Aceito falar até com o diabo para fazer a paz

 Entrevista de David Grossman por Marcelo Nínio

VIDA E ARTE se entrelaçaram de modo trágico para o escritor israelense David Grossman durante a Guerra do Líbano, em 2006.

Três anos antes, ele havia começado a rascunhar seu novo livro, que está sendo lançado agora em Israel: pressentindo que o pior irá acontecer a seu filho, um comandante do Exército, uma mãe israelense percorre o país a pé para não estar em casa quando a má notícia chegar.

Grossman ainda estava longe de concluir o livro quando o Exército lhe comunicou a morte do filho Uri, de 20 anos, em combate no Líbano.

A tragédia pessoal não alterou sua antiga militância pacifista, mas deu a ela uma urgência que o tornou um símbolo da oposição ao premiê Ehud Olmert.

À Folha, Grossman falou do novo livro, dos motivos para comemorar os 60 anos de Israel e de seu pessimismo sobre o conflito com os palestinos. Para ele, antes da paz, virá uma nova guerra.

Goran Tomasevic – 19.jul.2006/Reuters

Soldado israelense diante de ônibus atingido por foguetes disparados pelo Hizbollah, em Haifa

 

 

FOLHA- Como surgiu a inspiração para o seu novo livro?

DAVID GROSSMAN – Durante anos fiz uma separação entre meu trabalho de ficção, que quase não falava da realidade política, e o de não-ficção, que tratava diretamente do conflito.

Por causa da situação polarizada e violenta que vivemos, eu tinha a sensação de que não sobrava tempo de falar de coisas importantes, como as relações entre as pessoas, que nos são confiscadas pelo conflito. Mas chegou um momento em que eu senti necessidade de combinar os dois. Isso foi pouco antes de o meu filho se alistar. É a história do esforço quase heróico de ter uma vida normal neste país, dentro da caixa de ressonância do conflito.

FOLHA – Como a morte do seu filho influenciou o livro?

GROSSMAN – Não falo sobre isso em entrevistas. Mas posso dizer que o livro quase não mudou. O que mudou foi o escritor. Sou um homem mais triste e mais cansado, mas minhas opiniões continuam as mesmas. Não posso me dar ao luxo de entrar em desespero.

FOLHA – É difícil não achar que a história de uma mulher fugindo de más notícias representa uma metáfora do país.

GROSSMAN – É verdade. Acho que o nosso país está em processo de fuga há muitos anos, em vez de encarar a realidade e de ver os perigos e as oportunidades que temos para sair da situação anormal e distorcida em que vivemos.

Não estou dizendo que somos os únicos culpados. Os palestinos são cúmplices muito eficientes, que também fazem tudo para que não haja uma solução. Israel vive em estado de negação inclusive em relação aos perigos.

Há perigos existenciais, mas preferimos não pensar neles e em nossa fragilidade. Ao mesmo tempo, ignoramos as chances de chegar à paz. Essa é a tragédia: após tantos anos em que a força ditou as ações, provavelmente chegamos a um ponto em que não é possível fazer a paz sem mais uma fase de violência.

FOLHA – Depois de 60 anos, a maioria dos israelenses dá a impressão de ter superado o medo de que o país possa deixar de existir. O sr. não?

GROSSMAN – Não. Eu acho que o perigo ainda existe, mas as pessoas simplesmente reprimem esse medo. Há algo em nossa existência aqui que não é seguro nem óbvio. Não é óbvio para os nossos vizinhos, que continuam torcendo para que Israel deixe de existir, nem para o Irã e seu presidente, que fala abertamente sobre a destruição de Israel.

Este é o único país do mundo sobre o qual é legítimo pensar assim. Há muitos motivos para isso e eles não começam em 1948, mas na relação histórica com os judeus. Quase sempre o judeu foi tratado como um mito, um personagem idílico ou demoníaco, raramente uma pessoa de carne e osso. Uma história maior que a vida. E as histórias têm fim.

FOLHA – Enquanto Israel comemora a independência, os palestinos lembram os 60 anos da “Naqba” (catástrofe). Como o sr. vê isso?

GROSSMAN – É um equilíbrio muito delicado. Eu sempre digo que no momento em que começarmos a sentir compaixão pelo sofrimento dos palestinos isso permitirá que eles sintam o mesmo pela nossa trágica história.

Hoje eles não são capazes de sentir nenhuma empatia, porque estão certos de que, por causa do Holocausto, nós fazemos com eles o mesmo que fizeram conosco. Eu recuso terminantemente essa comparação.

O que nós fazemos é grave o bastante, mesmo sem ela. Israel não está nos territórios ocupados porque em 1967 decidiu fazer o genocídio dos palestinos. Eu estava aqui na época, lembro do medo que nos dominava. Tínhamos absoluta certeza de que deixaríamos de existir.

