A narrativa no contexto israelense-palestino

n 829 bi


O Conflito das Narrativas   


Dois Estados

Dois Estados

A palavra “narrativa” é um termo muito ambígüo. Alguns a usam para falar sobre percepções conjuntas e memórias coletivas numa sociedade, para diferenciar entre “nós” e os “outros”, expressando assim concentração num neo-tribalismo que não mais é relevante no novo contexto globalizado.

Outros a usam para descobrir a diversidade de diferentes narrativas entre distintos grupos dentro de uma sociedade, conforme idade, sexo, etnicidade ou qualquer outra variável. Este segundo conceito de “narrativa” ajuda a colocá-la numa posição que não seja oposta a outra, mas de forma a encontrar “narrativas-ponte”, que possam ser compartilhadas por grupos na mesma sociedade ou através de divisões. Ele também ajuda a identificar “narrativas conflitantes” entre grupos, dentro ou fora de uma sociedade.

Ao mesmo tempo, a abordagem por narrativas é arriscada caso se adote uma postura de que um acordo de paz entre dois lados em conflito não será possível até que cada uma das duas populações chegue a um entendimento da narrativa do outro.


Pode-se imaginar o quão longo seria um processo de paz – se é que algum dia ele se completaria – se fosse condicionado a um processo de baixo para cima para um entendimento da narrativa do outro…

Uma abordagem diferente seria tomar como suficiente trabalhar neste sentido com tomadores de decisão, acadêmicos e líderes comunitários dos dois lados. Caso isto seja conseguido, sem dúvida ajudará os políticos a alcançar acordos sobre os assuntos em questão. Auxiliará os acadêmicos no desenvolvimento de novos currículos escolares que incluam as narrativas do outro, e dará aos professores subsídios para uma pedagogia inclusiva.

E também ajudará líderes comunitários, incluindo os das minorias, a se tornarem participantes da reconciliação, ao invés de promoverem incitação e antagonismo. Tudo isto seria construído sobre o entendimento das narrativas do outro – sem necessariamente se ter que concordar com elas.

Com respeito à especificidade do conflito israelense-palestino, pode-se supor que uma minoria dos palestinos reconhece a narrativa do outro, embora uma maioria levante a questão: por que um palestino deveria tentar entender a narrativa do outro sobre a mesma terra? Foi David Ben Gurion, o primeiro premier de Israel, que disse que “se fosse um líder árabe, jamais chegaria a um acordo com Israel. Isto é natural: nós tomamos o país deles”.  Esta afirmativa franca mostra que foram os palestinos que pagaram o preço para o estabelecimento do Estado de Israel em 1948 (e sofreram outra deportação massiva em 1967).


A questão é: deveriam os palestinos entender/reconhecer a narrativa israelense sobre o sofrimento deles?  Caso positivo, isto não iria apenas aprofundar a assimetria que caracteriza as relações israelense-palestinas? Ou a questão seria de Israel reconhecer suas responsabilidades pelo sofrimento dos palestinos, e juntamente com isto  sugerir soluções criativas, guiadas não apenas por considerações demográficas israelenses mas também criando condições para assegurar direito igual de acesso a segurança humana para israelenses e palestinos? Segurança humana, neste sentido, inclui direitos iguais dos dois povos a se libertar do medo e da penúria.

Caso esta demanda humana pelo reconhecimento/solução do sofrimento dos refugiados palestinos e das pessoas deslocadas não seja atendida, os temores palestinos irão se aprofundar quanto à possibilidade de as justificativas que foram usadas no passado para criar Israel serem usadas novamente para expandir Israel para dentro dos territórios palestinos ocupados em 1967. Estas justificativas sempre foram: os palestinos recusaram isso e aquilo, portanto eles têm a responsabilidade pelo que lhes aconteceu.

Isto posto, parece que Israel deve dar o primeiro passo na direção de resolver o problema dos refugiados palestinos, tomando como ponto de partida o entendimento da narrativa do outro lado.


Isto criaria um clima positivo que poderia estimular ambos os lados a responder a uma “competição pela paz”, que incluiria o desenvolvimento de uma visão pacifista onde se sente que o outro lado entende suas necessidades e direitos.

Tal visão deveria incluir o reconhecimento dos direitos individuais e coletivos dos dois lados à mesma terra, o reconhecimento das perdas históricas dos dois lados, e procedimentos para transformar o conflito em paz, através da implementação de uma solução de dois Estados.

Isto seria um uso político positivo das narrativas, ao contrário do seu uso como ferramenta para fazer os palestinos fazer concessões contra seus direitos, ou como instrumento para expressar e aumentar as divisões entre israelenses e palestinos.

Em todos os tempos, a abordagem de narrativas no conflito palestino-israelense foi usada para fins políticos.  A questão de hoje não é a de desconectar politicamente as narrativas das realidades atuais israelense e palestina, mas de buscar fazer delas um instrumento político que possa ajudar os dois lados a encontrarem caminhos para sair do impasse.


WALID SALEM é diretor do “Panorama“, Centro Palestino para Disseminação da Democracia e Desenvolvimento Comunitário, ONG baseada em Jerusalém Oriental. É autor de vários livros e artigos sobre democracia, sociedade civil, juventude, refugiados e estudos sobre a paz. Foi jornalista e membro do Conselho Nacional Palestino. 


[ © bitterlemons.org  04/09/2006  versão brasileira PAZ AGORA/BR  ]

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