Pequena Biografia
O Prof. Yeshayahu Leibowitz, que foi a fonte de tanta controvérsia durante sua vida ainda gera muita agitação desde seu túmulo.
Yeshayahu Leibowitz nasceu em 1903 em Riga, Látvia. De 1919 a 1924, estudou química e filosofia na Universidade de Berlim, tendo se doutorado em filosofia. Recebeu seu diploma de médico na Universidade da Basiléia em 1964. Em 1935, emigrou para a Palestina e após um ano ingressou na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde foi nomeado professor de química em 1941.
Durante a Guerra de Independência de Israel (1948), participou da defesa de Jerusalém, tendo sido comandante de batalhão na Cidade Velha. Foi também ativo politicamente desde os primeiros dias do Estado, no agrupamento “Trabalhadores Religiosos” (Haoved Hadati) da federação sindical Histadrut.
Em 1952, Leibowitz foi nomeado professor de química orgânica e neurologia. Editou a “Enclopédia Hebraica” e publicou vários livros sobre temas científicos. Leibowitz também escreveu livros sobre judaísmo e filosofia, e dedicou muito tempo ao estudo da obra de Maimônides.
Judeu religioso abnegado e cumpridor das ‘mitzvot’, foi ao mesmo tempo um dos grandes combatentes pela separação entre religião e Estado em Israel, e um dos mais incisivos críticos da ocupação dos territórios em 1967, a qual, imediatamente após a Guerra dos Seis Dias, já via como o germe da destruição da sociedade israelense e do fim do sonho sionista do Estado judeu.
Aposentou-se oficialmente em 1970, mas continuou a ensinar filosofia e história da ciência. Em 1993, sua indicação para receber o Prêmio Israel levantou protestos, em função da suas críticas ácidas à política de ocupação. incluindo a recusa do então primeiro-ministro Yitzhak Rabin em participar da cerimônia de sua premiação .
Yeshayahu Leibowitz, paradigma do judaísmo humanista, faleceu em 18 de agosto de 1994.
Ele me chamava de “Jezebel”
[ Shulamit Aloni ]
Durante todos meus muitos anos de trabalho público, houve dois incidentes nos quais sucumbi à brutal pressão de histeria patriótica que era errada e desnecessária, mas impressionante.
Um desses incidentes envolveu a revolta no governo Avodá/Meretz e de grande parte do Knesset contra a concessão do Prêmio Israel ao Prof. Yeshayahu Leibowitz por sua vida de realizações. A campanha movida contra Leibowitz incluía selvagens acusações de jornalistas e outras disseminações virulentas. Eu então era a ministra do gabinete responsável pela premiação.
Eu sabia que não poderia me render a essas cruas difamações e que não deveria retroceder de uma decisão unânime tomada por um comitê eleito, mas acabei cedendo e ainda sinto vergonha por isso.
Eu não deveria ter sucumbido, apesar da firme posição tomada pelo então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que anunciara publicamente que não iria assistir à cerimônia de premiação se a decisão de conceder o prêmio “àquele homem” não fosse mudada. Como alguém que conhecera Rabin pessoalmente por muitos anos, eu deveria ter ido a ele pessoalmente para persuadi-lo a agir diferentemente.
O que aconteceu foi que antes que eu tivesse tentado vencer as ondas de raiva e ódio, o próprio Leibowitz informou-me, através de seu amigo e aluno Prof. Avi Ravitzky, que se iria afastar de todo esse caso, para não causar embaraço a Rabin. Fiquei envergonhada e então me certifiquei de que o álbum de premiados listaria os indicados que recusaram receber o prêmio, incluindo David Ben-Gurion e Yeshayahu Leibowitz. Infelizmente, os ministros que me sucederam não honraram este costume.
Leibowitz costumava dizer que só o corpo de uma pessoa morre, mas a pessoa continua a existir. É uma pena que ele não estivesse tão certo nesse ponto, porque se ele ainda estivesse vivo entre nós, sua voz iria soar muito alto e ressoaria em muito mais pessoas, à luz do doloroso fato de que o que ele dizia realmente tinha se tornado realidade: que nossa democracia estava definhando, e que o poder do exército, do serviço secreto e do Sr. Yehiel Horev, chefe da segurança do Ministério da Defesa, são mais forte do que o Parlamento.