Vou contar um exemplo engraçado: quando eu era pequeno, e [o ditador do Egito Gamal] Nasser começou a dizer que jogaria os judeus no mar, exigi que meus pais me matriculassem em aulas de natação, aqui mesmo onde estamos conversando, na ACM.

Não eram aulas de natação mas de sobrevivência. Sou totalmente contra a comparação da ocupação com o nazismo, mas considero muito ruim o que fazemos com os palestinos. Nos viciamos no poder. Há algo muito tentador na força. Não gostamos de falar nisso, mas há um certo prazer em ter o controle, um prazer quase sádico.

O fato de termos sido um povo fraco por toda a história talvez torne mais difícil resistir à tentação de usar a força. É da natureza humana: tenho certeza de que, se fosse o contrário, os palestinos não seriam nada bonzinhos conosco.

FOLHA – O impacto psicológico do Holocausto ainda persiste nos israelenses?

GROSSMAN – Ainda é o acontecimento mais marcante. Ele faz com que não acreditemos realmente que haja um futuro. Nossas experiências são sempre definidas em termos totais. Ser ou não ser.

Também nos tornam desconfiados e levam o outro lado a se adaptar a nossa desconfiança. E fazem da morte uma opção extremamente disponível. Conheço muitas famílias que tiveram três filhos para que, se um deles for morto, ainda restarem dois. É um pensamento que me passou na cabeça, confesso.

FOLHA – No meio da Guerra do Líbano o sr. e outros dois importantes escritores convocaram uma entrevista para pedir um cessar-fogo. Por que os escritores em Israel têm mais influência do que em outros países?

GROSSMAN – Comecei a pedir o fim dos ataques uma semana depois do início da guerra. Eu, Amós Oz e A. B. Yehoshua achávamos que Israel tinha o direito de reagir à agressão do Hizbollah. Eu ainda acho isso. Mas não imaginei que começariam a destruir Beirute.

Era hora de parar. Na época pareceu uma loucura e eu sofri humilhações e recebi xingamentos. Fizemos a entrevista e, como todos sabem, não ajudou muito. Portanto, é bom não exagerar a influência dos escritores. Há um paradoxo: tudo o que fazemos é ouvido. O problema é que os políticos sempre reagem com atraso.

Quando escrevi um livro criticando a ocupação dos territórios palestinos [em 1987], Ehud Olmert e Ariel Sharon me viram como um traidor. Hoje, quando Olmert fala, parece que está lendo o meu livro.

FOLHA – O que Olmert poderia fazer hoje diante do Hamas, que sequer reconhece o direito de existência de Israel?

GROSSMAN – O Hamas há mais de um ano implora ao governo israelense que fale com ele. Todo dia há notícias sobre isso nos jornais, mas nos acostumamos a não vê-las. Não tenho nenhum entusiasmo pelo Hamas, um grupo fundamentalista perigoso para nós e para os palestinos. Mas não há escolha. Este é o meu inimigo e não preciso de seu reconhecimento. Aceito falar até com o diabo para fazer a paz.

FOLHA – Qual o seu balanço de Israel aos 60 anos?

GROSSMAN -Consideradas as enormes dificuldades, as guerras e o conflito, é uma realização enorme. Não podemos esquecer que os 600 mil judeus que viviam aqui depois do Holocausto, quando um terço do povo foi exterminado, criaram uma democracia.

Temos uma cultura extraordinária, ressuscitamos o idioma hebraico, desenvolvemos a agricultura, a indústria, a tecnologia e um Exército capaz de nos defender. E criamos uma identidade muito definida, apesar de suas muitas contradições.

FOLHA – Um país binacional é possível?

GROSSMAN – Não creio. Após tantos anos de ódio e negação mútua, não dá para esperar que esses dois povos convivam sob uma mesma nacionalidade. E acho muito importante, para nós e para os palestinos, que tenhamos uma fronteira.

Israel chega aos 60 anos sem fronteiras definidas, é enlouquecedor! É como viver em uma casa em que as paredes se movem o tempo todo, não dá para ter uma vida normal. E é claro que isso tem conseqüências, gera um medo permanente de que o vizinho invada o seu território. Além de tentação de invadir o vizinho.

FOLHA – O sr. pensou em dizer a seus filhos para não servirem no Exército?

GROSSMAN – A possibilidade surgiu quando chegou a hora de eles se alistarem, vários amigos deles decidiram não servir. Disse que os apoiaria em tudo e que entendo aqueles que preferem não se alistar.

Mas não acho que estamos numa situação em que possamos abrir mão do Exército. Eu ouvi isso até de palestinos, como [o escritor] Edward Said, que me disse: não invejo vocês no dia em que não tiverem mais um Exército. Talvez um dia não precisemos mais do Exército. Certamente não viverei o bastante para ver isso.

[ Publicado na Folha de São Paulo em 19/05/2008 ]

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