Pós-Judaísmo: Não Há Judaísmo, Há Judeus


Desmentida exaustivamente pelo menos desde o Iluminismo judaico do século XIX, a noção de que os judeus constituem um bloco de pensamento e comportamento, em geral conservador e fechado (e, nos últimos anos, alinhado aos Estados Unidos e a todos os governos israelenses), ainda domina o imaginário coletivo. Sabemos que nada está mais longe da realidade do que essa pretensa uniformidade, já que entre as características comuns do judaísmo (ou dos “judaísmos”, como preferem alguns) está a pluralidade de idéias, estimulada pela inexistência de uma estrutura burocrática central. Pluralidade tão antiga que no Talmude sempre se encontram ao menos duas posições frente ao mesmo problema, e reiterada pelos movimentos sociais e intelectuais dos últimos dois séculos. Um conceito recente, o pós-judaísmo, postula a máxima “não há judaísmo, há judeus”, utilizando a categoria do pós-moderno (que pretende acolher a pluralidade de vozes e rejeita  a imposição de modelos), e nos chama a atenção em virtude da forma original e da origem latino-americana.

YOKA busca de pertencimento judaico fora do âmbito religioso não é, obviamente, uma novidade; o que é novo são as formas de expressá-la. Neste início do século XXI, um exemplo dessa procura é o sucesso, na Argentina, do “movimento” YOK – junção de Yo (eu) e OK, subentendendo-se que “eu me sinto OK sendo judeu” – que reúne milhares de judeus em atividades culturais, artísticas e sociais, inclusive com um Pessach laico em praça pública que já está se tornando tradição em Buenos Aires: são judeus de múltiplas identidades que se juntam, mesmo sem terem muito em comum senão seus próprios e subjetivos sentimentos, e assistem a apresentações musicais, concursos gastronômicos, conferências, lançamento de livros. Não há nisso objetivo institucional: uma característica do “movimento” é não se pretender fundador nem didaticamente transmissor.

Segundo o filósofo Darío Sztajnszrajber, professor do Seminário Rabínico Latino-Americano e da Universidade de Buenos Aires, e um dos articuladores do pensamento pós-judaico argentino, este prescinde de denominador comum e regras fixas. Não quer ser um marco demarcatório e excludente, nem substituir por “novos arautos” os autoproclamados herdeiros da tradição. Conforme pesquisa de dois anos atrás, a maioria dos judeus de Buenos Aires e Grande Buenos Aires não freqüenta as instituições comunitárias, porém defende que “ser judeu” lhe é essencial e busca padrões de pertencimento em valores culturais compartilhados (os números das eleições comunitárias brasileiras indicam que tampouco aqui a maior parte dos judeus vive o cotidiano institucional). Então, que cada um seja judeu ao seu modo, declara o sítio <www. yoktime.com>, que convida os interessados à busca de novas formas de relação em marcos informais (1). “O pós não substitui, des-dogmatiza; não supera, re-significa”, escreve Sztajnszrajber (2). 


YOK - Feira de Comida Judaica

“Os judeus somos um horizonte de tribos fragmentadas, cada uma vivenciando à sua maneira o que é o judaísmo. O problema se manifesta quando alguma das tribos pretende constituir-se como o paradigma único do povo judeu”, assinala ele.

Esse tipo de busca, que não pressupõe uma reta de chegada, retoma a querela clássica entre Apolo, deus da racionalidade e da norma, e Dionísio, deus do “imediato”, que oferece uma aproximação ao judaísmo menos constrangida por regras. Afirma Sztajnszrajber que o pós-judaísmo é “um retorno constante sobre um judaísmo que buscou denodadamente sua própria definição, integrando, e nesse ato impondo e excluindo”. Assim, o retorno, ao buscar desdogmatizar o “autoritário do judeu”, é “uma abertura que dialoga com as normas, as faz verem-se como tais no espelho e clama por uma pós-identidade judia que escape ao idêntico”. Isso implica levar as questões de identidade “ao plano do dionisíaco, perder-se conceitualmente para ganhar em sensibilidade”.

 

A falsa impressão da uniformidade judaica remete às noções de estranheza e alteridade. “Existem amigos e inimigos. E existem estranhos”, assim o sociólogo Zygmunt Bauman, um dos principais pensadores da modernidade/ pós-modernidade, abre o segundo capítulo do livro Modernidade e Ambivalência (3). Adiante, ele explica por que o judeu foi na Europa o estranho por excelência, muito mais ameaçador que o mero inimigo, pois, ao contrário deste, o estranho jamais deixa de sê-lo, malgrado seu eventual êxito ou riqueza. Para os judeus, a marca da estranheza que o Ocidente lhes grudou ao longo dos séculos, desde a acusação de deicídio, abriu espaço, “por um sinistro paradoxo”, na expressão de Bauman, à criatividade intelectual intensa que se sedimentou como cultura moderna e foi resultado, acrescenta, da “intolerância da modernidade”, não da sua aparente abertura. Os judeus dos séculos XIX e XX quiseram acreditar, como aponta o sociólogo Bernardo Sorj, pensador do judaísmo, diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que a modernidade era um conjunto de valores universais e coerentes que permitiriam a sua integração nas sociedades onde se encontravam. A realidade desmentiu a suposição – não bastou aos judeus europeus adotar certas atitudes nem visões de mundo para integrar-se.

Agora, a marca da estranheza já não parece indelével – sobretudo nas Américas e nas democracias européias -mas a História ensinou os judeus a desconfiarem das certezas. Num mundo contemporâneo no qual reivindicações étnicas e xenofobias ancestrais são amplificadas diariamente pela mídia, ainda é complexo o trânsito entre diversas culturas. Para quem não pretende viver em caixas fechadas, mas ao mesmo tempo aprecia a herança recebida, conviver dentro do monopólico universo judaico mencionado por Sztajnszrajber não raro se configura um dilema, tão crucial quanto o do “abandono” das raízes em benefício de outras identidades.  Não é surpreendente, portanto, que as indagações em torno do significado do pertencimento judaico continuem a produzir milhares de páginas de filósofos, rabinos, eruditos, sociólogos e escritores.

Grosso modo, pode-se dizer que, se é impossível entender os judeus sem a religião e sua narrativa coletiva, tampouco se pode entendê-los sem o laicismo (no qual o ateísmo é uma das variações) e sua liberdade individual tão cara à tradição ocidental. Os religiosos não têm dúvidas sobre aquilo que querem transmitir. O rabino Jacob Neusner, um dos mais prolíficos autores religiosos norte-americanos e interlocutor do Papa Bento XVI, ensina que um dos aspectos distintivos da religião judaica é que nela o fiel – que não aspira à salvação individual, como em outras fés, mas tem seu destino ligado ao coletivo “Israel” – deve assumir para si a narrativa fundadora da condição humana que a religião faz. É uma narrativa que exige apego permanente à letra da Lei. “Ser judeu praticante é narrar, a respeito de si mesmo e da própria família, a história narrada desde a Escritura judaica”, afirma Neusner (4). O relato, que traz o passado ao presente, aceita como judeus todos aqueles, inclusive os conversos, que legitimamente narram sobre si mesmos as narrativas da Torá (os Cinco Livros de Moisés – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), enquanto cumprem seus ritos. 

Sorj ressalta a centralidade da resistência na narrativa judaica, que se manifesta em vários níveis: por exemplo, nossa festa mais “alegre”, Purim, o carnaval judaico, tem como motivo que os judeus foram salvos pela Rainha Ester do genocídio! Mas as tendências renovadoras da religião têm limites, acrescenta. “Quem sabe, ao menos hoje em dia, ajudaria mais reconhecer que o judaísmo não possui respostas para todos os desafios do mundo contemporâneo e que, pelo contrário, como uma tradição que se desenvolveu em outras épocas, contém muitos elementos que não são atuais e  não se conjugam com uma perspectiva democrática e radicalmente humanista” (5).

Com efeito, a contrapartida ao papel de outro exercido pelo judeu no Ocidente — ainda que um outro íntimo e estável, sem o qual não se vive (6) – foi a criação pelo judaísmo rabínico de um grande número de alteridades parcial ou totalmente excluídas (das mulheres, dos homossexuais, dos supostamente desiguais). Os excluídos de hoje, contudo, falam alto. O compromisso identitário não se sujeita aos  monopólios de sentido e poder político, religioso e econômico do judaísmo institucional. A auto-identificação prescinde da subserviência: o indivíduo se permite viver seu judaísmo como parte de um conjunto de valores, afetos e relatos que constituíram sua personalidade. Sons, ética, poesia, odores, empatia, encontro com o divino ou a ancestralidade  – tudo cabe na escolha. Pode-se dizer que tudo também cabe na rejeição: quando ofereceram ao historiador Marc Bloch, membro da Resistência Francesa, o apoio de um rabino, minutos antes da sua execução pelo pelotão de fuzilamento nazista, ele respondeu que morria como francês, não como judeu. A identidade que ele se atribuía não era a mesma que o totalitarismo lhe impunha.

No tocante à transmissão da herança laica do judaísmo, à medida que o Holocausto e o sionismo, os dois grandes momentos que marcaram o judaísmo do século XX, deixam de fazer parte da experiência vivida, crescem as dúvidas. A fragmentação produziu um cenário em que um ultra-ortodoxo é, para o judeu secular, muito mais estranho que o não-judeu. Das novas rupturas emergem “novos rituais, cultos seculares, como o da memória da Shoah, que se quer unificador (…) Mas esse judaísmo é viável a longo prazo?” (7). Indagação instigante, pois em pouco tempo desaparecerão os últimos testemunhos vivos do Holocausto e se enfraquecerão os laços dos judeus com o Estado de Israel – país cada vez mais “normal” e, portanto, incapaz de manter o status de guardião moral que o tornou, há seis décadas, um ímã para idealistas de todos os matizes.


Perguntas não faltam. Como manter o interesse das massas de jovens judeus ocidentais, entre eles centenas de milhares de filhos de casamentos mistos? Como superar tanto o desinteresse pela política e pelas instituições, por um lado, quanto, por outro, a crescente banalização da experiência espiritual promovida pelas múltiplas “ofertas” existentes naquilo que os estudiosos norte-americanos chamam de “mercado religioso” (em que o “cliente” troca de opção sem traumas, de acordo com sua necessidade imediata)? O misticismo viverá novo auge, com profetas barbudos pregando assombros? Ou se consolidarão as sinagogas liberais, com projetos sociais, a partir de países como  a Alemanha? Ou tudo acontecerá ao mesmo tempo, marca do pós-moderno?

Uma parte das propostas de mudanças reitera o consagrado e sugere alterações não estruturais que mantêm o status quo – ao estilo do príncipe Salina em O Leopardo, pregando a necessidade de modificar alguma coisa para que tudo fique como está. Uma alteração significativa entre judeus reformistas e conservadores, mas ainda numericamente restrita, tem sido a ordenação de mulheres como rabinas. Longe estão, para elas, os dias em que menstruação era sinônimo de impureza e afastamento. O ritual, porém, é o mesmo.

Cada país, cada comunidade, faz as mudanças ao estilo local – onde senão na Califórnia e na costa leste dos EUA haveria tantas sinagogas GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), ou, no marco caricatural, cãezinhos enfeitados com kipá? (e por que não, perguntam-se seus donos, já que os pets também usam sapatinhos, laçarotes, e cosméticos?). Ora, se naquele país as mulheres cristãs ostentam, no Natal, brincos com luzes pisca-pisca e colares em forma de pinheirinho, sobre suéteres com o rosto de Papai Noel, esse tipo de consumo pode ser tão indicativo de pertencimento quanto outro qualquer.

Não há mais uma instância consagrada a impor limites entre o aceitável e o ridículo, entre o interno e o externo. Quem diz quem pode entrar na comunidade e quem deve sair dela? “Que lei do ventre impediria a sensação sublime de alguém se sentir judeu?” – pergunta Sztajnszrajber, contestando a norma de que judeu é tão somente o filho de mãe judia. Como não recordar a bíblica Rute, moabita que escolhe permanecer com a sogra após a morte do marido, tornando-se ancestral de ninguém menos que Davi? Judeu é todo aquele que aceita a Torá, pondera o rabino Neusner, lembrando que as definições já teriam deixado de fazer sentido, no debate secular contemporâneo, se não fosse a necessidade de responder, desde 1948,   à pergunta “quem é judeu?” para atender à lei israelense, que concede automaticamente a cidadania a todo filho de mãe judia que a solicita.

