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A unilateralidade é o novo conceito que se está impondo agora no âmbito político do conflito palestino-israelense, à luz da construção do muro de segurança e dos planos do primeiro-ministro de se separar parcialmente dos palestinos.
Desde a guerra dos Seis Dias – e durante muitos anos – a idéia de levar a cabo uma ação unilateral sem haver chegado a um acordo carecia de sentido, tanto para o bloco da direita como entre a maioria dos setores pacifistas.
Antes de tudo, um pequeno lembrete: após o fim da guerra dos Seis Dias em 1967, o Conselho de Segurança da ONU aprovou unanimemente (incluído o bloco comunista) a resolução 242, a qual constitui o fundamento de qualquer acordo possível no Oriente Médio.
Em síntese, essa resolução diz o seguinte: a guerra que, em junho de 1967, Israel empreendeu contra Egito, Jordânia e Síria e que acarretou a ocupação de territórios desses países foi em essência uma guerra justa, fruto do direito legítimo a se defender ante as ameaças de ataque e a concentração de forças militares contra Israel.
Portanto, o Conselho de Segurança não exige de Israel que se retire incondicionalmente dos territórios que ocupou, mas que o faça em paralelo com a assinatura de acordos de paz com esses países árabes que garantam a segurança nas fronteiras de Israel, o que implica fundamentalmente que os territórios ocupados se desarmem de armamento pesado e de longo alcance e se reduza o número permitido de unidades militares na zona.
Os países árabes rechaçaram de plano dita resolução do Conselho de Segurança e exigiram a retirada incondicional dos territórios e se negaram a entrar em negociações diretas com Israel para alcançar novos acordos relativos à segurança.
A negativa árabe firmou a base para anos de ódio até que estalou a guerra de Yom Kipur, a partir da qual se deram os primeiros passos para chegar a acordos parciais com Síria e Egito, até se firmar finalmente o acordo de paz com o Egito, o qual segue o modelo estabelecido pela resolução 242 do Conselho de Segurança.
Desde a guerra dos Seis Dias foi assumida, em todos os setores políticos israelenses, a idéia de que não haveria retirada parcial ou total dos territórios sem antes negociar diretamente com os árabes para alcançar acordos de paz que garantissem a segurança.
Uma retirada sem nada em troca suporia não só que a guerra dos Seis Dias não havia sido justa – quando tinha sido uma guerra defensiva – o que também estimularia novas ações violentas parecidas no futuro.
E como, em um acordo de paz, Israel teria que devolver territórios, enquanto os árabes tão somente deveriam firmar uma declaração de intenções, parecia que o princípio de se retirar em troca de um acordo de paz não só era de vital importância, como também justo do ponto de vista ético.
A maioria do bloco pacifista (eu entre eles) aceitou esse princípio, com a exceção de alguns que não acreditavam que os árabes (especialmente os palestinos) fossem capazes de chegar a um autêntico acordo com Israel e reconhecer seu direito a existir, e por isso já nos anos 70 apoiaram uma retirada unilateral e o final de uma ocupação que podia envenenar Israel, social e moralmente.
Por outro lado, o setor da direita, ou nacionalista tal como gosta de se definir, se opôs a qualquer ação unilateral a respeito. Não só porque afinal de contas não acreditava na vontade e capacidade dos árabes de chegar a um acordo de paz total, mas também porque tinha interesse em manter a maioria dos territórios supondo que a vantagem estratégica que essa ocupação oferecia a Israel levaria a uma paz de fato na zona, que seria melhor do que qualquer acordo.
Mas, dado que não se podia justificar uma postura política em que se negasse por completo a negociar, também a direita se propôs a dialogar, mas exigindo condições duríssimas, como a cessação dos atos terroristas e o reconhecimento árabe da legitimidade da existência do Estado de Israel, e tudo isso sob a premissa de que, mesmo que a outra parte cumprisse tais condições, o alcance das concessões israelenses seria bastante reduzido.
Entretanto, durante os últimos anos, esse principio tão sagrado foi perdendo força, não só entre os pacifistas mas inclusive no bloco “nacionalista”. A primeira retirada unilateral sem acordo prévio se produziu no sul do Líbano no ano 2000, uma retirada que trouxe relativa calma à zona. E agora se começa a falar de uma separação unilateral dentro da própria Israel. Quer dizer, retirar-se dos territórios ocupados no ano de 1967 sem se chegar antes a um acordo com o outro lado e sem receber nada em troca – nem sequer verbalmente – dos palestinos.
