Ao denunciar o pacto perverso entre o capitalismo pós-moderno e as sociedades pré-modernas em prejuízo da modernidade propriamente dita, Zizek (2003) nos diz que este pacto repetiria no cenário mundial aquele que se instaura através da dessublimação repressiva entre o supereu (autoridade social) e o isso, (impulsos agressivos ilícitos) em prejuízo do eu. No nível intrapsíquico, a dessublimação repressiva – tal como usada por Marcuse (1968) e outros autores da Escola de Frankfurt – corresponde ao progresso da racionalidade tecnológica em liquidar a verdade preservada nas sublimações da cultura.
Valores tradicionais são reduzidos a mercadorias, passando só a contar o valor do mercado, e não mais o da verdade. Ideais e esperanças apenas subsistem como conchas vazias, pertencentes à esfera do ganho material. Assim o supereu, enquanto representante da autoridade social, urge o isso a obter prazer do que é oferecido pela cultura de massa, que adormece o eu (o lugar onde a análise crítica pode ter lugar), convida o isso ao gozo imediato e o incita a não adiar a descarga catártica.
A fim de ilustrar a ocorrência do pacto perverso a nível mundial, Zizek (2004) faz referência ao nazismo como uma perversão da lógica do bem supremo. Nele, os piores crimes deveriam ser realizados em nome do bem da Nação, e se evidencia a tensão entre a lei e seu obverso obsceno. Do mesmo modo, os perversos têm seu prazer aumentado quando transformam um jogo sexual em um ritual burocrático com seus códigos próprios: ‘… O prazer se dá pela tensão entre a atividade puramente instrumental e performativa e o modo obsceno e secreto com que acarreta o gozo.'(ibid.:127). No nazismo, os nazistas assumiam papéis burocráticos. Secretamente, e aqui se faz evidente a importância do segredo nos pactos perversos, muitos sabiam, em algum nível do saber (inconsciente, para muitos) que estes rituais comandados pelo dever eram apenas uma fachada a fim de ocultar o seu gozo na execução da violência. Tratava-se de um jogo perverso em que até mesmo os sentimentos de culpa engendrados, muitas vezes, serviam para aumentar este gozo.
Zizek acrescenta que várias estruturas sociais normativas se sustentam porque baseadas em regras não escritas que precisam permanecer secretas e que têm uma dimensão obscena. Ele ilustra isto com o Exército e a Igreja, duas organizações às quais Freud fez referência. Por outro lado, ele critica as ações terroristas que resultam de tais pactos perversos os quais, ao invés de aproximarem o ‘real’ – o cerne traumático da realidade para Lacan – que aparentemente buscam, perdem-se num fascínio pelo espetáculo do horror. Tais ações e seus efeitos impedem que percebamos as semelhanças, por exemplo, entre Bin Laden e Bush, que se ‘aliam’ no objetivo de obscurecer qualquer percepção, em suas culturas, dos antagonismos de classe comuns a todas as culturas. Ao expor estes pactos obscenos que ganham o palco do mundo, Zizek reinstaura a tradição de análise crítica da Escola de Frankfurt, que associou o pensamento psicanalítico com o marxismo, numa tentativa de melhor entender os fatos sociais.
Na sua análise, Zizek aponta para o cenário desolado de um mundo em que decisões que afetam milhares de vidas, como as do FMI, que dita condições para que um país do Terceiro Mundo possa pleitear um financiamento, são tomadas como se fossem sem conseqüência, porque abstraídas das situações muito ‘reais’. Esta mesma abstração leva os poderosos a prometerem e promoverem guerras sem qualquer baixa do seu lado, como se meramente virtuais, e como se as do outro lado não contassem. Neste cenário, contingentes populacionais sempre maiores são expostos ao desamparo, privados de quaisquer direitos, muitas vezes para serem transformados em massa de manobra contra alvos selecionados, à mercê dos interesses dos que detêm o poder.
Em sua denúncia do pacto perverso, Zizek (2003) mostra como a obscenidade do outro lado do poder está presente em muitas instituições cujas injunções são superegóicas, e que mantêm como um segredo os excessos gozosos do supereu. Exemplifica com a Igreja Católica, cujo funcionamento se apóia em regras não escritas. Por exemplo, nela há o Opus Dei, que age como se fosse a ‘máfia branca’ da Igreja, representante da Lei pura, cuja finalidade única é a de obedecer ao Papa, com a suspensão de todas as outras regras, se necessário. Seus membros se tornam ‘Opus Dei’, ‘o trabalho de Deus’, isto é, adotam a posição perversa de instrumentos do grande Outro. Ao lado disto, há o escândalo dos abusos sexuais por padres, tão generalizados, que Zizek os considera como uma ‘contracultura’ articulada no interior da Igreja, com seu conjunto de regras secretas. A Opus Dei se liga a isto ao intervir de modo a abafar tais escândalos, o que a Igreja justifica, ao dizer que se trata de um problema interno à organização, não tendo que colaborar com investigações policiais. A Igreja se vê como uma organização simbólica que tem autonomia em relação ao resto do tecido social e que estabelece suas próprias leis, consideradas dogmas de fé. No entanto, como Zizek aponta:
‘No ‘início’ da lei, há um certo ‘fora da lei’, um certo Real de violência que coincide com o próprio ato de fundação do reino da lei: a verdade mais básica sobre o reino da lei é de que é uma usurpação e todo o pensamento político-filosófico clássico baseia-se na negação deste ato violento presente na fundação. A violência ilegítima através da qual a lei se sustenta precisa ser escondida…, [como] o condicionamento positivo da lei: esta funciona enquanto as pessoas são enganadas e percebem a autoridade da lei como ‘autêntica e eterna’ e fazem vista grossa para a verdade sobre a usurpação.’ (2004: 204).
