A apreensão do navio de armas palestino traz um grande alívio, pois aquele terrível armamanto não será apontado contra israelenses. Existe um sentimento de gratidão pelos soldados que participaram da missão. Entretanto, nas vozes dos porta-vozes do Exército de Defesa de Israel, do governo e da mídia (israelense) também houve uma indisfarçável nota de júbilo por se ter descoberto uma “prova final” sobre as terríveis e criminosas intenções palestinas.
Ostensivamente, tornou-se claro e sem sombra de dúvida, que “a Autoridade Palestina está infestada pelo terror da cabeça ao polegar”, como o Chefe do Estado-Maior Shaul Mofaz disse na conferência para imprensa, a qual pareceu ser uma tentativa de trazer de volta os momentos de glória dos heróicos anos ´50, quando não do próprio episódio de Entebbe.
Mas que prova foi obtida agora? A prova de que se você oprime um povo por 35 anos, e humilha seus líderes, brutaliza sua população, e não lhes deixa uma gota de esperança, os membros desse povo tentarão se auto-afirmar de qualquer maneira possível? E algum de nós se comportaria diferentemente dos palestinos em tal situação? Nós nos comportamos em algo diferente, quando por anos estivemos sob ocupação e tirania?
Avshalom Feinberg e Yosef Lishansky foram ao Cairo para trazer dinheiro de lá para os clandestinos de Nili para que a comunidade judaica na Palestina pudesse se afirmar contra os turcos. Os combatentes dos movimentos clandestinos Haganá, Lehi e Etzel coletaram e esconderam tantas armas quanto puderam, e seus esplêndidos sliks (escondereijos de armas) são até hoje um símbolo da luta pela sobrevivência e esforços pela liberdade, assim como foram as memoráveis missões de aquisição de armas durante o Mandato Britânico (que eram definidas pelos ingleses como atos de terror).
Quando “nós” fizemos aquelas coisas, elas não eram terroristas por natureza. Eram, então, ações legítimas de um povo lutando por sua vida e liberdade. Quando os palestinos as fazem, elas se tornam “prova” de tudo que tanto nos esforçamos para comprovar por anos.
Foi embaraçoso e desagradável ouvir o chefe do Estado-Maior censurando os palestinos por “desperdiçar seu dinheiro ao adquirir armas, em vez de olhar para a sua população pobre e faminta” – as palavras de um homem, cujos soldados – que seguem as instruções do governo – violentam os palestinos de dia, à tarde e de noite, os empobrecem e os mantêm famintos. Não menos embaraçosa foi a cobertura jornalística da apreensão do navio. Os correspondentes, excitados pelo heroísmo de nossos soldados, unânimente adotaram as declarações do chefe do Estado-Maior e do primeiro-ministro sobre os palestinos e os instintos assassinos e terroristas que ardem em seus peitos, como quase sua segunda natureza.
Agora chegam os dias de celebração e júbilo da turma do “eu já lhes dizia…” :
Nós já lhes dizíamos que palestinos não respeitam acordos (enquanto nós, logicamente respeitamos cada um deles).
Nós lhes dizíamos que eles farão todo o possível para adquirir armas de ataque (enquanto nós apenas disparamos contra o orgulho narcísico nas janelas do Presidente da Autoridade Palestina Yasser Arafat em Ramallah).
Nós lhes dissemos que não existe ninguém com quem conversar, e portanto devemos continuar apertando o laço em seus pescoços (e neste sentido, sem dúvida iremos trazer uma profunda mudança no “caráter palestino”, de forma que eles concordarão em aceitar todas nossas condições).
Nós lhes dissemos que Arafat é, de fato, Bin Laden (e nós somos discípulos do Dalai Lama).
Na tentativa de contrabandear as armas pelo navio, os palestinos violaram seriamente os acordos feitos com eles, e o Exército de Defesa de Israel deve, logicamente, fazer tudo para evitar tal escalada. Entretanto, como pode o senso de julgamento de todo um povo ser tão menosprezado ? Como podemos repetidamente ignorar o quadro geral e o claro sentido de que Israel, por suas ações e omissões, e especialmente pelo comportamento malévolo de seu primeiro-ministro, continua empurrando os palestinos para tais ações de modo que, uma após outra, eles irão nos fornecer mais “provas incontroversas”, das quais, de fato, não existe nenhum benefício aos nossos interesses ?
Estes são dias desagradáveis. Dias de total embaralhamento dos sentidos. O primeiro-ministro Ariel Sharon espremerá cada possível gota de propaganda deste navio. A mídia, em sua maioria, correrá atrás dele. As ruas israelenses, demasiado exaustas e apáticas para pensar, irão adotar qualquer conclusão definitiva que resolva por elas a contradição interna e moral na qual vivem, e dê um reforço ao seu senso de Direito, que tem sido minado na sua base.
Quem terá força, nesses dias para recordar o começo, a raiz do problema, as circunstâncias, o fato de que o que temos aqui é ocupação e opressão, reações e contra-reações, num círculo vicioso e sangrento, dois povos que estão se tornando corruptos, violentos e loucos de desespero, numa armadilha mortal na qual estamos nos sufocando mais a cada dia que passa ?
David Grossman é um dos mais respeitados escritores israelenses contemporâneos e veterano ativista do PAZ AGORA
[ publicado pelo Haaretz e traduzido por Moisés Storch para o PAZ AGORA|BR ]