Acaso se acaba, assim, com um dos princípios morais fundamentais durante tantos anos na política israelense? Terão razão aqueles – sobretudo na direita, embora também alguns entre a esquerda, como Yossi Beilin, que dizem que, atuando unilateralmente, Israel está na realidade rendendo-se ao terrorismo palestino e estimulando a que no futuro se volte a empregar a violência contra o país? Faz sentido a previsão de que mesmo que haja agora certa calma, esta será temporária e não conduzirá a nenhuma solução de longo prazo?
Primeiro resumirei minha postura em relação a estas questões e depois a tentarei justificar.
Se o Estado de Israel não tivesse erguido assentamentos nos territórios ocupados, mas simplesmente tivesse mantido ali forças militares, eu continuaria sendo fiel a esse princípio de que falava acima, o de apenas se retirar em troca de um firme acordo de paz e do compromisso dos palestinos de viver em boa vizinhança com os israelenses.
Mas o estabelecimento unilateral de assentamentos nos territórios mudou por completo a concepção da situação em que se baseava a resolução 242 e, portanto, está justificado moralmente que agora uma medida unilateral anule aquela outra medida unilateral.
Pois, na realidade, o que se está querendo dizer com os assentamentos? Se está querendo dizer aos árabes que, mesmo que reconheçam o Estado de Israel e se comprometam a viver em paz com os israelenses, há parte dos territórios que nunca mais lhes serão devolvidos.
Estabelecer forças militares no futuro Estado palestino é legítimo desde que seja para garantir que realmente se está levando a cabo o desarmamento da região e não se esteja criando uma nova infra-estrutura terrorista. Uma base militar estrangeira ocupa um lugar limitado, tem algumas missões concretas e, uma vez que se alcance a paz na zona, se desmantela. Isto foi o que ocorreu com as bases militares que tanto os Estados Unidos como a antiga União Soviética estabeleceram em diferentes países.
Mas um assentamento de civis é algo totalmente distinto, porque, primeiro: não se pode justificar como medida defensiva; segundo: não evita o terrorismo, muito pelo contrário, o provoca, e com isso faz que se tenha que instalar forças militares para defender os colonos, e terceiro: não é algo temporário, isto é, os civis não se instalam num lugar para abandoná-lo quando se alcance a paz, pelo que, definitivamente, se está dando a entender aos palestinos que, mesmo que cheguem a paz e a conciliação à região, as continuarão pagando com parte de sua terra.
A criação dos assentamentos foi uma medida unilateral à qual todo mundo, incluídos os melhores aliados de Israel, se opôs, e que elimina o fundamento moral em que se baseava o principio sagrado durante tanto tempo, de ‘territórios em troca de paz’, o qual servia de base para a resolução 242 da ONU e que era aceito pelo bloco pacifista israelense.
Portanto, moralmente falando, Israel deve levar a cabo uma ação unilateral parcial que implique o desmantelamento de muitos assentamentos, e tudo isso sem receber absolutamente nada em troca por parte dos palestinos.
No momento em que se completar a retirada e se estabelecer uma nova fronteira, inclusive se não for a definitiva nem a acordada com os palestinos, Israel recuperará a legitimidade moral para se defender com firmeza de qualquer ato terrorista ou hostil.
Todos aqueles – tanto na direita como na esquerda israelense – que consideram que fazer concessões unilaterais nestes momentos significa premiar o terrorismo, devem saber que o que manchou moralmente Israel não foi a ocupação militar, mas sim a criação dos assentamentos de colonos.
E também os palestinos que agora não estejam dispostos a chegar a nenhum acordo, ao se entrincheirarem no direito de retorno ou contra outras concessões, devem saber que o desmantelamento dos assentamentos em Gaza e a retirada do exército dali criam para eles uma nova situação.
E se pretenderem continuar enfrentando Israel também após a retirada, a reação israelense então se regerá por regras totalmente distintas, muito mais duras, pelo que será melhor que sejam prudentes a respeito.
Não obstante, segundo as primeiras e promissoras reações da rua palestina, inclusive entre os extremistas, parece que os palestinos são conscientes do novo equilíbrio moral que haverá agora entre eles e os israelenses.
Assim que, definitivamente, creio que após o desmantelamento dos assentamentos não nos espera um aumento do terrorismo, mas sim precisamente um período de relativa calma, tal como ocorre agora no Líbano.
Avraham B. Yehoshua, consagrado escritor israelense, é apoiador do movimento PAZ AGORA desde seus primórdios, e signatário da Declaração Conjunta Israelense-Palestina e do Acordo de Genebra.
[ publicado no Iton Gadol – www.itongadol.com.ar em 10/03/04 e traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]