Ouvi Leibowitz pela primeira vez ainda antes de Israel se tornar um Estado. Foi em 1945, quanto eu estava na 11ª série no Colégio de Beit Hakerem em Jerusalém. Foi uma palestra festiva de 6ª feira para os alunos das séries superiores, realizada no salão de concertos e conferências. Atrás do palco, havia uma grande lousa que oferecia ao palestrante um grande espaço para ilustrar seus comentários. Ele fez uma palestra, tão apaixonada como bem organizada, sobre a importância e o significado das ciências naturais, sobre novas pesquisas que estavam descobrindo os segredos do universo e da vida, e sobre novos caminhos para pesquisa. Era uma palestra de um cientista: clara, intrigante, que inspirava uma paixão pelo conhecimento.
Mas, quando terminou a apresentação, pegou o apagador e rapidamente apagou tudo que tinha escrito na lousa, e declarou que tudo era sem sentido e que jamais seria capaz de aprender o segredo da Criação. Tudo é o trabalho de Deus, disse, e nós nunca seríamos capazes de compreender os caminhos de Deus.
Fez-se silêncio no salão. Mas então seguiu-se uma explicação. Tudo que uma pessoa faz e tudo que a ciência revela podem ser comparados ao trabalho de pedreiros. Eles sabem como preparar tijolos, como assentá-los e como construir uma casa. Mas não conhecem o projeto ou o objetivo, nem entendem as razões para eles.
O mesmo ocorre conosco, explicou. À medida que estudamos e fazemos pesquisas, jamais entenderemos a fonte da sabedoria e do entendimento (Todos estudamos o Livro de Jó e os belos capítulos onde Deus lhe responde e aponta a incapacidade humana de entender o mito e o segredo da Criação). O jeito em que Leibowitz terminou sua palestra foi surpreendente e um tanto estranho. Não tenho o texto da palestra, mas ainda posso vê-lo claramente no salão e ouvir sua voz.
Suas palavras capturaram meu interesse. Comecei a ler os artigos que ele publicava nos folhetos da sinagoga Yeshurun de Jerusalém e fui a vários lugares ouvir suas palestras. Acompanhei suas discussões com e contra Ben-Gurion, e finalmente tornei-me sua seguidora e, ocasionalmente sua debatedora em palestras conjuntas.
Até a Guerra dos Seis Dias, a maior parte das discussões tratavam das relações entre religião e Estado, coerção religiosa e a necessidade de casamentos civis como forma de equalizar o status das mulheres com o dos homens.
Ele frequentemente ventilava comigo sua raiva de Ben-Gurion, o partido dominante Mapai e a hipocrisia de sua aliança com o Grão-Rabinato. Dizia que o Estado era a amante dos rabinos, e falava de uma aliança entre a descrente Shulamit Aloni, a hipocrisia do Partido Nacional Religioso e o ratinato. Teve, até mesmo, a dúbia distinção de chamar-me de “Jezebel”, ainda antes de ter concedido esta “honraria” para Golda Meir.
Leibowitz falava contra as concessões feitas em nome da “unidade nacional”.
Quando a Lei da Corte Rabínica (governando casamentos e divórcios, e estado civil em geral) foi promulgada, quando depois Golda Meir transformou a Lei do Retorno numa lei religiosa que agora separa mães e filhos e demanda que milhares de cidadãos se submetam a conversão (envolvendo assumir um novo nome, cortando laços com o passado e adotando um estilo de vida religioso), quando Meir, junto com Yaakov Shimshon Shapira (o ministro da justiça conhecido por sua linhagem rabínica) e os ateus do Partido Ahdut Ha’avoda (União do Trabalho) rejeitaram a recomendação da Suprema Corte de deletar os ítens “religião” e “nacionalidade” do Registro da População, e listar apenas “cidadania”, e quanto eles determinaram que a definição ortodoxa de judeu deveria ser aplicada à Lei do Retorno.
