O medo de Israel desaparecer do mapa


Dizem que, após ler o relatório definitivo da Comissão Winograd, o primeiro-ministro israelense chamou [o ex-ministro da defesa] Amir Peretz e lhe disse: “Saímos desta!”.

É um boato no qual não acredito, pois ainda que se tenha sentido um tanto aliviado naquele momento, Ehud Olmert sabia muito bem que “não havia saído desta” e que essa guerra do Líbano o perseguiria para sempre. E não só a ele: nenhum dos feridos na guerra, claro, tampouco “saiu desta”, nem os muitos cidadãos israelenses que passaram semanas inteiras em abrigos, nem aqueles que sequer tinham abrigos para se proteger, e nem mesmo os que assistiram pela TV a incapacidade do Estado e do Exército de defendê-los.

Não, não saímos desta porque ainda não enfrentamos, de fato, a situação. Ainda não ousamos assumir as profundas e terríveis conseqüências dessa guerra. É verdade que nosso medo de desaparecer do mapa nos tem acompanhado de maneira quase permanente; é como uma nuvem eternamente pairando sobre nós, mas talvez, justamente porque o medo nos ameace tanto, tenhamos sido incapazes de enfrentá-lo de verdade, de forma concreta e sensata, e por isso tampouco foram dados os passos necessários para superá-lo.

 

Risco Fatal 

E não me refiro apenas aos meios militares (com os quais também falhamos), porém a uma mudança profunda e ampla na consciência dos que têm a obrigação de efetivamente evitar o risco à existência de Israel.

A última guerra deixou muito claro que no passar dos anos se debilita – mais e mais – aquilo que impulsionou e guiou Israel no seu início: a coragem, a fé em si, em seus objetivos e valores, o desejo de criar nesta terra um lugar que fosse algo mais que um refúgio para os judeus, um lugar onde fosse possível viver a especificidade judaica no marco de um Estado moderno.


Agora, 60 anos depois da sua criação, Israel deve reformular-se para acender de novo a chama do seu ímpeto. Sem um processo de criação renovadora será difícil ir em frente. Pode chegar o momento em que o país, tendo que enfrentar tantos obstáculos, internos e externos, já não tenha forças para superá-los.

Os países que conseguiram viver com certa tranqüilidade, países que não vêem ameaçada sua própria existência, talvez não precisem proteger constantemente o vínculo com a terra e estimulá-lo em cada geração. Mas Israel não se pode permitir essa tranqüilidade e deve lutar sem cessar não só para manter um determinado poderio militar como para voltar a ser um lugar com significado, algo mais que um refúgio ou uma fortaleza.

Israel deve converter-se de novo num lar que seus habitantes sintam que é seu, e não porque não tenham para onde ir, mas porque esse lugar possua para eles um significado que não encontram em qualquer outra parte do mundo.


Israel é hoje um país insuportavelmente confuso. Respira-se um ar pesado, que não começou com Ehud Olmert nem com a última guerra, embora a conduta de Olmert em muito tenha contribuído para o quadro atual. Às vezes parece que perdemos o instinto natural de sobrevivência que todo povo possui, e que marca a ordem de prioridades adequada, servindo para resolver os conflitos internos a fim de evitar a perda total. 

Atualmente temos a oportunidade de ver como age no país um gene destrutivo, que conhecemos bem, e que é capaz de nos levar a uma guerra fratricida. É como se depois de mais de cem anos de incessantes lutas políticas, guerras e infinitas operações militares punitivas, a suspeita e a hostilidade com que nos habituamos a encarar nossos inimigos se tivessem convertido em nossa forma quase automática de pensar e agir com o outro, com todo aquele diferente de nós, embora este outro seja, digamos, “um dos nossos”.


Carecemos de compaixão.

Não temos piedade de nós mesmos e muito menos dos outros. Não existe o compromisso recíproco exigido pela situação delicada em que nos encontramos. E parece, muitas vezes, que não respeitamos como deveríamos o direito que nos foi concedido de possuir um Estado judeu soberano depois de 2.000 anos sem a possibilidade de tê-lo.

