O cenário: a 500 metros da estrada fica uma cidade-fantasma palestina cuja construção foi suspensa durante a intifada. Atrás dela está uma colina e, mais atrás, fica Bir Zeit. Há 20 casas, quase concluídas por fora, escuras por dentro. Também há uma estrada poeirenta que leva à estrada principal para o quarteirão semiconstruído, que está fechado por um portão e um cadeado de ferro. Há também quatro aquecedores solares de água.
“Tem aquecedores”, Hagit Ofran explica pacientemente. “Mas são de palestinos. Os dos colonos são diferentes.
Como você sabe?
Ofran: “A gente aprende”.
Ofran veio até aqui após receber a informação de que colonos estavam se instalando nas casas vazias. Por enquanto, de longe, ela não localiza qualquer sinal deles, porém decide se aproximar. No caminho para a estrada de terra, ela pára e diz:
“Uma cápsula de bala. Soldados estiveram aqui. E aqui está um isqueiro. Soldados esperaram aqui por colonos. Se encontrarmos aqui balas de borracha, saberemos que houve uma manifestação de palestinos e os soldados as atiraram neles”.
O que mais você está vendo?
“Estou olhando as estradas de acesso. Elas contam muitas histórias. Veja a estrada de terra que liga a estrada principal ao bairro fantasma. Está fechada para carros. Um colono teria que deixar o carro e continuar a pé. Uma família não iria a pé. Só jovens viriam aqui. Tudo isto indica que colonos teriam dificuldade em manter uma presença aqui de forma contínua e duradoura. Diria que este bairro-fantasma é um “camping” para jovens que iriam e voltariam daqui”.
Mais alguma coisa?
“Às vezes parece que os colonos estão criando mais caminhos. Isto pode ser uma informação importante. Mas aqui eu vejo que no meio da estrada de terra, no lugar onde os pneus de carro passariam, há uma grama bem crescida. O que significa que o caminho não foi criado recentemente”.
Todo esse mapeamento sem fim não te cansa?
“Não, porque se pode contar toda a história sem todos os detalhes. Não é que a população israelense tenha que se interessar por cada oliveira ou novo trailer, mas juntos eles mostram um retrato geral da expansão das construções na Cisjordânia, e sobre o apoio – ou não – por parte do exército e do governo
Messias de Leibowitz
Hagit Ofran chefia a Equipe de Monitoramento de Assentamentos do PAZ AGORA – o projeto não governamental mais abrangente de inspeção das obras em assentamentos da Cisjordânia. O festival de cinema “DocAviv”, que começou ontem na Cinemateca de Tel Aviv irá apresentar um filme que descreve o trabalho de Ofran: Lea Klibanoff, a diretora, resolveu chamá-lo de “Hamashiah Tamid Yavo (O Messias Sempre Chegará)” para enfatizar a chegada futura do messias no qual o avô de Ofran, o famoso filósofo e cientista Yeshayahu Leibowitz, acreditava.
Ofran, 35, é filha de Mira Ofran, a terceira dos seis filhos de Leibowitz. Ela recorda vivamente do dia em que seu avô faleceu, quando ela tinha 19 anos:
“Eu estava para viajar com o exército. Estava de uniforme. Minha avó Greta telefonou e disse que não conseguia acordar o meu avô. Minha mãe saiu e um pouco depois me ligou contando que ele tinha morrido. Quando isso aconteceu, não perdi a força da conexão que havia entre nós. Mas quanto mais o tempo passa, mais examino minha vida, mais eu vejo a influência que ele teve sobre mim”.
“Leibowitz era o homem mais ocupado do mundo, mas sempre tinha tempo para nós”, continua. “Ela brincava sobre isto e repetia o provérbio: ‘Numa casa vazia não há lugar para uma vassoura’, querendo dizer que alguém que não faz nada não tem tempo para nada e alguém que é ocupado todo o tempo encontrar tempo para tudo. Pessoas de todas as idades se aproximavam na rua para conversar com ele. No meio da conversa ele dizia: “você está convidado a continuar esta conversa na minha casa’. Sempre havia uma visita em casa, mas ele sempre tinha um lugar especial para os netos. Quando a gente chegava, ele polidamente interrompia o visitante e virava para nós”.
Ofran é uma pessoa muito independente, ética e determinada. Aos 15 anos, ela queria ser igual aos homens na observância das mitzvot (mandamentos religiosos).
“Eu queria viver num mundo de igualdade entre pessoas, colocar os tfilin (filactérios) e ser contada num minian (quorum mínimo para orações). Dizia para mim mesma que se os homens da minha comunidade acordavam toda manhã para rezar na sinagoga, eu também tinha que levantar. Alguma mulher tinha que começar!”.
Aos 23 anos, Ofran deixou de ser observante. Alguns anos depois, uniu-se a um grupo de voluntários da Equipe de Monitoramento de Assentamentos, que fora iniciado no início dos anos ’90 por voluntários do PAZ AGORA. Eles coletavam informações de projetos, pesquisavam locais de construção e ao longo do tempo se tornaram praticamente a única fonte de informação, para a população israelense, sobre a construção de assentamentos. O projeto cresceu e no meio dos anos ’90 criou-se um cargo administrativo permanente. Ofran diz que Dror Etkes – seu antecessor no cargo e atual coordenador do ‘Projeto de Terras’ do Yesh Din (Existe Justiça), ONG que defende direitos de palestinos – “contribuiu com anos de desenvolvimento e muito profissionalismo.”
Durante a segunda intifada, quando ficou mais perigoso andar pela região, o movimento alugou um pequeno avião para sobrevoar os assentamentos a baixa altitude. Ofran, que então trabalhava com Etkes como voluntária, lembra de ter participado de um dos vôos: “O avião parecia com o carro em que estamos sentados agora, exceto pelo fato de ter asas. Abríamos a janela e tirávamos fotos. Estes levantamentos aéreos eram muito eficientes. Em 3 ou 4 horas podia-se fotografar tudo que acontecia no campo”.
Mas, seis anos atrás, a Força Aérea ordenou uma parada de todos vôos em baixa altitude na Cisjordânia, por causa de riscos de segurança. O PAZ AGORA encontrou outra solução: fotos aéreas fornecidas por uma empresa privada.
Ofran, que substituiu Etkes em 2007, sai para uma rodada na Cisjordânia uma vez por semana. “Por que você não me deixa entrar?” é uma das questões que são repetidas freqüentemente nessas saídas – quando ela encontra guardas que a reconhecem nos portões de assentamentos, ou ouviram falar dela ou a viram numa foto. No documentário “O Messias Sempre Chegará”, esses cenários tornam-se ainda mais dramáticos: a sua câmera foi roubada por um colono em Modi’in Ilit, quando estava sendo usada para filmar palestinos que estavam sendo agredidos com violência. A câmera foi devolvida mais tarde.
De sua parte, Ofran diz que experienciou “momentos desagradáveis, incluindo cuspidas e xingamentos em várias ocasiões, mas nunca se sentiu em real perigo”.
Noutros dias, no escritório, ela monta um retrato das obras nos territórios a partir de todas as fontes de informação que tem: levantamentos de campo, fotos aéreas que são comparadas a fotos mais antigas, telefonemas de outras ONGs, ligações de israelenses com consciências pesadas e, freqüentemente, telefonemas de colonos envolvidos em disputas com seus vizinhos ou com seu Conselho loca
Ofran: “Além de publicar atualizações e relatórios, comunicamos atividades ilegais às autoridades, numa base caso-a-caso – ao Ministério da Defesa, à Administração Civil, à polícia israelense, ministros do governo e outras organizações. Só em pouquíssimas ocasiões, quando não há nenhuma forma de fazer com que as autoridades prestem séria atenção, apelamos para a Suprema Corte de Justiça”.
Obstáculo Burocrático
O painel reunido por Ofran é mais revelador do que qualquer imagem que israelenses possam obter de uma instituição governamental.
“A Administração Civil é responsável por inspecionar a construção nos assentamentos”, explica. “Além disto, todos os ministérios estão envolvidos na construção – cada um em sua área específica. Assim, o governo deveria ter informações muito claras e abrangentes. Mas eles não estão interessados em reunir tudo isto e revelar um retrato claro. Preferem deixar [as informações] como estão, todas espalhadas e dispersas.
O obstáculo imediato é burocrático: após várias solicitações nossas, descobrimos que os funcionários do governo não tinham acesso a documentos que dessem uma idéia detalhada dos investimentos nos assentamentos. É claro que a informação poderia ser encontrada. “Os dados devem estar numa planilha Excel e só precisam ser extraídos e organizados”.
E também existe o argumento dos “riscos à segurança”. Em 2006, Ofran e Etkes formularam o documento “Uma Violência Leva a Outra”, que aparece no site do PAZ AGORA. Àquela época, este era o relatório mais detalhado jamais publicado com respeito ao status das terras na Cisjordânia, sejam ‘terras públicas (state lands)’ – cujo status é controverso, de propriedade de palestinos, ou outras propriedades.
“Como base para escrever esse relatório,nós queríamos ter um mapa, mas a Administração Civil se resolve a nos fornecer um por temor, disseram, de ameaçar as relações externas de Israel e sua segurança”, explica Ofran. “Fomos à Suprema Corte arguindo que isto era uma violação da lei de liberdade de informação, e a Corte ordenou à Administração Civil que fornecesse o material. Até esse momento, os israelenses não podiam descobrir sobre quantas terras privadas palestinas foram construídos assentamentos. Desde então, os israelenses ficaram sabendo que cerca de 1/3 dos assentamentos estavam construídos sobre terras privadas de palestinos”, o que é vedado pela lei israelense”.
A questão mais importante é, será que mais de 1/3 dos israelenses ligam para isso? E será que esses que se preocupam fazem algo quanto a esta informação?
“Eu esperava que, quando o relatório foi publicado, haveria um terremoto politico. O jornal Haaretz o publicou na primeira página, mas ele não foi mencionado no Yedioth [Ahronot] e houve apenas uma pequena nota no Maariv. A radio ‘Reshet Bet’ só nos contatou após saber que uma citação sobre o relatório no ‘The New York Times’ estava provocando ondas. É muito frustrante, quando a verdadeira audiência almejada é a população israelense e não a americana. Porque nenhum [presidente Barak] Obama fará a diferença. Se os israelenses não quiserem devolver os territórios, não o farão.
Acho que aprendi que a questão da legalidade nos territórios não interessa à maior parte dos israelenses. Por isto é tão fácil construir outposts. Eu retrocedi nas minhas ambições. Estou menos interessada em mostrar aos israelenses o quanto a ocupação é terrível – porque isto apenas os faz responder com justificativas e defesas. Prefiro mostrar que devolver os territórios é importante para Israel. Procuro expor o quão mal o governo está servindo a população,o quanto a está enganando, e qual o risco em que ele nos coloca”
No tempo do seu avô, não havia um acesso direto assim ao tipo de informação que você está fornecendo, mas ele foi alguém que criou um ethos para mapear o nosso caminho. Hoje, parece que os ‘profetas da esquerda’ foram substituídos por advogados e cartógrafos, gente como você. Quanto você sente falta da voz dele quando está investigando obras nos territórios?
“A sua voz flui nas minhas veias e não o esqueço. Mas é verdade que, no discurso público, esta voz tem dificuldade em ser ouvida. Eu também abri mão do discurso ético e em vez disso trato do que está acontecendo nos territórios como sendo um tipo de ‘serviço a clientes preguiçosos”.
