Durban, Onze de Setembro e as Guerras da Globalização

s2508

Um diálogo entre Luis Nassif e Moisés Storch

 

Os terroristas e a paz global

Luís Nassif     [ Folha de São Paulo – 15/09/2001

Em momentos de paroxismo -como o que cerca os atentados nos EUA- a mídia passa a desempenhar papel fundamental na busca do bom senso e de soluções. Não pode ser unicamente o canal para catarses de lado a lado, para manifestações de indignação que se limitem a botar mais lenha na fogueira.

Tem-se uma realidade clara a tratar. Há um mundo globalizado que necessita de regras claras e duradouras de convivência. Não é possível imaginar esse mundo sem a presença americana. E o atentado ao WTC deixou claro que é impossível a convivência global sem políticas de integração dos excluídos e de correção das injustiças globais. A discussão tem que convergir para isso: que ações deverão ser feitas para atingir o equilíbrio global. Esse é o ponto focal, que vem sendo atrapalhado por um radicalismo marqueteiro sem sentido.

O primeiro inimigo a combater é esse clima de catastrofismo, em que até a Terceira Guerra Mundial foi invocada. Terceira Guerra contra quem? Contra grupos terroristas incrustados em vários países? Há uma guerra em curso, sim, e quem tiver olhos menos catastrofistas observará que os atentados ocorridos tiveram o condão de despertar uma solidariedade global jamais vista em episódios políticos. Houve coesão ímpar de Estados nacionais contra um inimigo comum: o terror.

A grande discussão é como usar essa confluência de forças para criar uma nova ordem mundial, e não para um revanchismo sem sentido. E aí entra a abolição de toda forma de radicalismo tolo que sempre impera nos momentos de paroxismo e das discussões inúteis.

A primeira discussão inútil é esse permanente acerto de contas com o passado. Não há nada que atravanque mais a construção do futuro do que o permanente acerto de contas com o passado. Sou contra toda forma de discriminação, adoro a cultura negra, convivo em muitos ambientes com maioria negra, sou branco de origem e não tenho nenhuma responsabilidade sobre o que meus antepassados fizeram séculos atrás. O combate à discriminação é um valor universal, não uma forma de aplacar culpas.

Essas culpas eternas impedem qualquer ato racional de aproximação, integração e desarmamento de espíritos.

Isso vale também para o momento atual. São vítimas da doença juvenil do radicalismo tanto os que celebram o atentado como uma punição aos EUA quanto os que advogam a total liberdade para os EUA praticarem a retaliação que bem entenderem, por terem sido vítimas de um ato sórdido.

Momentos como esse exigem reflexão para obter o único ganho que esses episódios permitem: lições. Para a discussão ganhar um mínimo de objetividade, seria importante fixar alguns paradigmas intocáveis:

1) o terrorismo, qualquer que seja sua motivação, é crime contra a humanidade. Não há nada que possa justificar um ato terrorista;

2) qualquer ataque indiscriminado a países islâmicos conferirá um novo fôlego ao terrorismo. Ou alguém julga que terroristas que praticam o suicídio em nome de Alá vão se intimidar com ataques? Vão se considerar mais predestinados ainda;

3) para combater o terrorismo, há que entender o que o legitima. Na raiz de grande parte do terrorismo político, existem conflitos políticos e regionais não resolvidos, existem povos injustiçados sem canal para expressar suas reivindicações. Crie-se esse canal e se tirará do terrorismo a legitimidade que detém em algumas comunidades;

4) é impossível pensar em um mundo sem os EUA, assim como é impossível pensar na paz americana sem a paz mundial. Esse episódio deverá ensinar aos americanos a assumir suas responsabilidades nas grandes conferências mundiais, mas também aos ditos povos oprimidos a não discriminar os americanos, como ocorreu na recente conferência sobre racismo;

5) é hora de fortalecer ou criar novas instituições internacionais, que comecem efetivamente a mediar os grandes conflitos regionais. Odireito dos israelenses e dos palestinos à sua própria terra virou definitivamente uma questão da humanidade.


 Durban e o Onze de Setembro

[ From: Moises Storch To: Luís Nassif Sent: Thursday, September 13, 2001 5:29 PM ]

Prezado Nassif, 

Dentro de toda a estupefação com que fomos tomados pela tragédia da terça feira nos Estados Unidos, você mais uma vez surpreende com sua serena e arguta sensibilidade em temas não diretamente relacionados ao jornalismo econômico, no qual é mestre.

