Cinema vs Banalização da Violência

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Amos GitaiEntrevista do cineasta israelense Amos Gitai por Evadlo Mocarzel

O cineasta israelense Amos Gitai está no Brasil para participar do Festival Internacional de Cinema de Brasília, que termina no próximo domingo. Gitai exibiu o seu penúltimo trabalho, Kedma, e depois seguiu para Manaus com os filhos com uma vontade muito grande de conhecer a Amazônia. “Gosto muito do Brasil porque é um país que está no meio do caminho entre o Terceiro Mundo e o mundo tecnológico”, disse em sua terceira visita ao País.

Amos Gitai é o mais importante cineasta israelense em atividade. Realizador de filmes como Kadosh e O Dia do Perdão (Kippur), ambos exibidos no Brasil, o diretor de 50 anos tem 62 títulos no currículo, entre curtas, documentários e longas de ficção. Do dia 1º de outubro a 3 de novembro, o Centro Pompidou de Paris vai fazer uma retrospectiva completa de sua obra, incluindo uma exposição de fotos organizada pelo próprio Gitai. O cineasta é amigo de Leon Cakoff, diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e os dois estão conversando sobre a possibilidade de realizar essa extensa retrospectiva em breve no Brasil.

 “Meus filmes têm a intenção de construir uma espécie de quebra-cabeça com as contradições de Israel”, explica Gitai no confortável resort Academia de Tênis, sede do FICBRASÍLIA. Sua regra principal é evitar as vozes oficiais que estão diariamente na mídia televisiva analisando a situação de Israel. “A televisão construiu uma telenovela de notícias em torno dos conflitos entre palestinos e israelenses”, lamenta. “Trata-se de uma telenovela maniqueísta, que leva o público diariamente a ficar divagando sobre quem é o bandido e quem é o mocinho”, argumenta. Um dos principais objetivos do cinema de Gitai é lutar contra esse maniqueísmo e segmentar ao máximo a guerra na dimensão do ser humano.

“ Os conflitos entre árabes e judeus são capítulos sensacionalistas explorados diariamente pela mídia”, insiste. “São os únicos conflitos que existem no mundo? E a África? E a Ásia? E a América Latina?”, desabafa. Para ele, a expulsão de Arafat é o mais novo capítulo nessa maniqueísta telenovela de notícias.

A situação de Israel não é boa e nunca vai ser boa enquanto os dois lados acharem que podem vencer. Isso é justamente o pior. Querem ganhar a guerra. E é por isso que ela não vai terminar. As mortes vão continuar e muito sangue vai continuar sendo derramado”, afirma sem otimismo. “O grande problema é que nenhum líder acredita mais num método tão simples que é a sabedoria da generosidade”, lamenta.

Gitai insiste na culpa das emissoras de televisão, que, para ele, lucram muito com a guerra. “Israel é um excelente drama para o resto do mundo. É o país com a maior concentração de câmeras de televisão por metro quadrado no planeta. Israel tem uma população girando em torno de apenas cinco, seis milhões de habitantes. É um terço da população de uma cidade como São Paulo. Mas Israel tem sempre um lugar de extremo destaque na imagem da consciência do resto do mundo. Por quê? Porque vende. A cobertura sensacionalista das emissoras está a serviço do consumo. E os dois lados dos conflitos se espelham todos os dias na televisão. Ficam diariamente analisando os desdobramentos da exposição de suas imagens na mídia. E a mídia só mostra caricaturas. Os israelenses são sempre soldados truculentos e os palestinos, terroristas”, reclama.

 “Logicamente, a mídia não inventa os conflitos. Eles existem, sim. Mas a mídia não deveria pretender ser assim tão objetiva. A cobertura de cada emissora é tão subjetiva quanto qualquer documentário”, argumenta. O cineasta sugere que as televisões deveriam dar mais tempo aos espectadores para que possam interpretar, refletir sobre a guerra. “Tudo, no entanto, é sempre editado de uma maneira acelerada e a intenção jamais é promover uma reflexão sobre o problema, mas sim levar o público a consumir, consumir sem parar.”

Gitai acredita piamente no poder transformador de mostrar os líderes como seres humanos. “O cinema tem o poder subversivo para decompor essa atitude da mídia e para mostrar a complexidade da situação”, garante. “É preciso humanizar os dois lados. É preciso evitar as generalizações”, sugere.

Em seus filmes, Gitai escolhe “territórios restritos, com poucos protagonistas, para falar de realidades individuais”. O cinema pode ser um instrumento político capaz de modificar a dramática situação de Israel? “O cinema não é o melhor espaço para quem quer mudar a realidade”, confessa. “Há outras áreas de atuação mais pragmáticas, como a política”, diz.

Para Gitai, o cinema tem apenas a capacidade de mudar a percepção de algumas pessoas. “Vou ser ainda mais modesto: o cinema pode apenas levantar algumas questões que não deixem as pessoas irem tão facilmente para uma próxima guerra”, acredita. O diretor gosta de Pasolini e da “liberdade total” de um filme como A Idade da Terra, de Glauber Rocha. Suas principais influências foram Yasujiro Ozu e Robert Bresson.

Nos anos 80, Amos Gitai foi convidado pelo Channel Four, da Inglaterra, para fazer um documentário sobre o Terceiro Mundo. O cineasta argumentou que o tema era abrangente demais e que não iria fazer. Depois de declinar o convite, abriu a geladeira de sua casa e viu uma lata de abacaxi. Leu o rótulo: os frutos haviam sido colhidos nas Filipinas, enlatados em Honolulu e distribuídos em São Francisco. A impressão do rótulo havia sido feita no Japão. “Retirei então o rótulo, fiz uma cópia xerox e mandei para o Channel Four, pedindo passagens para filmar em várias partes do mundo”, conta. Gitai acabou fazendo um documentário sobre as contradições nas relações econômicas do mundo globalizado a partir de uma lata de abacaxi. O foco do seu cinema é sempre o individual, o particular, o ponto de vista de poucos seres humanos tentando entender o caos do mundo em que vivemos.

Filmografia.

Amos Gitai - KadoshO público brasileiro conhece poucos títulos da extensa filmografia de Amos Gitai. Kadosh foi muito bem recebido pela crítica internacional e causou sensação em Cannes ao focalizar a opressão e o autoritarismo massacrando duas mulheres num bairro dominado pela religião ortodoxa e por uma truculenta ideologia masculina.


O Dia do Perdão (Kippur), também exibido no Brasil, mostra soldados atuando num helicóptero de resgate durante a Guerra do Kippur, em 73, quando tropas sírias e egípcias atacaram Israel em pleno Yom Kippur. O filme tem elementos autobiográficos, pois Amos Gitai realmente trabalhou num helicóptero de resgate durante a Guerra do Kippur quando tinha 23 anos. “Em O Dia do Perdão, não me deixei seduzir por tomadas de helicóptero para tornar a guerra espetaculosa”, lembra. “Minha intenção foi mostrar a guerra vista por aqueles homens espremidos como se estivessem dentro de uma lata de sardinha.

KippurGitai tem lembranças dramáticas da Guerra do Kippur. Levou um tiro na espinha e ficou muito tempo usando colete para poder se locomover. Em Israel, o serviço militar é obrigatório até os 45 anos. O diretor tem hoje 50, como já foi dito, mas acabou sendo dispensado, pois ficou com algumas seqüelas daquele tiro na espinha, hoje praticamente imperceptíveis.

 “Não trago imagens fortes, espetaculares da Guerra do Kippur”, conta. “Lembro de coisas simples, cotidianas. Nunca vou me esquecer de um oficial que resgatei. Ele estava muito ferido, todo queimado. Eu o coloquei dentro do helicóptero e, de repente, vários papéis caíram do seu bolso no chão. Eu me abaixei para pegar: era uma lista de compras, coisas triviais, algumas fotos de sua família. Quando peguei tudo e fui devolver, o homem estava morto. O que mais me chocou foi a banalidade dessa transição entre a vida e a morte”, lembra.


Amos Gitai - KedmaEm Kedma, já comprado para ser distribuído no Brasil, mas ainda sem data para estrear, Amos Gitai acompanhou os passos de pessoas em 1948, uma semana antes da criação do Estado de Israel. O barco que transportou essas pessoas se chama Kedma. “Procurei mostrar essa via dolorosa, as forças históricas atuando sobre os seres humanos, os ingleses perseguindo os judeus recém-chegados a Israel, o problema dos refugiados palestinos”, explica.


Amos Gitai - AlilaEm seu último filme, Alila, exibido recentemente no Festival de Veneza, Gitai trata da falta de privacidade no mundo contemporâneo a partir de um casal que vai fazer amor secretamente num apartamento em Tel Aviv.

 Judaísmo

A última cena de Kedma, um longo plano-seqüência em que um dos personagens principais tem uma espécie de surto psicológico e tenta discorrer sobre a essência da alma judaica, é uma das grandes obras-primas do cinema contemporâneo. Gitai nos ensina que todo artista deve e precisa mergulhar visceralmente na alma do seu povo, para expor as mais sinceras contradições da sua cultura. Um momento magistral que revela, de maneira comovente, a força dramatúrgica da linguagem da chamada sétima arte.

Longos planos-seqüência não são para Amos Gitai mera estetização, mas uma maneira de deixar o espectador freqüentar sem pressa imagens imensas, se espelhar e refletir sobre as contradições do mundo em que vivemos. São também uma forma de lutar contra o ritmo acelerado dos noticiários de televisão.

“O exílio é o nosso maior tesouro”, grita o personagem surtado na longa seqüência final de Kedma. “Somos um povo que cultua o sofrimento”, continua o personagem. “Preferimos o sofrimento a qualquer tipo de redenção. Precisamos do sofrimento para viver exilados, sendo perseguidos por outros povos, vagando como nômades dispersos pelo mundo. Nossa História foi construída por góim”, berra desesperado, referindo-se aos não-judeus.

 A essência da alma judaica é o personagem central de Kedma. “Para entendermos o que é ser judeu, é preciso uma interminável discussão teológica”, diz Gitai. “O cristianismo, por exemplo, também a cultura islâmica, são religiões que têm por objetivo converter outros povos ao redor do mundo”, argumenta. “Já o judaísmo, não. Somos justamente o oposto. Somos a cultura da exclusão. É muito difícil para alguém que não é judeu se tornar judeu. São apenas 14 milhões de judeus no mundo inteiro. Temos uma cultura que não quer que todo mundo se torne judeu, que não forma missionários para converter outros povos. Está muito enraizado na nossa essência a idéia de minoria cultural.

O judeu sempre se assume como minoria. A tradição judaica está calcada em tantas contradições… Para nós, judeus, nenhum ser humano jamais será perfeito. E também nenhum representante de Deus jamais será perfeito. Até o rei David foi um imoral. Queria dormir com a bela mulher de Batsheva e o mandou morrer na guerra. A bíblia registra a fraqueza desse rei. No judaísmo, todo mundo é fraco, imperfeito. Não há figuras angelicais. Nossa cultura está calcada em dois elementos básicos: o conceito de minoria cultural e o dogma de que não existe nada sagrado. As civilizações sedentárias criaram culturas e religiões que não têm nada a ver com a natureza do povo judeu, que é nômade. Nossa origem vem de nômades beduínos.”


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