Assim que a Igreja não quer conhecido e investigado por instituições externas o fato de sua organização simbólica ser dependente do seu lado perverso informulado. Zizek concorda com isto, por ser o abuso de menores um produto inerente à organização institucional simbólica, uma vez que ‘a pedofilia é gerada pela instituição católica do sacerdócio como uma ‘transgressão inerente’ e como seu suplemento secreto’. (2003. p.45). Segundo ele, as cruzadas contra a pornografia, abuso sexual e outras questões, conduzidas pela igreja católica são muitas vezes baseadas em fundações libidinais obscenas que a organização simbólica nega.
O assumir do lado obsceno e secreto do Poder encontra exemplo em Hitler, que usou Himmler para expor-lhe o ‘segredo’ do Holocausto. Seria heróico cometer um crime pela pátria, muito mais difícil do que fazer algo de nobre por ela (Zizek, 2003, p.45). Himmler em seu discurso para os líderes da SS em Posen, a 14 de outubro de 1943, descreveu o assassinato em massa dos judeus como ‘uma página gloriosa da nossa história, uma página que nunca foi, nem jamais poderá ser escrita’.(in Ian Kershaw, 2001, ps. 604-605).
Em nome do heroísmo, das grandes virtudes, pelo bem da nação, propõe-se o segredo do obverso obsceno. Este pacto perverso do nazismo utilizou o judeu – além de outros grupos cujo extermínio foi promovido (ciganos, doentes mentais, homossexuais e um sempre crescente número de ‘outros’), embora não do modo ideologicamente consistente como o que presidiu o extermínio dos judeus – como espectro fantasmático para esconder os antagonismos sociais e garantir a consistência simbólica da totalidade social. Os judeus seriam a explicação de todos os males e, no intuito de eliminá-los, todos se uniriam no Um imaculado da raça pura.
Contra as injunções do supereu que estão na origem dos pactos perversos, Zizek propõe que sejam transformadas as próprias coordenadas que definem um conflito permitindo um novo ‘nós’, na percepção da divisão que nos constitui a todos e que nos uniria, tão logo percebida, em um novo universalismo através de todas as diferenças. Por exemplo, dar-se conta de que antagonismos de classe são comuns a dois povos em luta pode inaugurar uma interlocução entre os que, dos dois lados, querem a paz e se opõem a serem manipulados pelos que se unem contra ela. A possibilidade deste novo nós revelaria a inconsistência ideológica – que esses últimos visam esconder – que desmascararia os pactos perversos. O segredo do gozo perverso oriundo da dessublimação repressiva, e que culmina no espetáculo do terrorismo e sua jouissance pulsional não seria mais ocultável, os ganhos do supereu obsceno se tornariam evidentes e, como antevia Benjamin, o ato genuinamente político, num tempo que é ‘agora’, o presente, redimiria os que sofreram violências no passado [1]. A proposta deste novo universalismo é de que nos reconheçamos uns aos outros em nossos pathos e divisões.
Na contra-mão do novo universalismo que está sendo proposto, encontram-se alguns -não todos – ícones do movimento anti-globalização que propõem o terrorismo contra povos e nações, em nome de valores tais como coragem, desprendimento, resistência, dignidade, martírio. Para justificar a violência a que instigam, apresentam novas versões de antigos nacionalismos e pan-nacionalismos – como é o caso do ‘islamofascismo’… tentativa impossível de um ‘capitalismo sem capitalismo’ …’ (Zizek, 2003, p.155).[2] Nada propõem, em suma.
As observações acima visam contextualizar o evento relatado a seguir, possível ameaça de ideologização da psicanálise, a qual Freud sempre se opôs. Para ele, a psicanálise nunca poderia confundir-se com uma Westanchaung e muito menos propô-la.
Em novembro de 2003, no Rio de Janeiro, por ocasião do segundo encontro mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, Tarik Ali, um escritor e historiador paquistanês de fama mundial, um ícone do movimento de anti-globalização, editor da famosa revista New Left, foi convidado a falar para uma platéia de aproximadamente 700 psicanalistas de várias instituições e nacionalidades. Na sua palestra, ele propôs o terrorismo, semantizado positivamente como resistência, coragem e martírio (elogiando o terrorismo e definindo os homens-bomba como resistentes e mártires) e como a ação mais adequada para se enfrentar o colonialismo dos Estados Unidos e de Israel [3].