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O apoio a Arafat na diáspora árabe deve ser total, o que é perfeitamente lógico. Já o apoio a Sharon no seio do judaísmo mundial deve ser bem menor do que em Israel. Pesquisa nesse âmbito seria impraticável mas há diversos indicadores palpáveis, como os artigos de Thomas Friedman, experimentado jornalista do The New York Times, contumaz defensor da política israelense e agora seu convicto crítico.
Indício ainda mais precioso foi a firme, tranqüila e, por isso, decisiva manifestação do chanceler Celso Lafer, quinta última no Senado: embora judeu, o chefe da diplomacia de um país neutro, democrático e comprometido com a paz no mundo, condenou a atuação de Sharon: ”Eu também acho que o Estado de Israel não merece um primeiro-ministro com as características do atual”.
Sharon tem contas a prestar ao eleitorado israelense: o país ainda é uma democracia e nas eleições de outubro seu governo será julgado pelo que está fazendo. Mas Sharon não tem mandato legal ou autoridade moral para falar em nome da diáspora judaica que deu suporte decisivo para a criação do Estado e não vota em suas eleições.
Ao contrário: pela primeira vez desde sua criação, a política do Estado de Israel está colocando em risco a tranqüilidade de comunidades judaicas em países do Ocidente. A onda de atentados anti-semitas na França, embora não seja novidade no país do Caso Dreyfus, está intimamente relacionada com a ação de Sharon.
Mesmo no Brasil há indícios preocupantes. As pedradas contra a sinagoga em Laranjeiras, Rio, podem ser materialmente pouco significativas, mas sinalizam para uma transformação, nada sutil, de um arcaico e entranhado ressentimento racista numa ação política assumidamente antijudaica.
A manifestação de quinta-feira na Avenida Paulista, organizada por um Comitê Brasileiro de Solidariedade ao Povo Palestino, na realidade foi mais antiisraelita do que antiisraelense. Mais rancorosa do que solidária. As faixas comparando os judeus com os nazistas foram em maior número do que as faixas contra a ação militar de Sharon em território palestino. O fatal atropelamento de um militante do MST teria descambado num linchamento ou pogrom, se o veículo atropelador fosse de um motorista com nome remotamente judeu, e não o carro de som da própria passeata.
Mais assustadora – porque partiu de pessoa alfabetizada e articulada – foi a reação de um(a) leitor(a) que me proibiu de opinar sobre política brasileira porque, tendo criticado as infelizes declarações de Saramago, sábado passado, eu estaria comprometido com a política de Israel. A mesma ameaça de mordaça não foi dirigida a Luís Fernando Veríssimo, que em dois dias consecutivos criticou com veemência o mesmo Saramago pelas mesmíssimas declarações.
Ele pode, eu não. Eu faço parte da conspiração judaica. Apesar de secular e agnóstico, sou membro da sinagoga mundial, não tenho o direito de revoltar-me contra a injustiça, devo ficar calado ante a miopia de um maravilhoso escritor que, não obstante, foi incapaz de reprimir um velho instinto totalitário.
Os dois textos de Luis Fernando Veríssimo são os mais nobres, mais galantes e mais corajosos que li nestes dias perturbadores. O filho do grande Érico Veríssimo (1905-1975) retoma a bravura moral de Olhai os lírios dos campos, novela publicada em 1938, quando o integralismo era uma das maiores forças políticas nacionais, o fascismo espraiava-se pela burguesia, infiltrava-se nas rodas intelectuais, políticas e Hitler, na Alemanha, fascinava os ingênuos com sua demência (Editora Globo, 2001).
Veríssimo Pai enfrentou o preconceito e o ódio narrando de forma extraordinária a história daqueles judeus sem dinheiro atormentados pelo passado. Veríssimo Filho enfrenta o sectarismo para ensinar as legiões de leitores a pensar, distinguir e recusar a militância pacifista com ódio no coração.
Sharon na sua paranóia esqueceu que o povo judeu só conseguiu sobreviver às perseguições e massacres ao longo de alguns milênios – antes da criação do Estado de Israel – porque foi defendido por sua força espiritual, sua integridade moral, sua humanidade. A religião ajudou, mas a partir de Spinoza no século 17 foi o intelecto que tornou o judaísmo indestrutível. Foi na diáspora, no encontro com o mundo, que o povo judeu encontrou forças para sobreviver e criar aquele prodígio que foi Israel das primeiras décadas.
Sharon, como seus antecessores da direita israelense, brandem uma história distorcida e enferma. Tão perniciosa e caricata como aquela brandida por seus detratores.
[Alberto Dines é jornalista – publicado no JB em 07|04|2002]