Israel deve superar o discurso da Shoá

 

Por que alguém abandona uma brilhante carreira política em Israel que se aproximava do apogeu?

Avraham Burg responde à pergunta em sua última obra, «Vencer Hitler». Esse homem que pôde redefinir sua vida – uma sorte, dizem – havia trilhado, até 2004, um caminho político irrepreensível que culminara com os cargos de presidente da Agência Judaica e do Knesset, o Parlamento israelense. Filho de um célebre político do Partido Nacional-Religioso, ele mesmo um judeu que mantém a fé (e usa kipá), Burg percorreu uma trajetória esquerdista: militante do PAZ AGORA, foi da esquerda do Partido Trabalhista e um dos articuladores da Iniciativa de Genebra. Ao retirar-se da cena política, há quatro anos, provocou reações intensas e agora seu último livro, um brado de alerta sem concessões, lhe vale em Israel o rótulo de “ovelha negra”…

Aos 53 anos, o indivíduo que foi, em ordem cronológica, conselheiro do Primeiro-Ministro responsável pelas relações com a diáspora, presidente da Agência Judaica, do movimento sionista mundial e do Knesset, não é mais o mesmo – a exceção é sua franqueza, que continua intacta.


Um Estado pode ser ao mesmo tempo judeu e democrático, como Israel se define?

Muitos Estados procuram se definir a partir da religião: a França instaurou uma separação total entre Estado e religião, ainda que o atual presidente pareça inclinado a fazer as coisas mudarem, os Estados Unidos continuam a ser um Estado desligado de religião, etc. Quanto a nós, descobrimos «a» fórmula ideal: um Estado judeu e democrático. Quanta coisa boa ao mesmo tempo! A herança judaica adicionada a um sistema democrático esclarecido…

Existem nisso, entretanto, dinâmicas que entram em conflito. A fonte de autoridade da dimensão judaica é Deus. A fonte de autoridade da dimensão democrática somos nós. A dimensão teocrática e a dimensão democrática estão destinadas a entrar em conflito. Nossa fórmula, portanto, é enganadora. E a história da vida política judaica, salpicada de messianismo e de escatologia, contém algo de perigoso. Eu creio no laicismo: o Estado deve permanecer um instrumento a serviço dos cidadãos.

 

 

Burg - porção da Torá

Burg - porção da Torá

Religioso, Laicista e Polêmico.

Avraham Burg, após abandonar a política, escrevia semanalmente no Yediot Ahronot uma coluna interpretando o trecho semanal da Tora… 

O sionismo está superado como ideologia porque já teria cumprido sua missão de criar um Estado para os judeus?

O que eu digo é que o sionismo representava o suporte necessário para instalar a nova estrutura para os judeus, transformando o exílio em soberania. Fomos muito mais bem sucedidos do que esperávamos! Pode-se criticar uma variedade de fatores, mas é um êxito incrível! Agora que essa estrutura sólida está bem instalada, porque seria necessário manter esse suporte?

Há também uma dimensão histórica. Pertenço ao grupo que concorda com o pensador judeu Ahad Haam, que no século XIX reprovava o fato de o sionismo – tal como foi estabelecido no primeiro congresso sionista de 1897, reunido em Viena por Theodor Herzl – ter tido no anti-semitismo a sua inspiração principal. Com certeza o século XX foi o século de  Herzl: as perseguições, a Shoá. Com um Israel em estado de guerra permanente, porém, constata-se que a missão de Herzl não se realizou. Sinto mais afinidade com Haam, que preconizava a renovação da alma judaica, algo que não chegou a se iniciar em virtude da luta pela sobrevivência.

De uma maneira mais pessoal, depois de eu ter sido, durante muito tempo, a total encarnação da imagem de Israel, sinto-me agora numa tripla dimensão: sou cidadão do mundo, judeu e israelense. Esta última dimensão limita minha visão. Não acredito que seria ideal trazer a Israel os 14 milhões de judeus que vivem no mundo.

O senhor disse que Israel foi construído sobre o trauma da Shoá. Entretanto, a Shoá foi precedida pelo sionismo político…

Historicamente, isso é verdade. Mas…a motivação de Herzl não girava em torno da renovação do judaísmo. Foi o anti-semitismo que fez o sionismo avançar.  Milhões de pessoas deixaram o leste da Europa entre as duas guerras mundiais, mas só uma minoria emigrou para Israel. A partir de 1948, foi porque a Shoá ocorrera que o país se tornou o refúgio dos judeus, e não o sonho de uma Terra prometida.

Esse trauma, o senhor diz, levou os israelenses a se verem como as grandes vítimas, uma situação que, conforme a avaliação deles, permite-lhes ultrapassar as barreiras morais e dá legitimidade até mesmo às suas más ações, que se tornam « casher »…

Sim. Mas eu seria o último a culpá-los pelo fato de viver sob a obsessão desse trauma. Isso é inevitável enquanto viverem entre nós sobreviventes do Holocausto. É difícil reprovar a atitude dos fundadores de Israel e dos sobreviventes da Shoá; o que dá medo é esse sistema educacional que cria clones da geração de 1948 e de seu trauma.

Porque enxergo mais longe, analiso a situação dos jovens, que se sentem mais liberados desse trauma, ainda que ainda faltem alguns anos para que isso de fato se torne realidade. É preciso começar a falar do assunto e a pensar num meio de trilhar o caminho que separa o trauma da confiança. Viver sob a influência desse trauma é prejudicial, leva as pessoas a desconfiarem do mundo inteiro. Temos que reintroduzir o quanto antes os valores universais do judaísmo.

