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O conflito das narrativas
Durante o ano de 2000 e no início de 2001 – antes, durante e depois das negociações de Camp David II – israelenses e palestinos tentaram, pela única vez a nível oficial, negociar um acordo de paz definitivo. Desde que essas conversações fracassaram, as relações se deterioraram seriamente e muitos israelenses perderam a fé na capacidade de os dois lados chegarem num futuro previsível a uma solução.
A realidade atual no pós-guerra do Líbano, na qual os combates ainda prosseguem em Gaza, quando o plano de convergência do premier Ehud Olmert para a Cisjordânia foi engavetado e a governança interna palestina está em desordem, constitui de certa maneira uma nova queda nesse relacionamento e prenuncia uma estagnação sem precedentes.
Precisamente por as coisas estarem tão mal, este pode ser um bom momento para olhar novamente para o básico.
Uma considerável maioria nos dois lados parece hoje concordar amplamente em questões como fronteiras, assentamentos, segurança, água e arranjos econômicos entre Israel e um Estado Palestino. A maioria parece convergir para o modelo geopolítico de uma solução de Dois Estados.
Mas aprendemos em 2000 que mesmo um quase acordo sobre esses tópicos não conseguiu evitar o colapso do processo, porque permanecemos muito distantes da narrativa, ou das questões “existenciais”: a questão dos refugiados/direito de retorno e a questão do Monte do Templo/Haram al-Sharif [em Jerusalém].
Nos anos a partir de 2000, tornou-se visível que a posição consensual palestina nessas duas questões contradiz de fato os pressupostos de uma solução de dois Estados, da forma como os israelenses a entendem, e como a Resolução 181 da ONU, de 29/11/1947, a define: “um Estado árabe e um Estado judeu” no Mandato da Palestina, ou seja, um Estado palestino árabe adjacente a Israel, um Estado judeu.
Os palestinos estão ostensivamente divididos em sua argumentação e abordagem histórico-filosófica sobre o conflito, entre uma grande minoria (muitos entre os que votaram no Hamas nas eleições de janeiro) – que apóia a insistência do Hamas em que uma paz genuína com um Estado israelense é impossível e que a única solução possível implica na desaparição de Israel – e a maioria que aceita a posição da Fatah de uma solução de dois Estados, baseada nas fronteiras de 1967.
Mas, na verdade, quase todos os palestinos insistem em duas versões de narrativas que, pelo menos a nível histórico-filosófico, contradizem uma solução que justaponha um Estado judeu ao lado de um Estado árabe.
Primeiro, o argumento palestino de que nunca existiu nenhum templo judeu no Monte do Templo/Haram al-Sharif, e que portanto Jerusalém não teria grande significado nacional e religioso para os judeus, nega as raízes nacionais judias e de Israel na Terra de Israel/Palestina histórica. Ele retrata Israel como um Estado artificial, produto do assentamento colonial por estrangeiros, que é exatamente a forma como a maior parte dos palestinos, e da maioria dos árabes, nos vêem.
Israel pôde fazer a paz com os egípcios, que mantêm esta visão. porque o Egito não tem nenhuma reivindicação sobre as terras da Palestina ou o Haram al-Sharif/Monte do Templo, assim tornando a questão irrelevante para uma relação de boa (se bem que fria) vizinhança entre países. Mas a intimidade nas relações israelense-palestinas – dois Estados partilhando a mesma terra – torna isto muito mais difícil.
O mesmo argumento vale para o direito de retorno. O problema não é se Israel aceitaria refugiados palestinos como parte de um acordo, ou nem mesmo a questão da quantidade desses refugiados. A real questão de narrativa é a insistência palestina de que, sem considerar o destino de refugiados específicos, Israel deve reconhecer, a nível de princípio, o direito de retorno de todos os refugiados de 1948 e dos seus descendentes, que seriam 4 milhões de pessoas.
Do jeito que os israelenses entendem esta demanda, se todos esses palestinos tivessem, mesmo que teoricamente, o direito de retorno, seria porque Israel os teria expulso numa guerra injusta. Se os descendentes daqueles expulsos em 1948 tivessem, perpetuamente, o direito de retorno, isto significaria assumir que a ligação dos palestinos à terra é eterna e que o mesmo não acontece com os judeus.
Em outras palavras, Israel teria nascido do pecado em 1948, significando novamente que ele não teria direito a existir, que seria uma entidade estrangeira e ilegítima. Isto é o que os palestinos num Estado Palestino ao lado de Israel ensinariam às suas crianças na escola.
Esta não é uma base aceitável para uma solução de dois Estados, porque inclui um núcleo de negação de um lado pelo outro, e abre a porta para um futuro de irredentismo e conflito permanente.
Observe-se que os israelenses não põem em questão a importância religiosa e histórica do Monte do Templo/Haram al-Sharif para palestinos e muçulmanos em geral. Eles não demandam que os palestinos e outros árabes se desculpem por ter rejeitado a resolução 181 e por terem tentado destruir o nascente Estado judeu em 1948.
Os israelenses não insistem que os palestinos reconheçam que guerras causam problemas de refugiados, que a guerra de 1948 gerou tantos refugiados judeus expulsos de países árabes quanto os refugiados palestinos, e que cada país deveria em princípio absorver os seus próprios.
Eles não ligam para o que os palestinos pensam sobre o primeiro e segundo templos, na medida em que eles reconheçam que os judeus têm um laço histórico nacional e religioso com o Monte do Templo/Haram al-Sharif, o qual precisa encontrar expressão em arranjos para a definição de sua soberania e com respeito aos direitos israelenses e judeus sobre os locais e seus acessos, tudo isto sem prejudicar os direitos palestinos e muçulmanos.
Noutras palavras, os israelenses não insistem, para que se possa acabar com o conflito, que os palestinos (ou outros árabes que contemplem a paz com Israel) ratifiquem a narrativa israelense, mesmo que a lógica palestina indique que deveríamos fazê-lo.
Enquanto os palestinos não conseguirem ajustar a sua narrativa de forma a aceitar o direito de Israel a existir como um Estado judeu na Terra de Israel/Palestina histórica – e vejo pouca possibilidade disto acontecer num futuro próximo – não conseguiremos verdadeiramente terminar esse conflito.
Israel deveria temer, com toda razão, a aceitação palestina de uma solução de dois Estados onde o reconhecimento de Israel fosse temperado pela aderência palestina a um conjunto de crenças e narrativas que negam o direito de Israel a existir como Estado judeu, e que abrigasse uma agenda visando acabar palestianizando Israel através do “retorno” legal e ilegal. e da subversão e incitamento da minoria árabe de Israel.
No momento, podemos e devemos encontrar caminhos de coexistência entre nós e entre nossas narrativas conflitantes. Nós, israelenses, devemos desmantelar assentamentos e nos retirar unilateralmente da Cisjordânia e da Jerusalém Oriental (mas não do Monte do Templo/Haram al-Sharif) o tanto quanto possível, de forma a proporcionar aos palestinos as melhores condições viáveis para conduzir suas próprias vidas em sua própria entidade política.
YOSSI ALPHER é co-editor da bitterlemons.org, bitterlemons-international.org e da bitterlemons-dialogue.org. Foi diretor do Jaffee Center for Strategic Studies e assessor do ex-primeiro ministro israelense Ehud Barak
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