativista do Movimento PAZ AGORA. Foi signatário da DECLARAÇÃO CONJUNTA ISRAELENSE-PALESTINA e do ACORDO DE GENEBRA.
Publicado no Haaretz em 06|07|2010 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR