Cena de Valsa com Bashir em que palestinos deixam campo de refugiados. Lembranças de um período traumático
Guerra e paz nas telas
• Leia o primeiro capítulo da HQ feita a partir do filme Valsa com Bashir
Em 1982, o israelense Ari Folman tinha 19 anos e servia o Exército de seu país. Participou da invasão do Líbano e esteve entre as tropas que ocuparam a capital do país, Beirute. Na ocasião, Folman presenciou um dos episódios mais traumáticos da história do Oriente Médio: o massacre de Sabra e Chatila. Sabra e Chatila eram dois campos de refugiados palestinos no subúrbio de Beirute. O presidente eleito Bashir Gemayel, então com 34 anos, era um dos principais comandantes da milícia cristã Falange, criada por seu pai e apoiada por Israel. (No Líbano, os conflitos políticos alinhados à religião entre cristãos, judeus e muçulmanos sunitas e xiitas geravam violência crescente desde os anos 50). Gemayel foi morto num atentado no dia 15 de setembro, antes de sua posse. Integrantes da Falange atribuíram o atentado a radicais palestinos, invadiram o campo de refugiados e mataram, com requintes de crueldade, entre 700 e 3 mil palestinos — o número não se sabe ao certo, pois vários corpos foram queimados. Entre eles, velhos, mulheres e crianças. O Exército israelense, que ocupava o país, pouco fez para evitar o massacre. O jovem soldado Ari Folman foi, assim, testemunha ocular de uma história de crueldade.
Folman é hoje um dos principais cineastas israelenses e resolveu ajustar contas com o próprio passado por meio de um filme. Desse ajuste de contas resultou o impressionante Valsa com Bashir, que estreia neste mês no Brasil. O filme ganhou vários prêmios internacionais e foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. De tintas autobiográficas, narra a história de um soldado que presenciou o massacre de Sabra e Chatila e, traumatizado, apagou o episódio da memória. Tentando recordar sua participação na guerra, o protagonista parte em busca de antigos companheiros de batalha. A cada depoimento, começa a colar seus pedaços de lembrança e delírio. Detalhe: Valsa com Bashir é um desenho animado, o primeiro filme de animação israelense exibido em grande circuito internacional. O recurso à linguagem provoca na tela um efeito magistral. Ele torna ainda mais impressionantes as lembranças e os delírios do personagem. A mistura entre ficção e documentário — já que os depoimentos de companheiros de Folman são reais — é outro dos trunfos do filme.
O cinema israelense vive um momento parecido com o que o cinema americano viveu nos anos 70 — e Valsa com Bashir é uma produção altamente representativa dessa fase. Como os Estados Unidos nos anos 70, que viram o surgimento de talentos como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Robert Altman, Israel tem hoje uma geração brilhante. Nomes como Eran Riklis (autor de Lemon Tree, 2008, e A Noiva Síria, 2004), Erez Tadmor e Guy Nattiv (Estranhos, 2007), Eran Kolirin (A Banda, 2007), Eytan Fox (The Bubble, 2006), Yoram Honig (Uma Lição de Paz, 2006) e B. Z. Goldberg (Promessas de um Novo Mundo, 2001) são cada vez mais premiados em festivais internacionais. A outra semelhança é o tema. Nos anos 70, nos Estados Unidos, a Guerra do Vietnã era uma obsessão dos cineastas, e eles falavam do assunto de maneira contundente e criativa, em obras como Apocalypse Now, de Coppola. O cinema israelense atual também tem a obsessão da guerra e foge ao clichê na hora de retratá-la.
Veia Pacifista
Os filmes de guerra israelenses apresentam uma tremenda diversidade de enfoques e gêneros. Lemon Tree, de Eran Riklis, é um drama sensível que em alguns momentos se aproxima da sátira. O filme tem como protagonistas o ministro da Defesa de Israel e sua vizinha, uma agricultora palestina que tem uma plantação de limões. O serviço secreto de Israel suspeita que ela possa esconder terroristas em seu pomar e inicia o processo de desapropriação do terreno. O filme satiriza a um só tempo a paranoia israelense e a ânsia de fabricação de mártires pelos grupos armados palestinos — a protagonista, Salma Zidane (interpretada pela atriz Hiam Abbass), contrata um advogado com ambições políticas, que vê no episódio a possibilidade de ganhar densidade eleitoral.
Na seara do documentário, o título mais conhecido dessa safra é Promessas de um Novo Mundo, de B. Z. Goldberg. O filme entrevista crianças israelenses e palestinas. No início, meninos e meninas de ambos os lados reproduzem os preconceitos que aprenderam em casa e na escola. A certa altura, o diretor promove uma reunião entre os protagonistas. É um momento emocionante, em que fica patente o absurdo do ódio nutrido por ambos os lados.
O mais consagrado de todos os diretores israelenses, Amos Gitai, também passou a tratar do tema da guerra em seus filmes, de forma igualmente criativa. Free Zone é um road-movie em que três mulheres — uma judia, uma americana que mora em Israel e uma palestina — se encontram em um carro. No enredo, Gitai mostra o conflito através de um olhar feminino e intimista.
São filmes muitos diversos, mas pode-se dizer que têm uma abordagem comum. Em todos eles, o conflito no Oriente Médio aparece como uma guerra absurda, em que todos parecem ter motivos para revidar um ataque anterior, e isso cria um ciclo de violência sem sentido. Assim o cinema israelense atual, como os filmes americanos dos anos 70, tem uma veia pacifista. Eles defendem a ideia que intelectuais israelenses, como o escritor Amós Oz, e palestinos, como o falecido Edward Said, apontaram como a única solução possível para o conflito: dividir a terra, praticar a tolerância e conviver civilizadamente.
[ publicado na edição de março|2009 da Revista BRAVO! ]