Antissemitismo é racismo

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Celso de Mello vota pela rejeição de HC para nazista

“A noção de racismo — ao contrário do que equivocadamente sustentado na presente impetração — não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, além de caracterizar, em sua abrangência conceitual, um indisfarçável instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação social.”

Com esse entendimento, o ministro Celso de Mello votou, na última quarta-feira (9/4), pela rejeição do habeas corpus do editor nazista Siegfried Ellwanger. Ele é acusado da prática de racismo por ter escrito livros que incentivam o ódio contra o povo judeu.

V O T O

(Antecipação de voto)


O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O ora impetrante insurge-se contra decisão emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, que, ao denegar a pretendida concessão de habeas corpus, manteve condenação penal imposta, ao paciente, pela prática do delito tipificado no art. 20 da Lei nº 7.716/89, na redação que lhe deu a Lei nº 8.081/90.

O acórdão proferido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, objeto de impugnação na presente sede processual, acentuou inexistir ilegalidade no julgamento que decreta “(…) a condenação do paciente por delito contra a comunidade judaica, não se podendo abstrair o racismo de tal comportamento, pois não há que se fazer diferenciação entre as figuras da prática, da incitação ou do induzimento, para fins de configuração do racismo, eis que todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatórias ou preconceituosas, é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no âmbito da tipicidade direta” (grifei).

Ao assim decidir, e como conseqüência direta desse julgamento, o Tribunal ora apontado como coator proclamou a imprescritibilidade da pretensão punitiva do Estado, fazendo incidir, sobre o delito em questão – caracterizado como crime de racismo – a cláusula inscrita no art. 5º, XLII da Constituição da República, que assim dispõe:

“(…) a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”

Sustenta-se, na presente impetração, que a conduta de Siegfried Ellwanger – por não se identificar com a prática do racismo – não pode sofrer a incidência da cláusula constitucional da imprescritibilidade penal, especialmente se se considerar que o crime imputado ao ora paciente, segundo ele próprio afirma, “foi contra judeus, contra o judaísmo, contra a comunidade judaica, não podendo (…) ser inserido entre os decorrentes da prática de racismo”(fls. 09 – grifei).

Vê-se, portanto, que a controvérsia suscitada na presente causa consiste em saber se a prática do anti-semitismo subsume-se, ou não, à noção mesma de racismo, notadamente para efeito de incidência da cláusula da imprescritibilidade constante do art. 5º, XLII da Carta da República.

O magnífico voto que acabamos de ouvir, proferido pelo eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA, dispensar-me-ia de considerações adicionais, pois analisou, com propriedade, a questão ora em exame.

A gravidade do tema, contudo, exige que os Juízes deste Tribunal se pronunciem sobre a controvérsia em causa. E é por tal razão que desejo expor, nesta decisão, o meu pensamento sobre a matéria ora em debate.

O exame dos fundamentos em que se apóia a presente impetração requer algumas considerações preliminares e impõe necessárias reflexões prévias em torno da grave questão que somos hoje chamados a apreciar.

Celso de MelloNão tenho dúvida, Senhor Presidente, de que o Supremo Tribunal Federal, nesta tarde, reúne-se para proferir um julgamento impregnado de indiscutível transcendência e revestido de irrecusável valor simbólico, pois, hoje, está em debate, nesta Corte, questão que se projeta com máxima intensidade na definição de um dos mais expressivos valores, cujo respeito confere legitimação ético-jurídica à ordem normativa sobre a qual se edifica e se estrutura o próprio Estado Democrático de Direito.

Refiro-me ao princípio indisponível da dignidade da pessoa humana, que, mais do que elemento fundamental da República (CF, art. 1º, III), representa o reconhecimento de que reside, na pessoa humana, o valor fundante do Estado e da ordem que lhe dá suporte institucional.

O sentido emblemático desta reunião tanto mais se acentua quando se tem presente que este julgamento ocorre no contexto de marcos temporais, que, intimamente associados ao debate da questão judaica, põem em relevo – dada a sua relativa proximidade no tempo histórico – a atualidade preocupante do tema versado nesta causa.

Um desses marcos temporais relembra-nos que, há 70 (setenta) anos, em 30/01/1933, o Partido Nacional Socialista, emergindo das ruínas provocadas pela queda da República de Weimar, ascendeu ao poder na Alemanha, fazendo instaurar, nesse país, uma ordem totalitária, infensa aos direitos básicos da pessoa humana, sobre a qual se erigiu um sistema de poder absoluto que fez abater, sobre todos, notadamente sobre os judeus, um tempo de horror e de indescritível torpeza humana.

Outro desses marcos temporais, sob cuja égide e memória se processa o julgamento que hoje aqui realizamos, recorda-nos que há 60 (sessenta) anos, em 19/04/1943, o regime nazista sufocava, com o peso de sua infinita crueldade, o Levante do Gueto de Varsóvia, que representou, naquele momento histórico, o grito de desespero de um povo subjugado pela face sombria e sinistra de um regime de opressão e de um sistema de frontal desrespeito ao gênero humano.

Ainda na perspectiva desses marcos históricos que tão bem situam o instante em que este julgamento tem lugar, cabe referir a existência de um documento luminoso e de incomensurável valor para toda a humanidade: a encíclica “Pacem in Terris”, publicada há 40 (quarenta) anos, em 11/04/1963, na qual João XXIII denunciou o caráter abominável de qualquer prática fundada na discriminação e no racismo, bem assim no ódio e na intolerância que lhes são inerentes.

É também importante assinalar, sempre no contexto dos marcos temporais a que inicialmente me referi neste voto, que o presente julgamento tem lugar em momento que precede a celebração, em 29 de abril, logo após a festa do Pessach (Páscoa Hebraica), do Dia da Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto (Yom Hashoá Vehagevurá), data em que o povo de Israel relembra e honra a memória dos milhões de judeus vitimados por um dos maiores genocídios registrados na história de toda humanidade.

Tal como no Dia da Recordação – em que se rememora, com respeito, o Holocausto que imolou o povo judeu -, também este Supremo Tribunal não pode ser indiferente, no exame dessa controvérsia, à grave advertência que a História nos impõe, pois, também aqui e agora, é preciso “lembrar e recordar – jamais esquecer.

Cumpre destacar, bem por isso, Senhor Presidente, dentro desse contexto, a significativa importância que representou, no processo de conquista e preservação das liberdades fundamentais, a promulgação, há quase 55 (cinqüenta e cinco) anos, em 10/12/1948, pela 3ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana.

Esse estatuto das liberdades públicas representou, no cenário internacional, importante marco histórico no processo de consolidação e de afirmação dos direitos fundamentais da pessoa humana, pois refletiu, nos trinta artigos que lhe compõem o texto, o reconhecimento solene, pelos Estados, de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e titularizam prerrogativas jurídicas inalienáveis que constituem o fundamento da liberdade, da justiça e da paz universal.

Com essa proclamação formal, os Estados componentes da sociedade internacional – impulsionados pelo estímulo originado de um insuprimível senso de responsabilidade e conscientes do ultraje representado pelos atos hediondos cometidos pelo regime nazi-fascista e pelos gestos de desprezo e de desrespeito sistemáticos praticados pelos sistemas totalitários de poder – tiveram a percepção histórica de que era preciso forjar as bases jurídicas e éticas de um novo modelo que consagrasse, em favor de todas as pessoas, a posse da liberdade em todas as suas dimensões, assegurando-lhes o direito de viver protegidas do temor e a salvo das necessidades.

Esse documento extraordinário, mais do que simples repositório de verdades fundamentais, de promessas essenciais e de compromissos irrenunciáveis, deve constituir, no plano doméstico dos Estados nacionais – e do Brasil, em particular -, o instrumento de realização permanente dos direitos e das liberdades nele proclamados.

A Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, por isso mesmo, deve representar, na consciência dos governantes responsáveis e dos Estados comprometidos com a causa da liberdade, da justiça, da paz entre os povos e da democracia, o elemento vital e impulsionador de medidas, que, de um lado, visem a afastar, das relações entre os indivíduos e o poder estatal, o medo da opressão e, de outro, tendam a evitar a frustração dos sonhos que buscam dar sentido de concreta efetividade às legítimas aspirações do ser humano, banindo, para sempre, das relações entre as pessoas, o ódio e a intolerância, o preconceito e a discriminação que tão profundamente desonram aqueles que os praticam.

É preciso, pois, que o Estado, por intermédio desta Suprema Corte, ao magnificar e valorizar o significado real que inspira a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, pratique, sem restrições, sem omissões e sem tergiversações, os postulados que esse extraordinário documento de proteção internacional consagra em favor de toda a humanidade.

Hoje, portanto, muito mais do que a realização de um julgamento – e de um julgamento revestido de significação histórica na jurisprudência de nosso país – é chegado o momento de o Supremo Tribunal Federal incluir, em sua agenda, seu claro propósito de afirmar os compromissos do Estado brasileiro e de manifestar a preocupação desta Corte com a questão da defesa e da preservação da causa dos direitos essenciais da pessoa humana, que traduzem valores que jamais poderão ser desrespeitados ou esquecidos.

Este momento, tão fortemente impregnado do sentido histórico que assume o presente julgamento, impõe, por tal motivo, um instante de necessária reflexão sobre o significado do grave compromisso que o Brasil assumiu ao subscrever a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana. Os deveres irrenunciáveis que emanam desse instrumento internacional incidem sobre o Estado brasileiro de modo pleno, impondo-lhe – e aos órgãos nele estruturados, notadamente ao Poder Judiciário e a este Supremo Tribunal Federal, em particular – a execução responsável e conseqüente dos compromissos instituídos em favor da defesa e proteção da integridade e da dignidade de todas as pessoas.

A luta pelos direitos e pelo respeito à essencial dignidade das pessoas e a experiência da liberdade e da tolerância hão de representar etapa essencial na jornada permanente em busca da realização plena dos objetivos insuprimíveis que a consciência dos povos, estimulada por uma notável percepção das exigências éticas subjacentes à atuação do Poder Público, concebeu e atribuiu à Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana.

É esse, pois, o grande desafio com que nós, Juízes da Suprema Corte deste País, nos defrontamos no âmbito de uma sociedade democrática: extrair, das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua máxima eficácia, em ordem a tornar possível o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs.

Não se pode desconhecer, Senhor Presidente, que se delineia, hoje, uma nova perspectiva no plano do direito internacional. É que, ao contrário dos padrões ortodoxos consagrados pelo direito internacional clássico, os tratados e convenções, presentemente, não mais consideram a pessoa humana como um sujeito estranho ao domínio de atuação dos Estados no plano externo.

O eixo de atuação do direito internacional público contemporâneo passou a concentrar-se, também, na dimensão subjetiva da pessoa humana, cuja essencial dignidade veio a ser reconhecida, em sucessivas declarações e pactos internacionais, como valor fundante do ordenamento jurídico sobre o qual repousa o edifício institucional dos Estados nacionais.

Torna-se importante destacar, sob tal perspectiva, que a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas, representou um passo decisivo no processo de reconhecimento, consolidação e contínua expansão dos direitos básicos da pessoa humana.

A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada consensualmente pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, foi responsável – consoante observa o diplomata brasileiro JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES (“Os Direitos Humanos como Tema Global“, p. 135/144, item n. 8.2, 1994, Perspectiva) – por significativos avanços conceituais que se projetaram nos planos concernentes à legitimidade das preocupações internacionais com os direitos humanos (Artigo 4º), à interdependência entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos (Artigo 8º) e, ainda, ao reconhecimento do sentido de universalidade dos direitos humanos (Artigo 5º).

Cumpre não desconhecer, nesse contexto, o alcance e o significado de diversas proclamações constantes da Declaração de Viena, especialmente daquelas que enfatizam o compromisso solene de todos os Estados de promoverem o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas, assegurando-lhes, para esse efeito, meios destinados a viabilizar o acesso à própria jurisdição de organismos internacionais.

A intolerância e as conseqüentes práticas discriminatórias, motivadas por impulsos racistas, especialmente dirigidos contra grupos minoritários, representam um gravíssimo desafio que se oferece à sociedade civil, a todas as instâncias de poder no âmbito do aparelho de Estado e ao Supremo Tribunal Federal.

Torna-se imperioso, pois, a partir da consciência universal que se forjou no espírito de todos em torno do valor essencial dos direitos fundamentais da pessoa humana, reagir contra essas situações de opressão, degradação, discriminação, exclusão e humilhação que provocam a injusta marginalização, dentre outros, de grupos étnicos, nacionais e confessionais.

Essa reação – que deve repercutir no próprio sistema de poder e no aparato governamental que lhe dá suporte – deve buscar os meios que permitam transformar, em concreta realidade, os compromissos que o Brasil assumiu ao subscrever a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana e, considerado o contexto da presente causa, as obrigações éticas e jurídicas que incidem sobre o Estado brasileiro, por efeito de sua adesão a importantes atos, declarações, convenções e estatutos internacionais, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais (UNESCO/1978) e a Declaração de Durban e Plano de Ação, resultantes da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, à Discriminação Racial, à Xenofobia e à Intolerância Correlata (África do Sul/2001), “inter alia”.

Cabe recordar, neste ponto, ante a sua inquestionável pertinência, o Preâmbulo da Constituição da Unesco (1945) – órgão das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – que expressamente advertiu que o terrível conflito mundial que se abateu sobre a humanidade “não teria sido possível sem a negação dos princípios democráticos, da igualdade, da dignidade e do respeito mútuo entre os homens, e sem a vontade de substituir tais princípios, explorando os preconceitos e a ignorância, pelo dogma da desigualdade dos homens e das raças”.

Foi por tal razão que esse e todos os documentos internacionais destinados a promover a eliminação de quaisquer formas, sempre odiosas, de discriminação racial, reconheceram “a unidade intrínseca da espécie humana e, por conseguinte, a igualdade fundamental de todos os seres humanos e de todos os povos…”, proclamando, com irrecusável correção, que “Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a mesma origem”, pois “Nascem iguais em dignidade e direitos e todos formam parte integrante da humanidade”, razão pela qual “a diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem, em nenhum caso, servir de pretexto aos preconceitos raciais”, mesmo porque as diferenças entre os povos do mundo não justificam qualquer classificação hierárquica entre as nações e as pessoas.

Em uma palavra, Senhor Presidente: nem gentios, nem judeus; nem patrícios, nem plebeus. Sem qualquer hierarquia ou distinção de origem, de raça, de orientação confessional ou de fortuna, somos todos pessoas, essencialmente dotadas de igual dignidade e impregnadas de razão e consciência, identificadas pelo vínculo comum que nos projeta, em unidade solidária, na dimensão incindível do gênero humano.

Eis porque, Senhor Presidente, a noção de racismo – ao contrário do que equivocadamente sustentado na presente impetração – não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, além de caracterizar, em sua abrangência conceitual, um indisfarçável instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação social, como bem o evidenciou HANNAH ARENDT, em sua clássica obra “Origens do Totalitarismo”, quando, ao versar o tema do anti-semitismo – por ela qualificado “como uma ofensa ao bom senso”refere-se à manipulação arbitrária dos conceitos de inimigo objetivo e de verdade oficial, como expressões destinadas a fomentar os “ódios públicos” contra o povo judeu.

Irrepreensível, neste ponto, o magistério, sempre douto e erudito, do eminente Professor CELSO LAFER, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (que é a minha “alma mater”), cujo parecer – oferecido na legítima e informal condição de amicus curiae – bem analisa a questão em foco (fls. 120/122:

“O conteúdo jurídico do preceito constitucional consagrado pelo art. 5º, XLII, do crime da prática do racismo, tipificado pela legislação infra-constitucional, reside nas teorias e preconceitos que estabelecem diferenças entre grupos e pessoas, a eles atribuindo as características de uma ‘raça’ para discriminá-las. Daí a repressão prevista no art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90. Só existe uma ‘raça’ – a espécie humana – e, portanto, do ponto de vista biológico, não apenas os judeus, como também os negros, os índios, os ciganos ou quaisquer outros grupos, religiões ou nacionalidades não formam raças distintas. É o que diz a Declaração da UNESCO de 1978 sobre Raça e Racismo; é o que dizem autores citados pelo impetrante, que mostram que ‘raça’ é uma construção histórico-social, voltada para justificar a desigualdade. Esta omissão é o ponto de partida da falaciosa argumentação do impetrante. Com efeito, os judeus não são uma raça, mas também não são raça os negros, os mulatos, os índios e quaisquer outros integrantes da espécie humana que, no entanto, podem ser vítimas da prática do racismo. É o caso, por exemplo, dos párias na Índia, discutido na Conferência de Durban sobre Racismo, vítimas de um preconceito de origem e não de marca, para recorrer à distinção de Oracy Nogueira. Interpretar o crime da prática do racismo a partir do conceito de ‘raça’, como argumenta o impetrante, exprime não só uma seletividade que coloca em questão a universalidade, interdependência e inter-relacionamento, que compõem a indivisibilidade dos direitos humanos, afirmada, em nome do Brasil, pelo Ministro Maurício Corrêa em Viena. Representa, sobretudo, reduzir o bem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro, o que não é aceitável como critério de interpretação dos direitos e garantias constitucionais. No limite, esta linha de interpretação restritiva pode levar à inação jurídica por força do argumento contrario sensu, que cabe em matéria penal. Com efeito, levadas às últimas conseqüências, ela converteria a prática do racismo, por maior que fosse o esmero na descrição da conduta, em crime impossível pela inexistência do objeto: as raças (…).” (grifei) 

Essa mesma percepção do tema é também partilhada por ilustres acadêmicos (EDSON BORGES, CARLOS ALBERTO MEDEIROS e JACQUES d’ADESKY, “Racismo, Preconceito e Intolerância”, p. 43, 48/49 e 57/58, 2002, Atual Editora), cuja análise, versando a questão do racismo, praticado contra o judeu, assim discute os aspectos concernentes ao anti-semitismo:

“Enquanto aceitarmos dividir a grande raça humana em raças – branca, negra, amarela, etc. -, estaremos legitimando as falsas hipóteses defendidas pelos grupos teóricos racistas.
……………………………………………
Como vimos, a palavra racismo designa um comportamento de hostilidade e menosprezo em relação a pessoas ou grupos humanos cujas características intelectuais ou morais, consideradas ‘inferiores’, estariam diretamente relacionadas a suas características ‘raciais’, isto é, físicas ou biológicas.
……………………………………………
Finalmente, é preciso observar que o anti-semitismo é um racismo paradoxal, pois, ao contrário do racismo contra o negro, sequer se baseia em diferenças aparentes (…). Assim, o racista precisa alegar supostas diferenças psicoculturais imaginárias para inferiorizar os judeus.
Ao estigmatizar os judeus como membros de uma raça considerada inferior à ariana, o anti-semitismo condenava-os de modo intrínseco e permanente, já que não bastava que renegassem sua religião e se tornassem cristãos para se livrar de sua ‘condição’. Em outras palavras, os judeus seriam, em essência, diferentes dos não-judeus, não pertenceriam à mesma humanidade dos arianos. Essa depreciação forneceu condições ideológicas importantes aos nazistas para discriminar, segregar e eliminar fisicamente os judeus.
É importante termos essas considerações sempre vivas em nossa memória, já que o anti-semitismo não desapareceu. (…).”
(grifei)

 

Incensurável, desse modo, a meu juízo, o douto voto proferido pelo eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA, quando, com apoio nos fundamentos que expôs, sustenta a decisão emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, cujo julgamento – ao corretamente denegar a ordem de habeas corpusmanteve o acórdão condenatório proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Nem se diga, finalmente, que a incitação ao ódio público contra o povo judeu estaria protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.

É que publicações – como as de que trata esta impetração – que extravasam os limites da indagação científica e da pesquisa histórica, degradando-se ao nível primário do insulto, da ofensa e, sobretudo, do estímulo à intolerância e ao ódio público pelos judeus, não merecem a dignidade da proteção constitucional que assegura a liberdade de expressão do pensamento, que não pode compreender, em seu âmbito de tutela, manifestações revestidas de ilicitude penal.

Isso significa, portanto, que a prerrogativa concernente à liberdade de manifestação do pensamento, por mais abrangente que deva ser o seu campo de incidência, não constitui meio que possa legitimar a exteriorização de propósitos criminosos, especialmente quando as expressões de ódio racial – veiculadas com evidente superação dos limites da crítica política ou da opinião histórica – transgridem, de modo inaceitável, valores tutelados pela própria ordem constitucional.

Esta Suprema Corte, por mais de uma vez, ao pronunciar-se sobre a extensão dos direitos e garantias individuais, fez consignar a seguinte advertência, que cumpre ser relembrada:

 Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.
O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”
(RTJ 173/805-810, 807-808, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

É inquestionável que o exercício concreto da liberdade de expressão pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.

O caso ora exposto pela parte impetrante, no entanto, não traduz, a meu juízo, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos.

Com efeito, , na espécie, norma constitucional que objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana, buscando inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por motivações racistas, disseminar, criminosamente, o ódio contra outras pessoas, mesmo porque a incitação – que constitui um dos núcleos do tipo penal – reveste-se de caráter proteiforme, dada a multiplicidade de formas executivas que esse comportamento pode assumir, concretizando, assim, qualquer que tenha sido o meio empregado, a prática inaceitável do racismo.

Presente esse contexto, cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignidade pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à liberdade de expressão, que não pode, e não deve, ser exercida com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público.

Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina (DANIEL SARMENTO, “A Ponderação de Interesses na Constituição Federal” p. 193/203, “Conclusão”, itens ns. 1 e 2, 2000, Lumen Juris; LUÍS ROBERTO BARROSO, “Temas de Direito Constitucional”, p. 363/366, 2001, Renovar; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 220/224, item n. 2, 1987, Almedina; FÁBIO HENRIQUE PODESTÁ, “Direito à Intimidade. Liberdade de Imprensa. Danos por Publicação de Notícias”, in “Constituição Federal de 1988 – Dez Anos (1988-1998)”, p. 230/231, item n. 5, 1999, Editora Juarez de Oliveira; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 661, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina; EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, “Colisão de Direitos”, p. 94/101, item n. 8.3, 1996, Fabris Editor; WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, “Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade”, p. 139/172, 2001, Livraria do Advogado Editora; SUZANA DE TOLEDO BARROS, “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, p. 216, “Conclusão”, 2ª ed., 2000, Brasília Jurídica).

Isso significa, em um contexto de liberdades aparentemente em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do método – que é apropriado e racional – da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais praticadas por qualquer pessoa basta, por si só, para atribuir, ao Estado, o dever de atuar na defesa de postulados essenciais, como o são aqueles que proclamam a dignidade da pessoa humana e a permanente hostilidade contra qualquer comportamento que possa gerar o desrespeito à alteridade, com inaceitável ofensa aos valores da igualdade e da tolerância, especialmente quando as condutas desviantes culminem por fazer instaurar tratamentos discriminatórios fundados em ódios raciais.

Irretocável, sob tal aspecto, a decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, ao manifestar-se sobre a necessidade de se “controlarem os abusos da liberdade de expressão, mediante o exercício da jurisdição”, deixou assentado que é “inaceitável que se deixe de punir a manifestação da opinião, quando transparece evidente e cristalina a intenção de discriminar raça, credo, segmento social ou nacional, ainda que sob o manto de mera ‘revisão da história'” (fls. 50 – grifei).

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, não posso aceitar a tese exposta na impetração, pois admiti-la significaria tornar perigosamente menos intensa e socialmente mais frágil a proteção que o ordenamento jurídico dispensa, no plano nacional e internacional, aos grupos minoritários, especialmente àqueles que se expõem a uma situação de maior vulnerabilidade.

Cabe ter em consideração, no ponto, que, em matéria de direitos humanos, a interpretação jurídica há de considerar, necessariamente, as regras e cláusulas do direito interno e do direito internacional, cujas prescrições tutelares se revelam – na interconexão normativa que se estabelece entre tais ordens jurídicas – elementos de proteção vocacionados a reforçar a imperatividade do direito constitucionalmente garantido, como observa, em seu lúcido parecer, o ilustre Professor CELSO LAFER.

Não se pode ignorar, Senhor Presidente, a propósito do tema que ora julgamos, que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou, em 09/12/1998 (na véspera do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana), pela Resolução 623, que o anti-semitismo e todos os atos de intolerância a ele relacionados constituem manifestações preocupantes de formas contemporâneas de racismo, impondo-se, por isso mesmo, a adoção, pela comunidade internacional e pelos Estados nacionais, de medidas que impeçam a propagação desse modo perverso de exclusão social.

Se é certo, como proclama a milenar sabedoria judaica, que aquele que salva uma vida, salva toda a Humanidade, não é menos exato afirmar, Senhor Presidente, que aquele que ofende a dignidade pessoal de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razões de fundo racista, também atinge – e atinge profundamente – a dignidade de todos e de cada um de nós.

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, e acolhendo, ainda, os fundamentos doutamente expostos pelo eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA, peço vênia ao ilustre Relator para indeferir o pedido de habeas corpus formulado por Siegfried Ellwanger, mantendo, em conseqüência, a condenação penal que foi corretamente imposta, ao ora paciente, pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.


É o meu voto.

 

[ Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2003 ]

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