Quando foi abatido, 10 anos atrás, a esperança e a inocência de Israel caíram junto com ele.
Eu estava lá, na praça em frente à Prefeitura de Tel Aviv, na noite em que Itzchak Rabin fui assassinado.
Era para ser um tipo diferente de manifestação, diferente de todas as outras de que tinha participado na minha vida. Em vez de um protesto, era uma demonstração de apoio, uma demonstração da gratidão a Itzchak Rabin e Shimon Peres, um grande abraço de agradecimento pelo que tinham feito para a paz entre Israel e os palestinos. Queríamos declarar nossa simpatia a estes dois cavalheiros, não muito jovens, que tinham conseguido romper velhos padrões de pensamento e ação que haviam determinado por décadas as suas atitudes para com os palestinos .
Era 4 de novembro de 1995. A praça estava coalhada de gente. Dezenas de milhares de ativistas e apoiadores da paz tinham chegado para expressar sua gratidão a Rabin por sua coragem. Estávamos todos bem cientes dos obstáculos enormes que Rabin havia enfrentado ao mover-se para a paz. Tínhamos visto as demonstrações iradas da ala direita nesta mesma praça e em outras, e as vigílias virulentas a cada sexta-feira na frente da sua residência oficial em Jerusalem. Nós tínhamos ouvido os incitamentos dos líderes da direita, de Benjamin Netanyahu e Ariel Sharon, e dos rabinos direitistas que consideravam Rabin um traidor e declaravam que deveria ser julgado.
Viemos para lhe dar apoio, para lhe agradecer pelas novas perspectivas que abrira para nós e nossos filhos. Pela primeira vez numa geração. Israel tinha um líder que não apenas falava de seu desejo pela paz com os palestinos mas tomava ações efetivas para alcançá-la. Ele tinha aberto uma janela pela qual um ar puro e fresco de repente começava a soprar, uma brisa que representava uma vida melhor, uma vida que não exigia de nós viver só pela espada.
O apoio do campo de paz a Rabin não era cego nem automático. Junto à nossa profunda simpatia pela sua metamorfose num tribuno da paz, nunca cessamos de duvidar e nos perguntar – mesmo naquela noite quando conversávamos na praça – se Rabin realmente pretendia consumar uma paz duradoura com os palestinos.
Seria ele realmente capaz de se fazer livre, durante as negociações, da confiança na força militar que tinha formatado sua visão de mundo desde a infância? Em outras palavras, quando Rabin falava de paz (com toda a sinceridade, do seu ponto de vista), será que ele queria dizer uma paz verdadeira, um tipo de mutação nas relações entre israelenses e palestinos? Ou se revelaria que ele na verdade pensava como outros antes dele, que usavam a palavra ‘paz’ com o significado de um rearranjo de nossas defesas voltado apenas para atender as necessidades israelenses? O objetivo de tal programa não seria criar dois Estados soberanos vivendo lado-a-lado mas apenas reforçar o domínio de Israel sobre os palestinos.
Então, à altura do processo de Oslo, os israelenses – pelo menos os que apoiavam o processo – sentiram que sua luta tinha chegado ao fim e que a paz era só uma questão de tempo. Mas naquele mesmo momento, nos territórios ocupados, Israel confiscava vastas extensões de terra, constrúindo estradas exclusivas para israelenses, e dezenas de milhares de judeus mudavam para os territórios ocupados.
Naquela noite, nós queríamos estimular Rabin a avançar, a ser mais determinado e inequívoco. Queríamos lembrá-lo de que ele ainda tinha apoio no seu povo, mais do que tinham aqueles opositores que se manifestavam contra ele e o chamavam de assassino e traidor.
Nós quisemos lembrá-lo que, para conseguir a paz, não era bastante encontrar-se parcialmente com o inimigo. Em certo sentido, cada lado deve andar todo o caminho até o outro, porque se você não caminhar pela estrada inteira, na direção dos medos, feridas e devastação do seu inimigo, você nem saiu do lugar. Nós queríamos alertá-lo para o fato de que o processo de paz era reversível, frágil, quase impossível em nossa violenta região, e para que tivesse sucesso nós tínhamos que agir contra nossos medos mais profundos, contra o instinto de sobrevivência que tínhamos assoberbado por tantas guerras.
Eu lembro como ele falou. Curto, frases diretas, num hebraico simples, informal, direto. Eu o recordo sorrindo com incontido prazer ao ver a multidão que o rodeava com amor. Era algo que ele raramente sentia naqueles dias. Eu lembro dele auto-confiante cantando a ‘Canção da Paz’, um hino do movimento da paz. Parecia que as suas palavras estavam prestes a se tornarem realidade: ‘Não diga apenas que um dia virá / Traga você mesmo este dia / Pois não é um sonho!’
E poucos minutos depois – três tiros, caos, confusão. Um sentimento profundo de perda pessoal e pública, o fim de uma era, o fim da esperança, um sentimento de que uma inundação poluída, fanática e violenta tinha jorrado de repente das profundezas do sub-consciente israelense e se tornava realidade, e que iria determinar nosso futuro a partir daquele momento.
Dez anos. O assassino de Rabin não conseguiu, parece, voltar o relógio para trás, ou de destruir totalmente o processo de conciliação entre as duas nações. Mas foi capaz de retardá-lo, embaraçá-lo, de encharcá-lo com mais e mais sangue, israelense e palestino. Não há espaço aqui para descrever os tremores e os desastres a que Israel se submeteu nestes últimos 10 anos. A maioria deles foram detalhados repetidamente em inúmeras páginas.
Hoje, Israel é um país próspero, dinâmico, cheio de vitalidade, mas ao mesmo tempo é um país dilacerado, atormentado, onde muitos grupos enxergam outros grupos como nada menos que viscerais inimigos.
Uma década após o assassinato, os israelenses aceitaram – não com muito entusiasmo mas por exaustão – que a terra deve ser dividida em dois países. Contudo isto ainda não foi traduzido em ações determinadas e corajosas, e a violência irrompeu novamente entre os dois lados.
Uma década após o assassinato de Rabin, Israel é governado por Sharon, o homem que trabalhou com toda a sua vontade contra a política de paz de Rabin. Hoje, Sharon é, irônicamente, o herdeiro de Rabin – com sua audácia, no risco político e pessoal que assumiu, mas também em sua ambivalência sobre a continuação da ocupação e a possibilidade de uma paz verdadeira.
Estes têm sido 10 anos sofridos e amargos. Rabin, o homem, foi assassinado, e junto com ele um sentimento de inocência foi rasgado em pedaços, uma inocência que então ainda existia em alguns cantos de Israel. Nós também perdemos a simples esperança em ter uma vida normal e tranqüila e numa sociedade israelense desmilitarizada, aberta e tolerante, que parecia então estar a nosso alcance.
Quanto esperávamos, aquela noite na praça, que estaríamos chegando perto do fim do conflito, ao começo de uma nova era de sanidade…
Como fomos inocentes,enquanto assassino caminhava entre nós com uma pistola no bolso…
O romancista israelense DAVID GROSSMAN, veterano membro do Movimento PAZ AGORA, um dos redatores da DECLARAÇÃO CONJUNTA ISRAELENSE-PALESTINA é autor de ‘Death as a Way of Life: Israel Ten Years After Oslo’ (Farrar, Straus iroux, 2003), entre vários livros premiados.
Publicado no The Guardian em 04|11|2005 e traduzido por MOISÉS STORCH para o PAZ AGORA|BR –