SOBREVIVÊNCIA NO HOLOCAUSTO
– A sua vida acadêmica, pela qual o senhor está recebendo neste ano o Prêmio Israel, envolve o estudo das fontes ideológicas do fascismo. Existe alguma conexão entre isto e o fato de o senhor em pessoa ter sido uma vítima do fascismo quando tinha cinco anos?
Não enquanto decisão consciente. A nível inconsciente, talvez. Quando era jovem, a expectativa era de que iria estudar Direito e tornar-me um advogado. Mas no final estudei História, mais especificamente a História da Europa no século XX. É impossível ignorar a conexão entre essa decisão e minha infância.
Cresci num mundo muito bem organizado, o mundo bem protegido de uma família burguesa européia. E, de repente, quanto tinha cinco anos, o mundo desabou. Instantaneamente. É difícil descrever a transição da tranqüilidade segura para a queda, a desintegração. Quando as coisas que você pensa serem estáveis despencam de repente. Quando as coisas que você acredita serem a ordem natural das coisas são aniquiladas. E também rapidamente – de um dia para o outro.
Não estou certo, pode bem ser que, em algum grau, essa experiência fundamentou meu trabalho acadêmico e intelectual. Foi importante entender como uma ordem democrática liberal ruiu tão rapidamente numa Europa culta e satisfeita. Como foi que tudo quebrou, se despedaçou, desmanchou de repente. Como essa catástrofe abateu-se sobre o mundo europeu e também sobre nós. Sobre a nossa cidade, a nossa família, sobre os meus pais e sobre mim.
– [Sternhell foi o caçula mimado e amado de uma família judia afluente e quase secular na Galícia, Polônia]
Vovô era um grande negociante de têxteis e meu pai era seu sócio na administração do negócio. Minha mãe cuidava de mim em casa ajudada por uma empregada e uma babá. Minha irmã, 13 anos mais velha do que eu, era um tipo de mãe adicional. E o salão, situado numa grande casa própria, entre dois andares, era cuidado com um bom bocado de amor. Até hoje, minha lembrança mais forte é a do meu pai me segurando nos seus braços e encostando seu rosto no meu. E o calor da mamãe, claro. Mamãe, papai e minha irmã Ada me davam tudo de bom no mundo.
E aí, a guerra começou. Fui acordado no meio da noite, todas as luzes estavam acesas e papai veio se despedir de mim vestindo o uniforme do exército polonês. Estava saindo para a guerra. Poucas semanas depois, voltou da derrota. Toda a sua estrutura havia ruído. Papai morreu. Por sorte dele, de morte natural. Vovô também morreu. E os russos assumiram o controle do leste da Polônia e também metade da nossa casa. De repente, não havia empregada, não havia babá, metade da casa foi confiscada. Mamãe tinha que trabalhar. Com grande esforço chegava comida nos vilarejos. Ainda assim, minha mãe e minha irmã tentavam proteger-me o melhor que podiam. Num mundo no qual não existia mais estabilidade, só elas eram estáveis. Eram minha única âncora.
– Quando os alemães chegaram?
Eu tinha seis anos, no verão de 1941. A Operação Barbarossa começou bem sob a nossa casa, à margem do Rio Vístula. Lembro das janelas de casa estilhaçando. O bombardeio infernal. A incrível potência dos alemães. E muito rápido: grandes comboios de prisioneiros russos assustados. Poucos meses depois, fomos mudados para o gueto. Uma transição abrupta: de nossa grande casa com o salão da minha infância para um casebre no gueto. A terrível superpopulação. As doenças. E aí, as ‘aktions’.”
– O que o senhor lembra das ‘aktions’?
O gueto foi liquidado em etapas. Uma ‘aktion’ seguia-se a outra. E cada uma era diferente.
– Lembra-se de ter sido caçado?
Eu, pessoalmente não fui caçado. Lembro de me ter escondido com minha mãe e minha irmã por três dias em uma cova debaixo da terra. Era um tipo de caverna, onde também havia outras pessoas, na qual nos escondemos enquanto, lá fora, o gueto estava sendo liquidado. Havia uma espécie de fresta por onde se espiava. E o que via era uma caçada. Eu via como atiravam em gente que tentava fugir. Como pessoas escondidas no topo de árvores eram abatidas. Crianças, também.
Muito rápido, aprendi a diferenciar entre soldados e oficiais alemães por seus capacetes. Mas também porque os oficiais atiravam com pistolas e os soldados com fuzis. Os que eles matavam naquele tempo eram mortos no próprio gueto. E eu era uma criança que via isso através da fresta, de dentro da cova. Eu era um menino que via outros meninos, escondidos no alto das árvores, sendo baleados e caindo”.
– E sua reação, seu sentimento dentro da cova?
Não consigo dizer. Eu já estava num mundo onde uma coisa desmoronava após outra. Um mudo de sobrevivência. Sobrevivendo a qualquer custo.
Mas sei que quando amigos e soldados meus foram mortos ao meu lado, na campanha do Sinai e na guerra dos Seis Dias, eles ao menos foram mortos como seres humanos. Não foram assassinados sendo caçados pelas ruas.
Neste sentido, para mim Israel não era uma questão política. É algo muito mais básico. É um retorno à humanidade. Era voltar a viver como ser humano, porque ali, no gueto, você perdia o seu elemento humano. Sua identidade humana. Você deixava de ser humano. Não era uma pessoa.
– A primeira ‘aktion’ terminou, mas logo começou outra. O que aconteceu então?
Era um dia de verão e os alemães estavam de novo caçando os judeus. Uma verdadeira caçada. Então chegou uma proclamação de que as pessoas sem permissão de trabalho tinham que se reunir num certo lugar dentro do gueto. Minha mãe e minha irmã foram. Recordo com se fosse hoje. Lembro de minha irmã dizendo para mamãe: Nós somos jovens, vamos trabalhar, vamos sair disto. Elas sabiam que estava se separando de mim. Sabiam que só Deus sabia o que iria acontecer depois disto. Mas não queriam me assustar. E queriam ter esperança.
– Como o senhor explica o fato de elas terem ido tão facilmente?
Porque tinham esperança. Porque quando pessoas enfrentam uma realidade incompreensível como essa, criam para si um mundo de ilusões. Elas queriam acreditar que tinham um futuro, que tinham vida, que iriam voltar para mim. E eu, também, jamais imaginaria que nunca mais veria de novo mamãe e Ada. Elas me abraçaram e me beijaram e me deixaram com minha tia. Lembro delas indo e sumindo na distância.
– E quando o senhor ficou sozinho?
Fiquei com minha tia, que fez de tudo para substituir a ausência ma minha mãe. Meu tio demonstrou uma extraordinária disposição e conseguiu nos tirar do gueto. Mas apesar de todos os esforços dela para me proteger do trauma, no sentido mais amplo eu estava só. Desde a idade de 7 anos eu fiquei só. Não tinha ninguém para contar as coisas. Sabia que ninguém iria me ajudar. Tinha que me virar sozinho, sobreviver por mim mesmo. Sabia que o que não fizesse ninguém faria por mim. Esta solidão, o conhecimento de que não tinha ninguém que me amparasse e ninguém para quem perguntar alguma coisa, mesmo que eu supostamente fosse uma criança.
– Após a fuga do gueto, sua tia, seu tio e seu primo fingiram-se de católicos.
Sim. Algo aconteceu a nós que parecia ter sido um milagre. Meu tio achou um proprietário de imóvel em Lvov que tinha sido um oficial polonês e que, além de não ser anti-semita, estava disposto a dar cobertura para judeus. Em meio ao terrível anti-semitismo que existia no Polônia, isto era um caso em cada 100.000. E houve outra família que nos ajudou, uma família da classe trabalhadora. Sobrevivemos graças a essas duas famílias.
É preciso saber que não restou nem um único judeu vivo na Europa naqueles anos sem que alguém o tivesse ajudado. Mas o anti-semitismo estava em toda parte. A Polônia estava absolutamente tomada pelo anti-semitismo. Era um lugar onde era impossível viver, tanto durante a guerra como depois dela. Num certo sentido, o pior veio de fato após a guerra. Depois de tudo o que aconteceu. Após todo mundo saber o que tinha acontecido. Apesar disso, topava-se com o ódio aos judeus a cada passo na rua.
Lembro-me de uma mulher gritando para judeus: ‘animais imundos, vocês saíram de seus buracos, pena que eles não acabaram com vocês’. E lembro de judeus que sobreviveram e voltaram para os campos, escondendo sua identidade. E quando sua identidade era descoberta apanhavam e eram xingados. Abundavam rumores sobre ‘pogroms’ perpetrados após a guerra. Foi precisamente então, quanto os nazistas já tinham partido, que se tornou claro que os judeus não tinham futuro na Polônia.
Depois de tudo que vimos, ficou claro o que deveríamos fazer. Mudar totalmente de identidade, e fazê-lo de forma a nos ancorarmos na Igreja.
SAUDADES DO NATAL
– O que o senhor está dizendo, então, é que vocês não apenas se passaram por católicos, mas de fato tornaram-se católicos. Vocês foram realmente convertidos ao cristianismo?
Fui batizado formalmente como cristão. Do ponto de vista da Igreja, sou um católico.
– O senhor foi batizado durante a guerra ou depois?
Depois da guerra. Durante a guerra era muito perigoso. E, em função das leis raciais isso não teria ajudado. Mas quando a guerra acabou, e vimos que os judeus não podiam viver na Polônia, tornamo-nos cristãos. Com água benta e tudo. Meu nome polonês é Zbigniew Orolski.
– Estamos falando de um jogo de sobrevivência, como os marranos na Espanha, ou estamos falando de um ato verdadeiro de fé?
