Há muito existe a compreensão de que a paz não se resume à mera ausência de guerra. Contudo, quando olhamos a história da humanidade, parece que a guerra tem estado tão presente que a ciência da guerra, se podemos chamar assim, pareceria mais desenvolvida que a da paz. Na sabedoria ancestral chinesa, no Livro das Mutações, I Ching (editora Pensamento), encontram-se pontos essenciais: ‘‘A palavra chinesa T’ai não é fácil de traduzir. Significa contentamento, repouso, paz, no sentido positivo de uma união plena e sem bloqueios, que promove o florescimento e a grandeza’’.
Quem se une a quem, de forma plena? Há temas internos de países que são questões referentes à paz — e aí a união é de habitantes de um mesmo espaço, sejam ou não o mesmo povo, a mesma nação. O destino comum, porém, é evidente, e assim a possibilidade de que a união sem bloqueios promova o florescimento cultural, político, social, econômico.
No caso brasileiro, por exemplo, a situação econômica injusta, que se apresenta com características estruturais, indica um povo cindido, onde a miséria é o indicador da falta de união. Poderíamos, aqui, perguntar como pretendemos alcançar desenvolvimento econômico significativo — o florescimento e a grandeza — se não damos atenção ao grau de exclusão que nossa sociedade está produzindo? Ou valeria indagar que papel educação e mídia teriam no processo se nos falta refletir sobre como poderíamos promover a responsabilidade mútua na sociedade? A cisão, como povo, assim como o esgarçamento dos laços de consideração e reciprocidade, manifestam-se também quando buscamos soluções individuais e particularizadas, que nem sempre nos protegem como gostaríamos, frente à violência que se multiplica e reproduz de forma incontrolável, a partir de bases complexas. Ou aceitamos como se fosse familiar a violência, que parece fazer parte da ordem esperada para a sociedade.
Poderíamos também pensar em ‘‘união plena e sem bloqueios’’, considerando o ser humano consigo mesmo. Muito do que tratam as tradições espirituais do Oriente têm vínculo com a abordagem, sendo compreensível que, no mundo atual, dividido e conflituoso a cada momento do cotidiano, o apelo à paz interior faça tantos seguidores. Perspectiva rica de possibilidades, contudo não temos como nos ocultar da situação exterior. Por ação ou omissão, alimentamos o que se passa no mundo, expondo o que já é evidente: a perspectiva da paz interior, embora indispensável, não se esgota em si.
Contudo, parecem ser caminhos que andam pouco trilhados. Sobretudo após 11 de setembro, manter a esperança não tem sido simples. Mas será assim mesmo? De fato, há pessoas e organizações espalhadas pelo mundo procurando encontrar outras vias que possibilitem ao ser humano entrar em contato com seu potencial, individual e coletivo, de união sem bloqueios. São trabalhos que se desenvolvem com determinação movida, sobretudo, por um compromisso interior profundo com o ser humano, a vida, a dignidade, a liberdade, a justiça. Reais e vigorosos, embora pouco ou nada divulgados.
Por isso tenho a honra de anunciar que há chances para a paz verdadeira, pelos trabalhos que testemunho haver espalhados pelo mundo, enviando informações de Paris. Ali, na semana que passou, realizou-se a cerimônia de entrega do Prêmio Unesco de Educação para a Paz de 2001. Ao ser eleita presidente do júri internacional do prêmio — formado por Nazli Mowad Ahmed, senadora egípcia; Ran-Soo Kim, presidente da Federação da Ásia e Pacífico dos Clubes e Associações Unesco; Pierre Kipre, ex-ministro da Educação da Costa do Marfim; e Lucy Smith, ex-reitora da Universidade de Oslo — conduzi em setembro, poucos dias antes dos atentados terroristas aos Estados Unidos, os trabalhos de escolha dos laureados, examinando 23 candidaturas de todo o mundo, apresentadas para a rodada do ano.
A diversidade, originalidade e coragem dos trabalhos realizados mundo afora demonstram como há pessoas empenhadas na construção da paz. O resultado entrelaça muitas formas de trabalho pela paz. Aceitando a sugestão do júri, o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, atribuiu o prêmio, por empate, a dois candidatos, um individual e uma associação: o bispo Nelson Onono Onweng e o Centro Judeu-Árabe para Paz em Givat Haviva. A menção honrosa ficou para a professora Betty Reardon, educadora norte-americana, de 72 anos, que tem dedicado a vida a desenvolver projetos, livros e materiais didáticos voltados para a Educação para Paz, tema que tem tratado de forma pioneira, influenciando educadores ao redor do mundo.
O bispo anglicano Onono Onweng tem realizado um trabalho de união no interior de Uganda, trabalhando tanto pela diminuição da miséria e da fome como amparando órfãos da guerra civil, assim como promovendo o diálogo inter-religioso, tudo — frisava — dentro das mais difíceis condições. A associação de Givat Haviva, que existe há 38 anos, promove o diálogo e a cooperação entre judeus e árabes em Israel, sendo a mais antiga e a maior instituição de educação para paz, ali. Atua junto aos jovens, publicando revistas bilíngües, junto às escolas e universidades. Atinge, a cada ano, cerca de 25 mil participantes, continuando seus trabalhos mesmo atualmente, quando os conflitos recrudesceram.
Quem trabalha pela paz deseja — talvez possamos dizer dolorosamente — a união sem bloqueios. É a certeza de que a paz interior somente será completa quando pudermos habitar um mundo em paz e vice-versa. Não a paz dos cemitérios, das coisas encerradas, mas a paz da vida que se cria e recria como fato novo a cada dia, onde todos os seres humanos vivem em condições dignas e justas, podendo expressar-se livremente, de acordo com suas consciências, respeitando e sendo respeitados. O mundo com paz é um mundo que dá mais trabalho que o atual, assim como a democracia é um regime muito mais trabalhoso que qualquer totalitarismo. Mas vale a pena.
Aprecio tratar da paz assim, no presente, não no futuro. Há bolsões de paz espalhados pelo mundo, procurando contaminar as pessoas com a mensagem do exemplo. Gente cheia de coragem e esperança que não teme o risco de entrelaçar o que muitos supõem que deveria ser ainda mais separado e cindido do que já está. Gente que, ao dar seu exemplo de trabalho pela paz, grita, respeitosamente, para que o mundo veja o drama que vivem. Quando indagaram a Gandhi qual era a mensagem que deixava, disse que era o evangelho das rosas. Como ensinou mestre Cartola, ecoando no amor a voz do Mahatma, as rosas não falam, porém, mesmo quem não enxerga pode sentir o perfume.
Dia 13 — junção de Chanucá, festa judaica das Luzes e Ramadã, mês sagrado islâmico, vésperas do Natal cristão, no território de união da Unesco —, Paris encheu-se de perfume, com os premiados presentes e ganhadores de rodadas passadas que compareceram à cerimônia para explicitar a união em prol da paz.
Que venha!
Roseli Fischmann é professora de pós-graduação na USP e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenadora do Instituto Plural e presidente do Júri Internacional do Prêmio Unesco de Educação para a Paz.
(publicado pelo Correio Braziliense)
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