Em todos esses casos, Leibowitz refutou seus argumentos e até me permitiu citá-lo em meu livro “The Arrangement: From a State of Law to a State of Halakha” [A Transformação de um Estado de Direito em um Estado da Lei Religiosa Judaica], publicado em 1970.
Religião e Estado
“O argumento de que o reconhecimento de casamentos civis pelo Estado iria dividir o povo judeu em dois grupos que não poderiam se casar entre si é fundamentalmente falso. É falso que tal tipo de reconhecimento iria minar a instituição do casamento. Aqueles que defendem esse argumento ignoram, conscientemente ou não, a realidade de centenas de milhares de judeus religiosos nos países ocidentais, que vivem suas vidas pessoais em santidade de acordo com a Torá, sob jurisdição das leis de Estado que reconhecem (como na Inglaterra) e mesmo exigem (como durante a República alemã de Weimar) casamentos e divórcios civis. Um judeu observante pode continuar se casando sob uma chupá numa cerimônia judaica e se, lamentavelmente, um casal decidir se separar, podem similarmente fazê-lo de acordo com as leis de Moisés e Israel.”
“Seria suficiente para aqueles que se rebelam contra a religião registrar seus ‘casamentos’ ou ‘divórcios’ numa repartição governamental sob um procedimento a ser estipulado na lei. Esses dois termos-chave aparecem aqui entre aspas porque, por uma perspectiva religiosa, não existe nesses casos nenhum casamento, mas apenas relações sexuais com uma mulher solteira. Portanto, o divórcio não é tampouco um tema aqui. Se nenhum casamento teve lugar, não há mamzerim [bastardos] e um filho nascido fora do casamento não é proibido de fazer parte da comunidade. Temos ainda de ver as instituições da Torá discutindo seriamente o significado haláchico [pela lei religiosa judaica] dos casamentos civis. .. Isso iria reduzir o temor da mamzerut [condição de bastardo] ao mínimo e constituiria um grande avanço sobre a atual situação legal pertinente a casamento e divórcio, que produz um crescente número de mamzerim em Israel … Mas não se deve esperar que as instituições rabínicas discutam esse assunto objetivamente, porque elas tem seus próprios interesses nesse tema”, tais eram as palavras de Leibowitz.
Para enfatizar as limitações dos seres humanos, ele costumava citar o capítulo 28 do Livro de Jó: “Mas onde deve ser encontrada a sabedoria? E onde está o lugar do entendimento? e citou a quase arrogante resposta de Deus: “Manter o temor ao Senhor, é a sabedoria, e afastar-se do mal é entendimento” – Eu pensava que ele estava brincando comigo ou achando que eu era estúpida. Mas fiquei triste ao ouvi-lo declarar em uma de suas palestras, com toda seriedade, que a coisa mais importante era o que estava escrito no final da Kohelet (Eclesiastes): “O final do assunto: tudo foi ouvido. Tema Deus, e guarde seus mandamentos, porque este é todo o dever do homem”.
Isto é muito fácil, muto simplista para mim, salvo se estiver falando de Deus nos termos de Spinoza. Mas ele estava falando sobre o Deus de Israel e a observância dos mandamentos como serviço a Deus, como se todos os esforços da mente humana para alcançar um entendimento da Criação do universo – que gente como nós acredita ser possível – fossem nulos e inúteis.
Um dia, durante uma longa viagem para uma palestra, falou de si mesmo. E não no seu tom costumeiro. “Você tem de entender, sentir a maravilhosa experiência de ir à sinagoga todos os dias de madrugada ao alvorecer e recitar as orações matinais junto com um minián [quorum] de outros judeus – cada qual com sua própria profissão, seus próprios problemas e seu próprio mundo – mas, ainda assim, ficando juntos por anos e recitando as mesmas orações que foram pronunciadas aqui e ali e no passado”.
Com toda a sabedoria e conhecimento, a crença de Leibowitz em Deus está além da crítica e ele me lembra as palavras do poeta que escreveu os Salmos (73:22): “Tão tolo [era] eu, e ignorante eu era [quanto] uma besta diante dele”.
[ Publicado no Haaretz em 15|09|2004 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]