Durante a guerra, começou como um jogo. Tínhamos documentos falsos arianos e um pretensa identidade católico-polonesa. Foi por isto – para evitar sermos pegos – que minha tia ensinou-me todas as orações, conceitos e a história. Era importante que os vizinhos vissem que vivíamos vidas católicas e falávamos como católicos. Mas aí, pouco a pouco, deixou de ser um jogo. Comecei a gostar. Páscoa, Natal. Os presentes de Natal, e a história de Jesus, o retrato da Virgem.
Sabe, o catolicismo é uma religião de gênios. Jesus sacrificou-se pela Humanidade e também por você pessoalmente. Maria zela pelo mundo e você ora para ela e lhe pede ajuda. Você vê ali uma fonte de salvação. Não está sozinho, como os judeus ou os protestantes.
Você apela para uma entidade humana, não algo abstrato, E quando você é um menino no meio de uma guerra terrível, e tudo em volta é horror, seu pai morreu e sua mãe se foi, você facilmente se agarra naquela fé religiosa e espera que isso o salve. Você não mais está sozinho, não está abandonado, Tem alguém com quem contar, alguém para olhar. E você olha para aquele altar, ajoelha-se diante dele e pronuncia tudo que deveria ser pronunciado.
– O senhor já teve um altar em casa?
Tinha um pequeno altar que eu mesmo preparei.
– O que havia sobre ele?
Maria e o pequeno Jesus, uma ou duas velas, um pouco de plantas. Era um tipo de representação do estábulo no qual Jesus tinha nascido.
– E o senhor orava diante do altar?
Rezava toda noite. Era bom para os vizinhos do outro lado da parede, sim. Mas também era bom para mim. O catolicismo é verdadeiramente uma religião extraordinária. Carinhosa, clemente. E seus rituais funcionam. E quando você ia à igreja, ela estava cheia do cheiro do incenso e o órgão tocava e o coro cantava e se sentia algo… Você se elevava junto com tudo isto, sem dúvida.
Jesus e Maria o imbuíam de um tipo de sentimento que transcendia este mundo cruel e terrível que via ao seu redor. Havia algo diferente, algo melhor. Apesar de tudo, havia esperança. Tudo que é terrível passa, mas o bem é eterno. Isto consolava. Num mundo no qual tudo está caindo, isso lhe dava força.
– Você fazia o sinal da cruz?
Claro, eu o fazia diariamente. Mais que isto: após a guerra fui coroinha na Catedral de Cracóvia. Meu papel era caminhar atrás do padre, vestindo uma toga, carregando o incenso. Eu rezava com o padre, ajoelhava com ele, ajudava-o a entregar a hóstia. Eu era de fato o servo do padre, que servia a Deus, e ser um servidor de um servidor de Deus dá-lhe uma certa proximidade de Deus.
– O senhor está dizendo que por 3 anos, ou mais, renegou ser judeu…
Desejava esquecer que era judeu. Ser um judeu significava estar constantemente fugindo, escondendo coisas, mentindo. Eu me desliguei disto. Para viver fui compelido a ser um católico. Foi por isto que apaguei o meu ser judeu. Desliguei-me completamente de ser um judeu. Acho que posso dizer que naquele tempo eu não era um judeu. Naqueles três anos eu não fui um judeu.
– E quando o senhor deixou de ser um católico?
Em 1946, fui levado da Polônia para a França num trem de crianças da Cruz Vermelha. Tinha 11 anos, e de novo totalmente sozinho. Quando cheguei à França, apaguei tudo que havia existido na Polônia.
Não queria me lembrar de nada da Polônia. Apaguei até o polonês, minha língua materna. E ao deletar todo o passado, com ele apaguei o catolicismo. De repente, aquilo me parecia ridículo, cômico, humilhante. Por muito tempo eu não quis lembrar que algum dia havia feito parte disso.
O JOVEM DE AVIGNON
– Na França o senhor adotou uma nova identidade, tornou-se francês?
Aprendi o francês muito rápido. Tornou-se a minha primeira língua. Enfrentei uma acirrada concorrência para ser aceito num curso secundário em Avignon, e dois anos depois já estava imerso na cultura da França. O país me deu uma irrestrita e profunda apreciação pela liberdade, pelos direitos humanos e pela secularidade.
Até hoje, acho que essas foram os fundamentos de uma sociedade meritória. A França me deu o princípio da universalidade e da separação de religião do Estado. Muito rapidamente tornei-me proficiente na língua, história e cultura. Mesmo o meu sotaque não é de um estrangeiro. Ainda assim, nunca me senti francês. Eu sabia que não era autenticamente francês, e mesmo que eu estivesse num curso que facilmente levaria a praticar a advocacia em Paris e tornar-me professor na Sorbonne, sabia que a França não era o meu lar. É difícil de explicar, mas é como me sentia.
Acho que era o passado: não importava o quanto eu queria apagar o passado, há coisas que não deletei. Não apagara a memória dos meus pais ou a memória da minha irmã. Ou o fato de que minha mãe e minha irmã se foram porque eram judias. Elas haviam morrido porque eram judias. E eu, como judeu, era de um outro lugar. Não podia estar por inteiro na França. Existia algum tipo de barreira.
> parte 2/2 <