O Shas e a crise da ideologia sionista

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A sociedade israelense vive um processo de profundas transformações, cujas conseqüências só não são mais dramáticas em função da permanência do penoso conflito entre Israel e o mundo árabe, em especial o conflito com o povo palestino.

É fácil constatar o enfraquecimento da ideologia, nacional/sionista concebida pelos fundadores do Estado de Israel, que esteve baseada nos valores de reunião de todos os judeus em Israel, na construção de uma sociedade igualitária, na criação de um “novo judeu” que surgiria da integração/absorção dos imigrantes vindos de países com culturas distintas e no secularismo.

Um dos fenômenos recentes que expressam com mais veemência a crise da ideologia dos fundadores do Estado é, sem dúvida, a emergência de um forte movimento religioso, ultra-ortodoxo, entre os descendentes dos imigrantes judeus dos países árabes.

Quando eles imigraram para Israel nos anos 50 e 60 do século 20, encontraram várias possibilidades ideológicas e políticas de assimilação ao novo país.

As opções disponíveis eram produto dos debates ideológicos travados na Europa meio século antes. Enquanto muitos judeus da Europa Oriental adotaram valores socialistas e laicos do sionismo do Mapai, outros aderiram ao sionismo religioso do Mafdal (Partido Nacional Religioso). Ambas correntes ideológicas consideravam que
uma absorção bem sucedida dos imigrantes orientais em Israel exigia o abandono dos costumes e estilos de vida étnicos e tradicionais e a adesão ao modelo cultural ashkenazita.

Campanha do Shas em Jerusalém

Campanha do Shas em Jerusalém

Pouco mais de uma geração depois, o partido Shas(Guardiões Sefaraditas da Torá) chega ao poder. É o principal partido religioso do país e vem aumentando significativamente a quantidade de mandatos parlamentares a cada eleição.

Hoje, é a terceira força política no parlamento e provavelmente nenhum governo poderá prescindir de uma coligação com ele. 0 Shas é o único movimento ultra-ortodoxo surgido em Israel e que não faz parte de uma comunidade religiosa previamente existente na Diáspora.

O discurso que mobiliza o apoio da população sefaradita se sustenta na denúncia de que as necessidades materiais e espirituais das comunidades de judeus orientais foram ignoradas pela elite política do país.

Culpando o establishment secular e nacional-religioso ashkenazita pela situação de carência relativa dos sefaraditas, o Shas promete melhorar a condição social dos seus adeptos em Israel mediante um programa de educação religiosa e de renascimento (recriação) da identidade sefaradita. É um movimento que apela para o orgulho e para a recuperação da autoestima dos mizrahim (orientais). As lideranças religiosas do Shas surgiram nas ieshivot dos lituanos de Bnei-Brak e Jerusalém e se rebelaram contra a discriminação que
sofriam nessas comunidades ashkenazitas. A existência de numerus clausus para estudantes de origem sefaradita nas ieshivot mais prestigiadas, as menores oportunidades de realizar bons casamentos arranjados pelas ieshivot, o desprezo pela tradição religiosa e pelos sábios sefaraditas e os poucos recursos doados às
ieshivot com diretores sefaraditas motivam o rompimento com os partidos religiosos askenazitas.

Formam um partido e uma extensa base de apoio através da oferta de um sistema escolar com mensalidades mais baratas, refeições e transporte gratuito voltado particularmente ao público mizrahi mais carente. Se é bem verdade que este movimento está “convertendo” judeus sefaradim que eram apenas tradicionalistas para a ultra-ortodoxia, o fato deste movimento adotar uma prática de recrutamento ou de conversão ampla limita as possibilidades de impor uma religiosidade muito severa, como acontece com os grupos sectários
ashkenazitas, e de ter uma proposta radical a favor de um estado fundamentalista. Sua base social tem aspirações modernas e exerce um controle sobre a radicalização religiosa dos dirigentes. Esta dialética entre bases e lideranças transforma a política do Shas em um jogo de cálculos pragmáticos, onde tudo é negociável, coalizão com a esquerda ou com a direita, contanto que se mantenham ou se expandam os recursos orçamentários destinados às atividades religiosas do Shas.

A esquerda em Israel tem, de modo geral, uma relação muito ambígua com o Shas: se por um lado sente-se ameaçada pelo seu crescimento e incomodada com a fusão entre religião e partido político, por outro, considera que também é responsável pela situação que conduziu a população sefaradíta, menos privilegiada,
a criar um partido ultraortodoxo.

A política de reforma do estado de bem-estar social levada a cabo – também pelos governos trabalhistas –
tornou o Shas uma alternativa de oferta de serviços que antes eram da responsabilidade do Estado, fortalecendo sua capacidade de recrutamento e conversão.

O Shas é, portanto, um fenõmeno muito interessante que revela os limites do modelo de sociedade idealizado pelos fundadores do Estado e é um bom observatório para se pensar as novas tendências da sociedade israelense.

 
Bila Sorj é professora do Departamento de Sociologia da UFRJ e organizadora, com Guila Flint, de ‘Israel
Terra em Transe: Democracia ou Teocracia’, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

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