Cultura de Paz x Propaganda de Guerra
Pequenos textos, metáforas ou imagens são sempre simplificadores quando tratam de assuntos complexos como o do conflito do Oriente Médio. Para o bem ou para o mal.
As comparações que suscitam, porém, têm um enorme potencial de promover o entendimento. Ou, ao contrário, potencializar os ódios. Podem ser ferramentas de uma cultura de paz, ou servir como propaganda de guerra.
Neste último caso, os exemplos são muitos e seus efeitos devastadores. A infeliz charge retratando o profeta Maomé como um homem-bomba, publicada por um pequeno periódico dinamarquês, transmitiu uma mensagem de que todos os muçulmanos seriam terroristas, alimentando o preconceito islamofóbico, que se espalha pelo ocidente desde os primeiros atentados da al-Qaeda. Imputou uma característica de forte conteúdo negativo a todos os praticantes de uma confissão religiosa.
Da mesma forma, caricaturas demonizando judeus, à moda do jornal nazista Der Sturmer nos anos que precederam o Holocausto, são rotina na imprensa e nos textos educacionais de países árabes e muçulmanos, estimulando o racismo anti-judaico desde a independência de Israel e até os dias de hoje. Como é muito comum na Síria, nos territórios palestinos, e até mesmo no Egito, país que já assinou a paz com o Estado judeu.
O Irã, há poucas semanas, patrocinou um concurso internacional para promover esta categoria de “expressão artística”, com o objetivo de propagar sua campanha explícita de “varrer o Estado de Israel do mapa”. Para isto, contou até com um competente “especialista” conterrâneo nosso.
Num artigo recente, “Soluções para a Questão Palestino-Israelense“, incluí uma metáfora muito simples (não sou do ramo), tomando como paralelo uma briga entre dois irmãos para ilustrar a necessidade de se ouvir as duas partes e levar à conclusão de que “não devemos procurar ‘o’ culpado – pois a culpa nunca está de um lado só”.
Meu interlocutor disse não gostar de metáforas simplificadoras, e talvez para demonstrar sua ineficácia, dedicou todo o restante de sua resposta a novamente abordar o conflito entre israelenses e palestinos de uma forma onde os primeiros são – sempre – os culpados, e os palestinos – sempre – suas inocentes vítimas.
Ele disse também ser favorável a “armar os espíritos para uma luta sem tréguas pela verdade”. Sinto divergir. Pois em qualquer conflito cada uma das partes tem a sua própria verdade, que certamente não é idêntica à da outra. Não existe “a” verdade. A melhor solução, de qualquer conflito, só pode resultar de uma negociação, onde cada um terá que abrir mão de uma parte dos seus objetivos. A verdadeira paz, justa e duradoura, será resultado de um acordo que possa atender ao máximo às “verdades” de cada um, o que sempre demandará concessões.
Portanto, ao invés do armamento de espíritos, reitero o convite para um diálogo honesto – não gosto da palavra “debate” que em si traz a pré-disposição para o confronto – sobre as nossas posições.
A Raiz do Conflito
Como o meu parceiro Salem, também penso que a ocupação israelense dos territórios conquistados em 1967 é uma das grandes causas do sofrimento dos palestinos. Apóio, desde 1983, o PAZ AGORA, movimento popular israelense que chegou a levar às ruas de Tel Aviv quase meio milhão de pessoas, e há décadas vem defendendo o fim dessa ocupação, o estabelecimento de um Estado Palestino ao lado de Israel e a paz com os países vizinhos.
Mas é importante lembrar que as razões desse sofrimento são bem anteriores a 1967.
Desde a independência de Israel e até a Guerra dos Seis Dias, a Cisjordânia foi ocupada pelo reino hashemita da Jordânia, enquanto a Faixa de Gaza era controlada pelo Egito. E os palestinos não tiveram nenhuma iniciativa (salvo informação que eu desconheça) de estabelecer um Estado soberano naquelas regiões da Palestina. Foram lá mantidos, por seus irmãos árabes, sem direitos mínimos de cidadania, em campos de refugiados, sustentados pela ONU.
Não é diferente a situação, ainda hoje, dos “refugiados” palestinos em países árabes vizinhos, como no Líbano. Escrevo “refugiados” entre aspas, pois se tratam, em sua maioria, de seres humanos já nascidos no Líbano, filhos de pessoas nascidas no Líbano, país que lhes tem negado qualquer direito básico. Não podem votar, nem ser votados. Não podem sequer adquirir um imóvel.
A tragédia palestina nasceu, de fato, na “Nakhba” em 1947, quando os árabes da Palestina e dos países vizinhos – após a decisão da comunidade internacional por partilhar o antigo mandato britânico num Estado judeu e outro árabe – recusaram a divisão e invadiram Israel, sob a bandeira de jogar todos os judeus no mar.
O plano de partilha, aprovado pela ONU em novembro daquele ano, seguia aproximadamente a distribuição demográfica de cada um dos povos, oferecendo-lhes a soberania nacional. Só a comunidade judia o aceitou, declarando a independência de Israel em 14 de maio de 1948, sendo imediatamente atacada por exércitos regulares de todos os países árabes vizinhos. Da guerra desigual que se seguiu, com muitas perdas, Israel sobreviveu e se desenvolveu. Com um território que era (e é ainda) constituído em sua maior parte pelo árido deserto do Neguev.