Você já pensou sobre a peculiaridade da atitude da esquerda secular com relação ao seu avô? Alguns que se definiram como totalmente seculares aceitaram a autoridade moral de alguém que era religioso em tudo.
“Entre os seculares que admiravam o meu avô havia gente que sabia bastante de judaísmo e podiam entender o significado profundo das suas palavras. Mas também havia muitos outros que não sabiam nada disso, o que era muito surpreendente e também frustrante. O judaísmo secular tem cerca de 200 anos de vida. Ainda não tem conteúdo suficiente, ainda está tomando forma. Nos últimos anos, ele se preocupou com a construção do Estado de Israel. Agora está atento para a ocupação. Concordo que existe um receio de que ele poderia chegar a um ponto onde não teria mais uma verdadeira identidade”.
Muitos seculares falam hoje sobre uma perda de confiança nos palestinos.
“As pesquisas mostram que mais de 60% dos israelenses estão prontos para um acordo de paz com os palestinos mesmo que não confiem neles. Se [o primeiro-ministro Benjamim] Netanyahu fosse amanhã entregar os territories, a população que não acredita num acordo o apoiaria”.
Engôdo Disseminado
Enquanto estas linhas eram escritas, dezenas de novas casas e apartamentos estavam sendo construídos na Cisjordânia, nesses tempos de ‘congelamento de construção’. Na verdade, Ofran continua descobrindo todos tipos de ‘jeitinhos’ criativos. Por exemplo, o congelamento proíbe a construção de novos projetos, mas permite o prosseguindo da construção de prédios cujas fundações já estivessem escavadas. Há poucos meses, ela descobriu um novo fenômeno: fundações falsas. Desde então, ela contou 170 delas.
Ofran: “Eles despejam uma camada fina de concreto no chão para similar fundações feitas, ou colocam tocos barras de ferro sobre essas camadas para similar o início de pilares”.
Ela chama esse tipo de engodo de ‘brincadeira de crianças’ e reporta um outro tipo similar de jogo no final de 2007. Então, o governo havia proibido a transferência de novas casas pré-fabricas para os assentamentos. Em resposta, os colonos importaram partes de tais casas (paredes, pesos, janelas) e as montavam no local. Em seis meses, conseguiram construir mais de 100 casas novas desta maneira.
No início de março deste ano, o jornalista Akiva Eldar relatou no Haaretz outro tipo de ‘brincadeira de criança’: realizar trabalhos no meio da noite, quando não há vigilância. Ofran diz que, em alguns casos, quando o rabino Avi Gisser de Ofra dava permissão, o trabalho era até realizado no Shabat.
Ela também adquiriu sensibilidade com relação a terras sem sinais externos de construção. Mas este fenômeno é sério demais para ser chamado de ‘brincadeira de criança’.
“Muito do investimento dos últimos anos nos territórios foi feito na ‘ocupação agrícola’. Ofran explica. “Em vez de construir um outpost, eles tomam terra e a cultivam. Em termos de roubo de terras, é o mesmo que construir um outpost, mas é menos visível, difícil de quantificar e as normas de congelamento não se aplicar. Uma vasta quantidade de terra está envolvida e ainda estou nos estágios iniciais de pesquisa e mapeamento”.
“Esta é uma enganação em escala enorme. Mas é um auto-engano”, declara. “Somos um Estado independente e soberano, e assim enganamos a nós mesmos, e não os ingleses [mandatários da Palestina até 1948], como com as manobras de ‘torre e paliçada’.
“Os colonos são os verdadeiros pós-sionistas. Em nome da Terra de Israel estão dispostos a perder o Estado de Israel que não mais lhes importa. Só a terra é importante para eles, o legado de nossos antepassados. Eles não renunciarão a ela, mesmo ao custo de terem que viver como minoria, sob domínio estrangeiro”.
Entrevista de HAGIT OFRAN por Gitit Ginat. – Publicada no YNet em 06|05|10 e traduzida por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR.