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O conflito das narrativas
É geralmente aceito que acordos sobre as principais questões do conflito israelense-palestino, por mais difíceis que sejam, resolverão o problema. Essas questões são bem conhecidas: fronteiras, assentamentos, natureza do Estado Palestino a ser criado, segurança (para os dois lados), refugiados (incluindo a reivindicação palestina do “direito de retorno”), Jerusalém e água. Todas são inegavelmente importantes, e com certeza uma paz abrangente não será possível caso não se tratar de todas elas, e talvez de mais algumas.
Entretanto, existe um conjunto de questões relacionadas, mais profundas, que também precisam ser tratadas. Cada um dos lados é desconfortável com metade delas, e insiste sobre a outra metade. Eu as chamo de “questões intangíveis”, e para israelenses e palestinos elas são tão importantes quanto as “tangíveis” acima enumeradas, ou talvez até mais importantes em certos aspectos.
Estas questões intangíveis situam-se nas narrativas históricas dos dois lados.
Até recentemente, a regra da interação entre israelenses e palestinos normalmente era, como observou Uri Savir em sua história do processo de Oslo, a da “não-História”. A História sempre foi considerada como quente demais para se segurar. De fato, durante os anos ’90, aqueles de nós que lidaram com o “outro lado”, seja como negociadores ou em encontros acadêmicos ou por ONGs (track II), descobrimos que podíamos em geral falar livremente sobre o presente e o futuro, mas o passado freqüentemente causava uma elevação explosiva do clima. E então era evitado.
Havia boas razões para isto, porque as narrativas históricas de ambos os lados retratam um povo amante da paz atacado e brutalizado por outro que deseja a sua terra. O lado amante da paz havia dado o melhor de si para chegar a um compromisso viável, mas todos os seus esforços tinham sido rejeitados pelo outro. Os dois lados concordam em tudo isto. Mas discordam, de maneira contundente, sobre qual deles é o lado amante da paz.
A maior parte das pessoas em ambos os lados sente-se atacada, no fundo da respectiva consciência nacional, pela idéia de que o seu lado possa não ter feito -com alguns lapsos ocasionais e perdoáveis – tudo o que podia (e talvez até a mais) para resolver o conflito.
Embora não haja aqui espaço para nos aprofundar nas próprias narrativas nacionais, em toda sua extensão, elas são particularmente importantes para dois aspectos vitais do conflito, o direito de retorno e Jerusalém.
Para os palestinos, o direito de retorno é inextricavelmente ligado a um aspecto central de sua narrativa nacional, a “Naqba” [catástrofe] de 1948, e a dispersão que se seguiu. A recusa por Israel de reconhecer a ocorrência da Naqba, a não ser como um resultado de ações árabes, e a sua conseqüente indisposição a aceitar qualquer responsabilidade por ela ou de lidar com a reivindicação do direito de retorno, é entendida pelos palestinos como uma negação implícita, ou mesmo explícita, de sua existência nacional (e por outro lado os israelenses estão absolutamente convencidos de que tal aceitação levaria a uma torrente de reclamos palestinos por sua repatriação para dentro de Israel, a qual teriam então a obrigação de atender).
Embora ambas não sejam exatamente comparáveis, a recusa palestina de reconhecer o relacionamento histórico dos judeus com Jerusalém, e o argumento de Yasser Arafat de que o Segundo Templo nunca teria existido – ou caso existiu se situava em Nablus – é similarmente entendida como uma indisposição fundamental a aceitar a legitimidade de um Estado judeu no Oriente Médio.
É necessário um reconhecimento da narrativa do outro. Um gesto de respeito que a leve a sério sem discutir sua verdade histórica. Não que a verdade histórica seja irrelevante ou desimportante. Mas ela está no terreno dos historiadores, enquanto que a narrativa histórica é propriedade de toda a sociedade (na verdade, o trabalho dos historiadores profissionais israelenses e palestinos é bem mais próximo da narrativa do “outro” do que as narrativas nacionais populares).
O reconhecimento da narrativa histórica do outro não é, claro, uma varinha mágica que tornará possível a paz. Entretanto, o reconhecimento de elementos da narrativa do outro e a aceitação de que os dois lados necessariamente têm visões do passado muito diferentes – e legítimas – pode ajudar a levar a uma aceitação conjunta da responsabilidade, que percorrerá um longo caminho na direção de tratar do reclamo do direito de retorno por muitos palestinos. Isto não será fácil, dada a convicção de cada um dos lados de que não tem nenhuma culpa, enquanto o outro certamente é culpado virtualmente por tudo.
No final das contas, o conflito não é fundamentalmente sobre quantidades de terra ou números de retornantes. É sobre a completa aceitação da legitimidade nacional do outro.
O reconhecimento da narrativa do outro é um passo nessa direção. Por exemplo, a discussão pública da separação entre o “direito de retorno” e a “realidade do retorno” poderia mudar um pouco da dinâmica em ambos os lados.
Da mesma maneira, a aceitação palestina da importância histórica e religiosa do Monte do Templo e das ruínas do Templo para o povo judeu não deve diminuir o significado das mesquitas do Haram al-Sharif para palestinos e outros muçulmanos.
Como disse em 2000 o negociador israelense Elyakim Rubinstein em Camp David, “o processo de paz não deve ser a arena na qual a verdade será decidida”. Entretanto, o reconhecimento da importância da narrativa histórica própria de cada um para a legitimação do outro lado pode ser necessária, antes que possamos finalmente chegar a acordos sobre as questões tangíveis.
PAUL SCHAM coordenou projetos acadêmicos conjuntos de israelenses e palestinos no Instituto Truman da Universidade Hebraica de Jerusalém, de 1996 a 2002. Foi co-editor, com Walid Salem e Benjamin Pogrund, de “Shared Histories: A Palestinian-Israeli Dialogue“ (2005)”. É atualmente diretor adjunto do Middle East Institute em Washington.
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