O trauma influencia a vida cotidiana?

A magnitude do trauma é amplificada pela retórica política do Estado. A Shoá abrange tudo: o vocabulário, a segurança, a política, a economia, a cultura.

Um exemplo: houve manifestações em Jerusalém contra a «parada do orgulho gay» do ano passado; e, coisa espantosa, gritaram para os policiais que tentavam reprimir os manifestantes que eles eram « piores que os nazistas» ! Outro exemplo: quando Benjamin Netanhayu [líder do Likud, principal partido nacionalista de oposição] evoca a ameaça nuclear iraniana e a atitude do mundo em relação ao tema, ele fala de «1938» [Munique, e a traição de Paris e Londres ao abandonar a Tchecoslováquia aos nazistas]. Assim sendo, ele convoca Hitler! O discurso da Shoá realmente domina nossa vida e nos aprisiona num sentimento de vitimização.

Isso não se dá sem conseqüências. Por conseguinte, muitos israelenses sentem-se mal quando vêem os acontecimentos em Gaza e os postos de controle na Cisjordânia, e até mesmo quando ouvem falar de discriminação contra nossa própria minoria árabe. Mas imediatamente se põem a refletir e dizem a si mesmos : «Por mais grave ou brutal que isso possa parecer, não tem nada a ver com as câmaras de gás!». É esse o trauma absoluto.

Ou seja, suprimimos o trauma palestino porque ele é julgado menos importante que o nosso. Suprimimos nossa própria sensibilidade devido ao nosso monopólio do sofrimento.

Quando o senhor critica a presença excessiva da Shoá na vida israelense, também afirma que ela começa na escola, com essas viagens a Auschwitz organizadas para os adolescentes…

Acho que é importante saber o que aconteceu lá, e ir até lá. Mas contesto o fato de que um Estado utilize tamanho trauma como base para os estudos do período que precede o serviço militar.

Isso se deve, acredito, à manipulação política da emoção. Eu proporia, de preferência, que turmas mistas de israelenses e palestinos sejam enviadas em viagem de iniciação à Andaluzia para aprender como judeus e árabes eram capazes de se entender há mais de seis séculos.

O senhor foi presidente da Agência Judaica, que tem como missão principal impulsionar a emigração para Israel, e agora contesta a « lei do retorno » [que permite a todo judeu do mundo tornar-se israelense minutos depois de chegar a Israel]…

Cada Estado coloca em vigor leis próprias que definem a aquisição da cidadania. O problema em Israel é que temos duas leis: a de todos os cidadãos, como em outros lugares, e a lei do retorno, para os judeus. Não contesto a pertinência da lei do retorno, que foi necessária para os judeus perseguidos e para o estabelecimento de Israel como seu único refúgio. Mas contesto a discriminação entre judeus e não-judeus.

Isso nos leva ao debate sobre « quem é judeu? ». A regra básica é a seguinte: é preciso ter nascido de mãe judia. Mas como aceitar uma definição apenas genética? Uma definição que menospreza os valores do judaísmo? Para mim, a genética não vale nada nesse campo. Dou um exemplo propositalmente provocador. Estou num barco minúsculo e duas pessoas estão prestes a se afogar. Devo escolher entre salvar uma ou outra, pois não tenho a possibilidade de salvar as duas. Ora, uma dessas pessoas se chama Meir Kahane (um rabino racista) e a outra se chama Dalai Lama… Muito bem! Eu não hesito, escolho o não-judeu, o Dalai Lama, que é muito mais próximo dos meus valores!

O senhor abandonou a vida política em 2004 e repudia a evocação dos temas que se relacionam diretamente à política. Ainda assim, explique-nos por que a solução de dois Estados (Israel e Palestina) vivendo pacificamente, lado a lado, fica mais distante a cada dia…

A esperança de vida dessa fórmula está se esvaindo a olhos vistos. Israel continua a experimentar as maiores dificuldades para renunciar às colônias porque os colonos tomaram o país como refém. Os israelenses sentem-se atemorizados pelos nacional-fundamentalistas.

Ora, ao nos mantermos nas colônias [na Cisjordânia], estamos defendendo na prática a solução do Estado único, que é, na visão dos colonos, um Estado judeu. Do outro lado, o dos palestinos, cada vez mais gente acredita que um Estado único lhes seria vantajoso em virtude da demografia favorável.

Se esses dois lados militam pela mesma coisa, em breve não restará senão um quarto das duas populações – a esquerda israelense – a querer a existência os dois Estados. O ressentimento e o ódio entre os dois povos, ampliados, nos impedirão por muito tempo de imaginar a possibilidade de uma vida harmoniosa em comum; isso nos obrigará a viver separados durante muito tempo antes de poder sonhar com a cooperação ou a união. Um Estado único representa a melhor receita para o desastre.

A fórmula dos dois Estados continua a ser, apesar de tudo, crucial. Lanço um apelo a todos, israelenses, palestinos e à comunidade internacional, para que façam prevalecer essa solução antes que seja tarde demais.


Entrevista para Baudouin Loos | Le Soir Bruxelas | 16|06|08 |

Traduzida por Heliete Vaitsman para o PAZ AGORA|BR ]


 

 

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