A participação grupal salva o indivíduo da solidão que a liberdade produz. Não é para acolher que também servem os grupos, sejam eles religiosos, políticos ou de auto-ajuda? O laicismo judaico, todavia, pode ser igualmente acolhedor ao não buscar a “verdade” produtora de ansiedade. Sobre isso, diz Darío Sztajnszrajber (8).

Atividades YOK

Atividades YOK

“…Nascemos judeus e nossa tarefa é fazer algo com isso, mas fazer algo de fato, isto é, fazê-lo com liberdade absoluta. Poder duvidar, crer, renunciar, voltar, poder tomar o todo, uma parte ou simplesmente nada e no dia seguinte arrepender-se, ou não. Este novo laicismo focalizará em cada pessoa sua história particular. Alguns buscarão seu judaísmo através da Bíblia, mas outros o farão a partir da arte e outros a partir da comida, dos odores, das lembranças. Mas todos se saberão judeus. (…) Nascemos judeus sem saber por que e assim morreremos: sem respostas, embora no meio percorramos caminhos. E depende da nossa liberdade nesse percurso que a busca seja a mais plena possível. Todavia, que difícil é pensar em nós deste modo! Assumir que morreremos sem respostas! Aceitar que preferimos percorrer caminhos a chegar a algum lugar! Se compreendemos que ser laicos é, antes de tudo, desembaraçar-nos da verdade, a ansiedade metafísica se enfraquece. Ser ateu ou ser religioso implica certezas. Ser laico não implica, desarma…”

E é dentro desse espírito desarmado que descrer de valores judaicos sempre idênticos a si mesmos não significa menosprezar as lições de humanismo e ética dos nossos maiores eruditos. Ao contrário. Uma história famosa sintetiza a prioridade da justiça e da vida – ou seja, da  dignidade e da liberdade do outro – sobre o rito (é uma interpretação, entre outras possíveis):

Um gentio apresentou-se ao sábio Shamai [adversário do sábio Hilel], dizendo-lhe: “Converte-me sob a condição de me ensinar a Torá enquanto eu estiver de pé sobre uma só perna”. Shamai, conhecido pelo rigor formal e o caráter impaciente, o expulsou com a régua que tinha nas mãos. Apresentou-se então o gentio diante de Hilel e fez o mesmo pedido. Hilel disse: “Não faças ao teu próximo o que não queres que te façam. Essa é toda a Torá; o resto é comentário. Agora vai e estuda.” (Tratado Shabat 30-B-31 A, no Talmud da Babilônia, citado por Jacob Neusner).


1 – www.yoktime.com – acesso em 15.03.2008

2 – Posjudaísmo – Debates sobre lo judío en el siglo XXI – organizador Darío Sztajnszrajber (Prometeo Libros, 2007)

3 – Modernidade e Ambivalência, Zygmunt Bauman (Jorge Zahar Editor, 1999)

4 – Introdução ao Judaísmo, Jacob Neusner (Editora Imago,2002).

5 – Judaísmo para o Século XXI, com Nilton Bonder (Editoria Jorge Zahar, 2001); ver também artigos do autor em <www.bernardosorj.com>

6 e 7–  Le Juif et l’Autre – Esther Benbassa e Jean-Christophe Attias (Le Relié, 2002)

8 –  Um Novo Laicismo, disponível em <www. yoktime.com>

9 – Bíblia Hebraica (Editora Sefer, 2006), tradução de David Gorodovits e Jairo Fridlin “Não odiarás a teu irmão em teu coração; repreenderás a teu companheiro, e não levarás sobre ti pecado” “Não te vingarás e nem guardarás ódio contra os filhos do teu povo, e amarás o teu próximo como a ti mesmo – Eu sou o Eterno!”


Heliete Vaitsman, ativista do movimento Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e diretora do Museu Judaico do Rio de Janeiro, é jornalista, tradutora e autora de “Judeus da Leopoldina”.

[ Publicado na Revista 18 – jun/ago 2008 ]

Comentários estão fechados.