HASHD: um PAZ AGORA palestino ?

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Enquanto a Faixa de Gaza mergulha no caos, a ordeira campanha “A Voz dos Povos”, de Sari Nusseibeh vai ganhando um surpreendente apoio entre os líderes populares da Fatah na Cisjordânia.

O timing não poderia ser mais irônico, ou o contraste mais chocante. É 15h15 da 6ª feira, 16 de julho na Faixa de Gaza, uma onda de seqüestros está chegando a seu pico anárquico com o rapto de 5 voluntários franceses de um café em Khan Yunis. Enquanto isto, na mesma hora, na cidade de Qalqilia, na Cisjordânia, centenas de palestinos estão reunidos no pátio de uma escola para a primeira manifestação nacional palestina pela paz.

Organizados de forma semelhante as operações do movimento israelense PAZ AGORA – onde simpatizantes vêm de todos lugares para as manifestações – mas numa escala mais modesta, 15 ônibus lotados de palestinos convergiram para esta poeirenta esquina de Qalqilia, junto a um comboio de carros particulares. Trouxeram mais de mil manifestantes palestinos de cidades e aldeias da Cisjordânia.

Há um grande contingente do distrito de Hebron, e uma particularmente vistosa multidão da shebab, a juventude da Fatah, das aldeias da periferia de Jerusalém. Outros vieram das aldeias vizinhas de Jayus e Zawia, da “capital” da Cisjordânia, Ramallah e, claro, da própria Qalqilia.

O evento é o 1º aniversário do “Mapa de Destino” [ou “A Voz dos Povos” , o documento de princípios para um acordo definitivo israelense-palestino baseado numa solução de Dois Estados, redigido pelo proeminente intelectual palestino de Jerusalém, Prof. Sari Nusseibeh e o antigo chefe do Shin Bet, Ami Ayalon. O documento estipula que o acordo deve ser baseado nas linhas de 1967 (com trocas eqüitativas de terras onde necessário) e, polemicamente para o lado palestino, que os refugiados palestinos exercerão seus direitos de retorno no Estado Palestino, não em Israel.

O objetivo da manifestação de hoje, de acordo com o comunicado à imprensa do HASHD, acrônimo árabe da Campanha Popular pela Paz e Democracia chefiada por Nusseibeh, é o de promover a iniciativa de paz com manifestações não violentas e também chamar a atenção para “os efeitos negativos do muro no diálogo palestino-israelense e nos esforços de construção da paz.”

Muro em Kalkilia

Muro em Kalkilia

A arejada escola para meninas de Shariqa, local da concentração, construída em 2000, fica no canto ocidental de Qalqilia, com vista para a proibitiva barreira de segurança com 8 metros de altura em concreto, com torres de observação circulares, que separa Qalqilia de Israel. A cidade israelense de Kfar Saba fica a menos de um quilômetro, logo atrás da rodovia Trans-Israel. Aqui a Linha Verde, a fronteira antes de 1967, tornou-se cinza.

Numa colina do lado israelense, de frente para a escola, cerca de 400 apoiadores da “Voz dos Povos” de Ayalon, a contraparte israelense do HASHD, vieram mostrar solidariedade, tentando estabelecer diálogo através de telefones celulares conectados a alto-falantes. Um grande balão mostra o slogan hebraico “Yesh im mi le’daber” [Há com quem conversar], uma contestação à posição oficial israelense de que não existe parceiro palestino, e portanto não há alternativa à construção da cerca, refreamento e unilateralismo.

Aparentemente alheios aos acontecimentos de Gaza, onde os seqüestros logo descambaram em manifestações de massa e o incêndio de delegacias de polícia da Autoridade Palestina, os palestinos sobem à cobertura da escola, acenam e assobiam para os israelenses na colina em frente, alguns empinam pipas.

O muro é, sem dúvida, um chamariz de público quando se trata de organizar um protesto palestino. Muitos dizem que foi por isto que eles vieram. Mas ao mesmo tempo, todos os manifestantes seguem o estrito código da não-violência – nenhuma pedra é jogada nos jipes militares patrulhando o muro. Todos perguntados expressam apoio à agenda do HASHD.

Nusseibeh, constantemente rodeado por ativistas que querem apresentar alguém ou serem apresentados a ele, está claramente satisfeito. “Os israelenses fazem isso o tempo todo”, diz, “mas esta é a nossa primeira manifestação nacional. É um bom começo, embora tenha sido duro trazer tanta gente através dos postos militares de controle”.

De fato, sete ônibus não o conseguiram fazer, tendo sido detidos pelo exército no caminho de Salfit, Tul Karm e Jerusalém. Os organizadores da campanha que pedem informações, recebem do exército a explicação de que existe o receio de que um encontro de tantos palestinos num único lugar pode levar a violência.

(Fontes militares mais tarde contam ao “Report” que “Qalqilia foi declarada zona militar fechada na 6ª feira e manifestantes foram impedidos de chegar ao local por causa de distúrbios, incluindo apedrejamentos e queima de pneus”. O “Report” não viu absolutamente nenhuma evidência de tais incidentes).

Sari Nusseibeh

Sari NusseibehSari

Particularmente gratificante para Nusseibeh é o fato de a multidão ser formada por líderes populares locais das comunidades, trabalhadores, camponeses, religiosos, operários, comerciantes, engenheiros, homens e mulheres de todas as idades, Alguns policiais da Autoridade Palestina também estão circulando, armados apenas de telefones celulares.

“Estes não são os sisudos acadêmicos e tipos com os quais normalmente sou associado na imprensa israelense”, assinala o professor de filosofia que é hoje presidente da Universidade de Al-Quds.

Sintomaticamente, enquanto as paredes da escola dentro do pátio estão decoradas com heróis globais como Pokemon, o lado de fora está adornado com grafites do Hamas, brigadas de mártires e, agora, do HASHD.

As duas personalidades que tomam o megafone e discursam, dificilmente podem ser classificados como a elite intelectual palestina. Um é Abd al-Karim Shamasna, que chefia a campanha popular contra a cerca em Jayus, e o outro, um jovem ativista chamado Yasser, da aldeia de Zawia, que veste camiseta preta com jeans, e mostra dentes bastante manchados de nicotina.

Ambos falam em favor de um Estado independente palestino vivendo em paz ao lado de Israel, sobre a necessidade de um novo caminho para frente e o objetivo de conseguir uma paz não só de governos, mas do povo. Shamasna também diz que os palestinos em Haifa, Jafa e Acre, dentro das fronteiras de Israel de 1948, são parte da família palestina, mas que “o preço” de ganhar um Estado independente é “renunciar ao sonho” de algum dia voltar para lá.

Os dois lados do muroMesmo sendo horrível, este muro de Qalqilia segue a linha de 1967, tornando-o menos controverso que as partes da cerca de segurança que penetram na Cisjordânia. Nusseibeh reconhece que o muro aqui “está de fato OK” e diz que a locação foi escolhida porque oferece “lugares altos em ambos os lados”. Mas, acrescenta, “o ponto é que o muro não é uma solução, não é o substituto para uma fronteira negociada que garantiria a ambos os lados o que eles desejam: para Israel, segurança, e para nós liberdade e dignidade.”

Precisamente no momento em que Nusseibeh estava falando, a Faixa de Gaza testemunhava raras cenas de caos e carência de lei com milicianos armados desafiando a corrupção do regime de Yasser Arafat, e ameaçando trazer o colapso aos 10 anos da Autoridade Palestina (AP).

A intranqüilidade começou ao meio-dia, quando um bando identificado com a facção majoritária Fatah de Arafat raptou o chefe da polícia de Gaza apontado por Arafat, Ghazi Jabali, uma figura ampla e longamente acusada de corrupção e abuso de poder. Ele foi levado ao campo de refugiados de Bureij onde exigiram sua demissão. Ele já havia sido demitido uma vez, sob o primeiro-ministro Abu Mazen no ano passado, mas reconduzido ao cargo por Arafat após a renúncia de Mazen.

Após o rapto de outra autoridade de segurança de Gaza e de voluntários francêses (que foram soltos incólumes após algumas horas), Arafat nomeou um novo chefe de segurança para Gaza, o igualmente impopular parente Musa Arafat, por longo tempo chefe do aparato de Inteligência Militar. A Faixa irrompeu em manifestações de raiva e revolta.

Mohammed DahlanMuitos observadores suspeitam que o homem-forte de Gaza e antigo chefe da Segurança Preventiva, Muhamad Dahlan, esteja por trás da agitação. Dahlan é um antigo rival de ambos, Jabali e Musa Arafat, e foi recentemente uma das mais proeminentes vozes na demanda por reformas políticas e de segurança dentro da Fatah e da AP. Ele também se tem posicionado, junto a seus seguidores dentro do aparato da Segurança Preventiva, pela tomada de controle de Gaza no caso de uma retirada israelense.

Nas últimas semanas, Yasser Arafat teria financiado Musa Arafat e seus homens para competirem com Dahlan. Defensores do plano de desligamento do primeiro-ministro Sharon e alguns diplomatas ocidentais têm depositado grandes esperanças em Dahlan, acreditando que ele seria capaz de criar um novo modelo de liderança e uma “zona livre de Arafat” em Gaza. Arafat, por sua vez procurou se assegurar de que isto não aconteceria.

Um alto funcionário da AP em Ramalah, falando sob anonimato, diz existirem duas teorias por trás da luta de poder na Faixa de Gaza. Uma é que existe uma competição de gerações dentro do movimento Fatah, com os jovens reformistas “internos” que se criaram nos territórios, opondo-se aos políticos da velha guarda que voltaram com Arafat do exílio nos anos ’90.

“A jovem guarda da Fatah acredita que a velha guarda deve abandonar o palco, que eles são a causa de todos os problemas e que se os jovens tomarem o poder, as coisas irão melhorar”, explica o funcionário. “Então eles estão tentando provar a Arafat que podem controlar todas as coisas, inclusive quem ele indica”.

A segunda teoria é que alguns dos líderes estabelecidos dentro do próprio círculo próximo a Arafat estão forçando o rais a abandonar seu sistema autocrático de governo e a compartilhar alguns de seus poderes. “Para convencer Arafat, eles tiveram que agir nas ruas, Arafat acredita em atitudes, não em palavras”, diz o funcionário. “Na minha opinião”, continua, “há uma combinação de ambas [as teorias]”.

Historicamente, a Cisjordânia é menos volátil que Gaza, parcialmente porque lá a situação econômica nunca foi tão má. “Dê às pessoas trabalho, pão e manteiga”, diz o funcionário da AP, “e eles não ligarão para quantos ministros têm ou deixam de ter.”

Entretanto, na Cisjordânia também existe um agudo vácuo político, resultado da estagnação da AP e abdicação ao controle através de quase 4 anos de intifada. “Todos estão ocupados com suas próprias agendas, e procurando por qualquer um que possa oferecer soluções”, diz o funcionário.

É nesta mesma e incerta atmosfera que o improvável crescimento de um movimento pacifista palestino, liderado pelo professor Nusseibeh, auto-crítico, de fala macia e super racional, está silenciosamente tomando lugar, e ganhando espaço particularmente dentro da Fatah.

Contra todas as previsões, quase tantos palestinos (140 mil) assinaram até agora em apoio ao plano Nusseibeh-Ayalon quanto os israelenses (192 mil). Originalmente, diz o assessor do HASHD Dimitri Diliani, era esperado o dobro de israelenses em relação aos palestinos.

Mais ainda, acrescenta Diliani, em algumas áreas da Cisjordânia, ativistas do HASHD têm começado a se manifestar por eleições nas instituições locais. Numa recente votação para o conselho de sindicatos no sul da Cisjordânia, 11 dos 27 membros eleitos eram “gente do HASHD”. O novo chefe do conselho é Jamil Rushdie, membro do conselho de liderança do HASHD e líder da Fatah no campo de refugiados de Arrub, próximo a Hebron.

“As pessoas estão vendo agora que o Prof. Nusseibeh é honesto, tem visão e não é corrupto”, diz Diliani, publicitário, levantador de fundos e administrador do HASHD. “Não mais se trata de uma coisa acadêmica”.

No final de julho, Jamil Rushdie estava agendado para abrir as portas do acampamento de verão “Smarter without Violence” do HASHD para mais de 150 crianças de 9 a 14 anos da região de Hebron. Instalado na Faculdade Agrícola de Arrub, ao lado do campo de refugiados, 28 monitores jovens, treinados num curso de liderança do HASHD, deveriam ministrar três semanas de educação através da arte, esportes e outras atividades direcionadas para a paz, democracia e não-violência.

Uma longa distância dos notórios campos de horrores em Gaza, onde crianças são treinadas para pular no fogo, atirar com armas e explodir assentamentos judeus, o acampamento “Smarter without Violence” é voltado, de acordo com o diretor Rushdie, para ensinar à próxima geração “como viver com os vizinhos”.

Rushdie, 39, que também se identifica como um “homem da Fatah”, passou 9 anos numa prisão israelense por suas atividades contra a ocupação. Foi solto em 1992. Como muitos dos “graduados” em prisões israelenses, ele fala um bom hebraico. Sendo ele próprio um refugiado – sua família vem de Al-Falujeh, agora a cidade israelense de Kiryat Gat – ele diz que o tema dos refugiados precisa ser tratado com “lógica”.

“Trazer os refugiados de volta a Israel significaria o fim do Estado de Israel”, explica ele, adotando o antigo argAmi Ayalon + Sari Nusseibehumento israelense de que qualquer retorno grande de refugiados ao próprio Israel [fronteiras anteriores a Guerra dos Seis Dias] iria anular a maioria judaica e toda a razão de ser do Estado judeu. “A coisa mais importante para nós é termos nosso próprio Estado nos territórios de 1967”, argumenta. “Trazer os refugiados de volta para esse Estado não seria uma coisa má”.

Rushdie diz que não enfrentou muita oposição em Arrub por suas idéias. Dos 9.000 moradores do campo de refugiados, 1.100 assinaram com o HASHD.

Além disso, assinala, “todos os líderes do HASHD na Cisjordânia são gente da Fatah que participou da liderança da 1ª intifada. Você ficará surpreso em saber que a maioria deles – uns 70% – passaram de quatro a cinco anos em prisões israelenses.”

No teto em Qalqiliah, um outro tipo de caos reina. “É um tanto desorganizado”, sorri Nusseibeh, após meia hora de manifestação. “Não estou certo do que mais nós poderíamos ter feito”. Nusseibeh falou com Ayalon por telefone, mas não há equipamento aqui para irradiar a conversa.

Os jovens de Jerusalém estão no canto do telhado, cantando para uma câmera da TV árabe. No meio das canções, eles surgem com uma não apropriada, tornada famosa por Arafat, sobre um milhão de mártires marchando sobre Jerusalém.

Diferentes distritos estão representados por diferentes camisetas. Jovens de Qalqilya exibem camisetas brancas com o slogan do HASHD e um pequeno retrato de Yasser Arafat no coração.

Embora a Campanha Popular de Nusseibeh seja essencialmente reformista, muitos de seus ativistas permanecem, em última instância, leais a Arafat. Fracionada como se tornou a família da Fatah, ele ainda é a figura paterna, respeitado como tal, “Arafat é nosso símbolo”, diz Rushdie, “ele é o primeiro homem da paz. Ele também é nosso presidente eleito, que é o primeiro princípio da democracia”.  Quanto a Nusseibeh, “ele vem da Fatah e é um de seus líderes”, afirma Rushdie. “Muita gente na Fatah acredita no Dr. Sari – não como um substituto para Arafat, Deus o livre, mas ele sabe o que está acontecendo e fala a verdade.”

Nusseibeh, por seu lado, diz que o que a Fatah precisa como movimento é de “clareza. Uma definição de nossa identidade e pelo que estamos lutando. Existe um vácuo a respeito disto, e muita escuridão.” O HASHD, diz ele, oferece uma solução. “Somos muitos claros em afirmar qual tipo de Estado desejamos e como buscá-lo.”

Além disso, pensa Nusseibeh, o HASHD está crescentemente moldando a agenda da própria liderança da Autoridade Palestina. “No início eles nos criticavam mas, cada vez mais, estão expressando oposição a violência, e daí em diante.”

Uma autoridade da AP em Ramalah concorda que o HASHD está ganhando terreno. “Qualquer um que venha e crie um partido popular que ofereça algum tipo de plataforma terá membros”, diz. “O povo quer soluções”.

Às 17h, enquanto os reféns franceses são libertados em Khan Yunis, os manifestantes pacifistas de Qalqilya dispersam e voltam a seus ônibus. Muitos deles não chegariam em casa até tarde, porém, pois o exército instalou “checkpoints voadores” a cada poucos quilômetros da estrada principal para Ramalah…


[ publicado pela revista Jerusalem Reporttraduzido pelo PAZ AGORA|BR ]

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