Frente ao inimaginável crime, você condena veementemente o terrorismo, a ponto de pedir a pena de morte para os criminosos (endosso sua opinião, partilhando do que ela significa, partindo de um defensor intransigente dos direitos humanos, que você sempre foi).

E  não se deixou tomar por um emocionalismo que tende a turvar a razão, trazendo uma análise geopolítica abrangente e muito rica que, deixa bem claro, não é uma justificativa para o crime, mas nos ajuda a compreender como ISSO pôde acontecer.

No entanto, na sua lúcida análise me parecem faltar alguns ingredientes, sem os quais não poderiamos explicar o porquê de um ataque tão meticulosamente planejado ter-se realizado neste 11 de setembro, imediatamente após a Conferência de Durban.

Não posso crer que uma ação mortífera com tal nível de sofisticação técnica, só comparável em precisão com a máquina de extermínio nazista, possa ter sido detonada numa data escolhida ao acaso. Ao contrário, penso que os dois fatos têm clara conexão e fazem parte de um mesmo momento que ficará gravado como um dos mais terríveis da História moderna.

Assistimos em Durban, há poucos dias, menos uma reunião de ONGs e países em busca de consensos para combater o racismo, a intolerância e a xenofobia, mas, muito mais, o triste espetáculo da tentativa por setores extremistas de semear ali o próprio racismo e a intolerância, ao formarem uma frente com o objetivo de satanizar os norte-americanos como o bode expiatório para todos os males do planeta, e procurando impingir ao Estado judaico-israelense o rótulo de racista, como se com isso fossem beneficiar a justa luta do povo árabe-palestino pela auto-determinação.

A polarização gerada em Durban, com relação a Israel e ao sionismo (acompanhadas de inúmeras demonstrações de racismo anti-judaico), e a panfletária incitação contra a única potência hegemônica mundial da atualidade, foram uma ducha fria nos amantes da Paz e nos humanistas que esperavam de Durban resoluções concretas que contribuíssem para dimiuir as injustiças sociais do planeta, o racismo e a intolerância.

Os fascínoras que planejaram, provavelmente por vários meses, o ataque terrorista devem ter visto, na polarização panfletária de Durban, alguma legitimação popular para atacar o “Grande Satâ” norte-americano.

No caso do conflito israelense-palestino, que talvez não esteja ligado à tragédia de Nova York, mas que certamente contaminou a Conferência de Durban, o diálogo deve passar necessariamente pela mútua aceitação dos direitos nacionais judaico-israelenses (o sionismo) e dos direitos nacionais do povo árabe-palestino, tema que, a custa de inúmeras guerras e o sacrifício pessoal de insubstituíveis estadistas do porte de Anwar Sadat e Itzchak Rabin, já tinha recebido o construtivo consenso da comunidade internacionale de Israel em 1947, do Egito e da Jordânia, e mais recentemente, do próprio povo palestino, legitimamente representado por Arafat em Oslo.

Não existe solução militar do conflito entre israelenses e palestinos. A Paz Justa e duradoura só será possível pelo diálogo sereno que levará à existência de dois Estados naquele pequeno pedaço de terra.

O sionismo não é nem mais nem menos legítimo do que o movimento de libertação nacional palestino. Ambos terão que se reconhecer e conviver, lado-a-lado.

A paz no Oriente Médio é possível, mas Durban foi um retrocesso lamentável neste processo. Judeus e árabes não são inimigos. Aqui no Brasil somos amigos e parceiros. Lá no Oriente Médio, mais dia, menos dia, oxalá sem mais sacrifícios humanos, descobrirão que podem e devem voltar a viver como povos irmãos.

Os inimigos são os intolerantes e fanáticos, independentemente de sua cor, raça ou religião. São uma minoria, que deve ser combatida sem tréguas ou condescendência, em cada lugar do planeta, por todos que respeitamos cada vida humana como única, sagrada e insubstituível.

Caro Nassif, estou procurando aprofundar o lúcido diagnóstico que você traçou. E ofereço também uma tentativa de remédio e esperança para que não tenhamos mais que assistir a essa desgraça.

Precisamos investir, decididamente, numa Educação para a Paz – que neutralize a manipulação de massas pelo fanatismo. Devemos promover um boicote internacional a qualquer governo ou entidade que seja condescendente com o terrorismo e o preconceito. Os conflitos devem ser resolvidos através do diálogo, que existe e deve ser valorizado.