Os árabes não constituíram o Estado que a ONU lhes garantia, e como conseqüência daquela guerra iniciou-se a dolorosa saga de centenas de milhares de refugiados palestinos, que em sua maioria foram sendo alojados em campos de refugiados, em condições miseráveis. Onde em boa parte ainda permanece, quase 60 anos depois, com seus filhos e netos…
Por outro lado, judeus em número equivalente foram, após a fundação de Israel, expulsos de países árabes, de comunidades onde viveram por séculos. Cerca de 600.000 deles foram acolhidos por Israel, que lhes deu um novo lar.
É inaceitável a condição em que vivem milhões de palestinos, e precisamos todos nos empenhar em lhes proporcionar uma vida com dignidade. Israel tem, sem dúvida, parte da responsabilidade por isto. Mas esta parcela não é de maior tamanho que a dos seus vizinhos árabes que o atacaram, provocando sua fuga e que, por gerações, os mantêm em condições desumanas, fermentando neles um caldo de cultura para o ódio e o terrorismo. Para uma paz verdadeira será necessário o fim da ocupação de Cisjordânia e Gaza, e uma solução justa para o sofrimento dos refugiados palestinos. Sim. Mas isto não será suficiente se o principal fato gerador do conflito não for removido: a não aceitação, por grande parte dos países árabes e muçulmanos, da partilha da Terra de Israel/Palestina entre um Estado judeu e um Estado árabe.
Foi – e é – esta recusa ao reconhecimento do Estado de Israel a causa primeira das guerras e do terrorismo que vem ceifando inúmeras vidas preciosas, tornando o dia-a-dia de israelenses e palestinos um inferno.
Energias e recursos que poderiam ser canalizados para o bem comum, acabam sendo desperdiçados no esforço militar e na violência insana. E o pior é que, apesar dos acordos de paz de Israel com Egito e Jordânia, esta recusa ainda é explicitamente estimulada por regimes como o do Irã, que prega os mesmos envelhecidos slogans de varrer Israel do mapa.
À sua volta, além de ter na Síria um vizinho que prega sua destruição, dois movimentos terroristas, o Hizbolá que assumiu de fato o controle militar do Líbano, e o Hamas que elegeu a maioria do parlamento da Autoridade Palestina, têm como princípio básico a destruição do Estado judeu. Palavra-de-ordem genocida que, mesmo aqui no Brasil, alguns militantes não se envergonham de propagar.
As linhas acima não têm a pretensão de explicar um conflito complexo e multi-facetado. Mas mostram que isto não pode ser feito de forma maniqueísta. Há culpados e vítimas de ambos os lados.
Será possível a paz enquanto um lado não admitir a existência do outro?
E aqui voltamos às metáforas. O professor Salem Nasser trouxe, em seu artigo “Que Paz queremos? “, uma que eu considero particularmente feliz e positiva: a do casal que se divorciou, mas como cada qual não tinha outro lugar para ir, tiveram que dividir a única casa. Com esta simples imagem, Amós Oz, um dos fundadores do PAZ AGORA, conseguiu expressar a inevitabilidade de uma solução onde judeus e palestinos só terão a chance de, ambos, realizarem seus anseios nacionais, caso concordem em estabelecer Dois Estados para os Dois Povos. Dividindo aquele pequeno quinhão de terra, chamado de Terra de Israel ou Palestina. Precisam dividir, porque nenhum deles tem outro lugar para estabelecer seu lar.
A solução de Dois Estados é a que tem sido aceita pelos campos da paz de ambos os lados. Multidões de israelenses e palestinos concordam com ela. Mas o professor Nasser, que disse não gostar de metáforas, utilizou sua criatividade para derivar a metáfora acima para uma versão deturpada, onde a parte oferecida aos palestinos é a do “banheiro de empregada”. À moda dos cartunistas dinamarqueses, fez uma generalização, sem base alguma, induzindo a crer que a opressão israelense seria uma postura inerente a tal solução. Conseguiu travestir uma imagem de conciliação e esperança numa de ódio, desrespeitando as convicções de milhões de israelenses, e de palestinos, que sofrem o conflito na pele e lutam pela paz.
A idéia de Amós Oz sobre a questão das futuras fronteiras do Estado Palestino, longe das distorcidas pelo professor, está muito bem expressa no artigo 4 do Acordo de Genebra (www.pazagora.org/genebra/artigo4.htm em português), da qual foi um dos redatores junto a personalidades importantes dos dois povos.
Que Paz Você Quer?
Devolvo a questão. Eu já a procurei responder, humildemente, em “Soluções para a Questão Palestino-Israelense“.
A paz nas formas descritas no “Acordo de Genebra” e na “Voz dos Povos” me parece bastante factível e justa.
Gostaria muito de saber como é a paz que o professor Salem deseja, e conhecer suas propostas para a solução do conflito, que até agora desconhecemos. Ou pelo menos críticas construtivas, para podermos avançar e convergir. Será uma atitude bem mais positiva do que meramente bombardear sistematicamente o outro lado com culpas e responsabilidades.
Apesar de minha veemência, quero agradecer-lhe de público, Salem, pelo apreço que tem por meu trabalho sob a bandeira da paz. Gostaria de tê-lo como amigo, segurando juntos esta bandeira.
Um bom início será que você se empenhe na defesa do direito do Estado de Israel existir, tanto quanto eu luto pela criação de um Estado Palestino.
Shalom, Salem.
Moisés Storch é coordenador dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA (www.pazagora.org)
Leia + » Que Paz queremos? (Carta de Salem H. Nasser ao amigo Moisés)
[ publicado no Terra Magazine em 05/10/2006 ]