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Em agosto, quando a Intifada atuava com fúria no Oriente Médio e o tão exaltado caminho para a paz parecia estar em pedaços, milhares de milhas longe dali, no Royal Albert Hall, em Londres, os pianistas Saleem Abboud-Ashkar e Shai Wosner sorriam, de mãos dadas, e agradeciam diante de uma audiência extasiada. Sob a regência do maestro Daniel Barenboim, eles tinham acabado de completar uma performance triunfante do Concerto para três pianos de Mozart. A ovação, de pé, ao final do evento, se prolongou por meia hora. Foi um momento de grande simbolismo: Abboud-Ashkar é palestino; Wosner, israelense.
Esta imagem comovente teve origem num projeto que começou quatro anos atrás. Nessa época, Barenboim, o aclamado maestro de cidadania israelense nascido na Argentina, se juntou a seu velho amigo Edward Said, filósofo palestino já falecido, para conceber uma idéia que céticos de ambos os lados ridicularizavam como um desvio impossível: uma orquestra jovem composta por judeus e árabes.
Depois de fazer um ”arrastão” pelo Oriente Médio em busca de candidatos e após encontrar excelentes jovens músicos das duas comunidades, eles formaram a West-Eastern Divan Orchestra. (O nome, particularmente estranho, foi tirado de um trabalho escrito por Goethe que funde poesia islâmica e européia.) Muitos dos participantes, que são de Israel, Palestina, Egito, Jordânia, Síria e Líbano, nunca tinham ouvido uma orquestra ao vivo antes.
Com idades entre 13 e 26 anos, eles agora se ocupam a cada ano de um curso de verão sediado em território neutro (a última vez foi em Sevilha, na Espanha). O grupo já se apresentou em concertos nos territórios palestinos e diante da família real marroquina. E começou a ser chamado de ”a orquestra da paz”.
Barenboim é entusiasta quando o assunto é passar seu conhecimento musical para a nova geração. E possui uma qualidade visionária que é simplesmente contagiosa. Por isso, guardou com carinho particular o momento do aplauso aos artistas depois do espetáculo de agosto. Para ele, a orquestra é uma metáfora do que pode ser alcançado no Oriente Médio. Em uma conversa depois de uma semana de trabalho duro como diretor musical da casa de ópera Berlim Staatsoper (ele também comanda a Orquestra Sinfônica de Chicago), o maestro de 60 anos declara que uma orquestra é um símbolo de democracia.
O maestro diz que a orquestra, que foi o tema de uma impressionante edição do programa The South Bank Show da ITV1 no último mês, ”é uma versão musical do que ele pensa sobre o Oriente Médio, uma visão onde cada um é capaz de contribuir e o todo é mais importante do que a soma das partes.”
É tudo muito bom, mas a idéia não é inteiramente irreal?
Muito possivelmente. Mas, apesar disso, os músicos que estiveram no workshop de Barenboim atestam a força de congregação da música. A violinista egípcia Mina Zikri avalia que conhecer os membros israelenses da orquestra ”humanizou o outro lado”.
– As imagens podem ser ilusórias. O homem bomba traz à mente uma certa imagem. A mesma coisa acontece com a operação militar israelense. Mas isso não deve ficar pré-determinado na mente de ninguém – diz ele.
Na orquestra, Mina acabou ajudando os israelenses, incluindo uma fagotista chamada Ayelet Ballin.
– Agora, quando a vejo, penso: aqui está a minha amiga; e não aqui está uma pessoa israelense.
Yoni Etzion, um integrante israelense da orquestra, continua o assunto:
– Aqui entendemos que a vida não é sobre territórios e guerra. Todos nós temos o mesmo propósito, fazer música, e isso nos une.
Decerto que não há favoritismo por parte de Barenboim. Ele diz que perde a paciência exatamente com a mesma facilidade com músicos dos dois lados, e que ninguém toma isso como pessoal.
Os fundadores sempre sustentaram que a West-Eastern Divan Orchestra não deveria ser tomada como um exercício político. Segundo eles, ela é, particularmente, motivada pela música. De acordo com Said, que via a orquestra como ”uma das coisas mais importantes” de sua vida, ela é ”apolítica e não tem uma motivação oculta. Não pretende construir pontes. Mas lá está ela, um paradigma de pessoas inteligentes e coerentes vivendo juntas. É como uma pedra jogada num rio. O efeito de ondas foi extraordinário”.
Então a orquestra pode efetuar alguma mudança política?
– Não – Barenboim declara em tom inequívoco. – Nós ajudamos em um nível musical, muitos de nossos alunos agora têm posições de destaque em orquestras árabes. Perdoe minha falta de modéstia, mas eu sei que fizemos deles músicos melhores.
E além disso?
– Talvez o trabalho que fizemos deixe uma idéia sobre como temos que aprender a viver juntos. Muitos israelenses não vêem isso. Vêem apenas os efeitos terríveis das explosões suicidas e não são capazes de ver como os dois destinos estão indissoluvelmente ligados.
Barenboim acha que a existência da orquestra já é uma postura política suficiente.
– Qualquer contato entre os dois lados só pode ser positivo, porque qualquer um que queira ter contato está inevitavelmente preocupado com o futuro. Tendo esse ponto de vista, a orquestra é um projeto pessoal não político.
Mas o maestro reconhece que o empenho é tomado como politicamente significativo.
– Nunca foi minha intenção, mas não posso fazer nada se as pessoas interpretam a orquestra politicamente. Quando você faz alguma coisa não usual, tem que estar preparado para o alarde, tanto a favor quanto contrário. Mas, para esses jovens, subir ao palco do Royal Albert Hall e ver o público enlouquecendo com eles é uma coisa maravilhosa. Onde mais um jovem músico sírio iria ter o benefício de tão sofisticada audiência? Para mim, é simples assim.
Melvyn Bragg, o apresentador do The South Bank Show, observa:
– O máximo é que, quando a câmera passa pela orquestra, não se pode distinguir quem é judeu e quem é palestino. É possível apostar que ninguém é capaz de saber a diferença. Acho isso maravilhoso.
Apesar de tudo, a orquestra também recebeu censuras do lado israelense, e sofreu desconfianças entre os árabes.
– Os extremistas dos dois lados não me aborrecem, eles se alimentam um ao outro. Minha relação próxima com o público de Israel não foi abalada por isso, e também não tive problemas com o governo – rebate Barenboim.
O maestro já enfrentou problemas antes. Há dois anos, sua atitude de conduzir no Festival de Jerusalém uma peça de Wagner – compositor antissemita e o preferido de Hitler – provocou reações ferozes. Ele tomou a decisão quando, alguns dias antes do evento, ouviu um celular tocando durante uma conferência.
– O toque do celular era ‘A cavalgada das Valquírias’, de Wagner. Então pensei: se podemos ouvi-la em um telefone, por que não se pode tocá-la numa sala de concertos? – lembra Barenboim.
Depois que ele conduziu a Berlin Staatskapelle em um fragmento de ‘Tristão e Isolda’, nesse episódio em Israel, irrompeu uma briga. Ephraim Zuroff, diretor do Simon Wiesenthal Centre, classificou a atitude de Barenboim como um ”estupro cultural”. Já Ehud Olmert, prefeito de Jerusalém, classificou o maestro como ”insolente, arrogante, incivilizado e insensível”.
Em defesa de Barenboim, Bragg argumenta que o maestro é da opinião de que não se deve alimentar preconceitos em relação a uma obra.
– Concordo com isso 100% – enfatiza o apresentador.
Barenboim se mostra tranqüilo em relação ao evento.
– O escândalo não me atingiu. Havia 3 mil pessoas na sala, e, antes de começar a reger Wagner, conversamos por 45 minutos. Eu disse a eles que quem não quisesse ouvir poderia sair. Cinqüenta pessoas foram embora, mas os que ficaram nos aplaudiram de pé ao final da interpretação. O escândalo só começou no dia seguinte, estimulado por pessoas que sequer estavam lá. Há uma crise em Israel porque não nos libertamos de certos tabus.
Sobre a política de Israel, o maestro faz a sua reflexão:
– A questão da transição de deixar de ser uma minoria para se tornar uma nação é muito complexa. Hoje achamos que controlamos outra minoria. E todo esse processo requer uma profunda mudança de mentalidade. Não se pode tratar os palestinos da mesma maneira que outros trataram o povo judeu.
[ por James Rampton no The Independent, publicado em 01/01/04 no Jornal do Brasil ]