Um abraço forte de seu leitor

Moisés Storch – S.Paulo

[ e-mail enviado a Luis Nassif em 13/09/2011 ]


As guerras da globalização

Luís Nassif [ Folha de São Paulo – 18/09/2001 ]

Preliminarmente, ressalte-se que terrorismo é a mais abjeta forma de atuação, especialmente quando atinge a população civil. A pena de morte deveria ser estendida a todos os que praticam tal forma de crime, de grupos terroristas ao terrorismo de Estado.

A primeira observação é que o final da Guerra Fria acarretou inúmeras alterações no plano dos grandes conflitos internacionais. Em seu período, o equilíbrio sob armas, garantido pela ex-URSS, proporcionava recursos e armamentos para circunscrever as guerras no seu âmbito regional.

Com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos assumiram o papel de maior potência do mundo, mas sua diplomacia continuou inapelavelmente presa ao passado das canhoneiras, impondo seu ponto de vista. Se ocorresse o mesmo com o Brasil de FHC, se atribuiria esse tipo de atitude ao “caipirismo brasileiro”.

O grande porrete

Essa posição se manifestou não apenas no profundo desprezo com que os EUA trataram de temas fundamentais para o bom relacionamento global como a recusa a assinar o Protocolo de Kyoto, a saída do acordo de limitação de armas leves, o aumento do protecionismo agrícola, a resistência a acordos internacionais de limitação à proliferação de mísseis, o enfraquecimento da ONU.

Mas também na maneira como o país se comportou em relação a velhos aliados dos tempos da Guerra Fria, como Israel. Ou seja, como nação mais poderosa do mundo, teria que se transformar em árbitro para legitimar sua atuação. Continua atuando como se a Guerra Fria continuasse.

Aí entra em cena outro componente essencial, que é o complexo empresarial-militar formado ao longo de décadas de Guerra Fria. A sobrevida de seus interesses depende da manutenção de conflitos externos. Anos atrás houve a pantomima da Guerra do Golfo, cujo exército era apresentado como o quinto mais poderoso do mundo, uma piada que fez a imprensa americana parecer com alguns de seus vizinhos do Sul, que encampam sempre a primeira versão. Nesse quadro, poderia haver normas rígidas am aeroportos e tudo o mais, mas os serviços de inteligência continuavam ligados à velha concepção de Guerra Fria.

As novas tecnologias

E aí se entra na parte mais perigosa do jogo. A partir do momento em que deixaram de ter a retaguarda de governos nacionais, os terroristas conseguiram adeptos para sua atuação urbana. Com a diplomacia internacional dominada pelos EUA e sem nenhuma chance de ter suas pretensões acolhidas, como se faz?

Veja bem, não se está em absoluto defendendo esses assassinos, mas explicando o cadinho que fermenta seu poder. Mais que isso, os grupos de terrorismo e de contravenção tornaram-se organizações internacionais, e o fim da Guerra Fria permitiu a disseminação pelo mercado de um comércio bélico dos mais perigos.

No ano passado, traficantes colombianos foram flagrados quando se preparam para dominar completamente o ciclo do submarino atômico. Por ocasião da implosão da ex-URSS, eu, particularmente, perdi algumas noites de sono imaginando o que poderia ocorrer com o arsenal atômico dos ex-soviéticos.

O atrevimento dos terroristas demonstrou condições de logística e de planejamento à altura de uma operação atômica. Parecia bandido de filme de 007, conseguindo até colocar explosivos internamente, naquele que era considerado o mais seguro edifício do mundo.

Era de incertezas

O que vem por aí? Vai chegar o momento em que todos os países cairão em si de que a única saída para combater esses homicidas será avançar definitivamente na busca da concórdia mundial. Passado o impacto inicial, o americano médio se dará conta de que a arrogância de sua diplomacia em outras partes do mundo coloca diretamente em risco a sua paz e segurança internas.

No curto prazo, é de esperar o de sempre: a pressão da opinião pública americana exigindo ações imediatas e a lei de Talião se impondo, com o bombardeio de aldeias matando a população civil. Até que o bom senso se instaure, seguramente esse homicídio terrorista ajudará a fortalecer os sentimentos nacionalistas americanos, dificultando qualquer ação diplomática pacificadora. 

[ Publicado na Folha de São Paulo  em 12/09/2011  ]

Comentários estão fechados.