Portanto, a pergunta que devemos nos fazer não é se Olmert pode continuar no cargo, agora que a comissão Winograd deu-lhe uma escapatória. A pergunta é se ele é a pessoa certa para levar adiante nosso processo de cura. Se ele é ­­– considerando seu estilo, as mensagens que seu governo transmite à sociedade, a desconfiança que a maioria dos cidadãos nutre por ele, sua conhecida precipitação na hora de agir e, por último, as sombras que o cercam em relação aos acontecimentos antes e depois da última guerra do Líbano – o líder adequado para nos colocar no rumo certo depois de tantos anos à deriva. 

Se a resposta for afirmativa, será preciso morder a língua e deixar que ele continue a nos governar. Também seria preciso admitir que o melhor é seguir sendo governados por Olmert, já que a segunda parte do informe Winograd não o incrimina diretamente e perigos imediatos estão à nossa espreita.


A sociedade israelense, porém, não conseguirá começar a se recuperar enquanto Olmert continuar no poder. A sensação de angústia, e também a de ter colaborado com o desastre, está presente na consciência social e individual. Nenhum advogado conseguirá mitigar a sensação de que um país inteiro rendeu-se, por apatia ou puro pragmatismo, à determinação de Olmert de permanecer no poder, contrariando os mais elementares princípios éticos.


Mobilização Nacional

Estes sentimentos – que não nos abandonarão enquanto ele se mantiver no cargo – teriam, ademais, uma influência demolidora sobre aqueles que aparentemente não foram afetados pela guerra. Isto impede que Israel possa de fato “sair desta”.

O que fazer, então? Nenhum dos candidatos a substituí-lo seria capaz de iniciar sozinho o processo de cura de que Israel tanto necessita, e – pior – alguns deles só agravariam a situação. Não obstante, convém fazer a seguinte reflexão: há no país setores importantes com consciência de responsabilidade e uma idéia clara do que é benéfico para Israel. Embora estejam divididos politicamente, tais setores sabem muito bem o que não querem ver neste país e sabem também o que pode levá-lo à ruína.

Eles poderiam agrupar-se em torno de algo como uma “mobilização de emergência nacional”. Seria um grupo supra-partidário que poderia aglutinar o grande número de pessoas que já estão fartas do que ocorre aqui, que ainda recordam do que se pode aspirar neste país e são capazes de ignorar as divergências partidárias ante o perigo global que nos ameaça.

Essas pessoas teriam que convergir para princípios básicos de consenso em temas como segurança, o conflito com os palestinos e as relações entre os distintos setores da população. E para isso, para chegar a acordos, precisariam moderar muitas das suas posturas e fazer concessões dolorosas.

Poderiam constituir uma espécie de “governo paralelo” que, livre de imposições políticas, dialogaria sobre os problemas essenciais e apresentaria ao governo e à sociedade uma política alternativa, uma forma diferente de atuar.

Peco por ingenuidade? Pode ser. Mas um pouco de ingenuidade não cairá mal no ambiente em que nos encontramos, um ambiente de um cinismo destrutivo que nos impede de acreditar na possibilidade de mudar qualquer coisa.

Seria necessário formular outras idéias, mais ousadas e criativas, mas o que não é possível é continuarmos assim.


Custa admitir que Israel nada faz para sair do processo destrutivo em que se mantém. Portanto, a tentativa de criar um movimento desse tipo no contexto do vácuo atual, um movimento disposto a lutar por algo e a declarar que as pessoas já estão cansadas de serem vítimas de líderes tão medíocres, pode servir para despertar, talvez, as forças positivas e revitalizadoras ocultas na sociedade israelense.

Talvez surja deste modo um movimento social que nossos governantes sejam obrigados a escutar. 

Até que isso ocorra, não teremos conseguido “sair desta”.


David Grossman é veterano ativista do PAZ AGORA.  Nasceu em 1954, em Jerusalém, onde estudou filosofia e teatro e teve longa carreira como repórter da Rádio Israel. Jornalista respeitado em seu país e no exterior, tornou-se um dos mais importantes escritores israelenses da atualidade, mundialmente premiado e traduzido em várias línguas, inclusive em português, como Alguém para Correr Comigo‘ e ‘Ver: Amor‘. 


[ publicado no EL PAÍS em 17|02|2008 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]

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