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Segundo o Corão, foi terça-feira que Alá criou as trevas. No dia 11 de setembro, quando pilotos suicidas lançaram aviões de carreira americanos contra pontos arquitetônicos significativos, não precisei afastar os olhos da televisão e procurar um calendário para saber que dia era: a Terça-Feira das Trevas tinha lançado sua sombra sobre Manhattan e ao longo do rio Potomac.
Tampouco me surpreendi ao saber que, apesar dos aproximados US$ 7 trilhões que gastamos desde 1950 naquilo que é eufemisticamente descrito como nossa “defesa”, nenhum aviso antecipado foi dado pelo FBI, pela CIA, pela Agência de Inteligência de Defesa ou por qualquer outro organismo, e que nenhum caça americano se ergueu à altura da ocasião, a não ser que, como dizem os boatos, caças americanos tenham abatido a aeronave que se chocou com o Pentágono e a que caiu perto de Pittsburgh.
Embora nosso governo tenha por hábito atribuir a culpa às pessoas erradas, a impressão que se teve é que, desta vez, tinha acertado, pelo menos em parte: o bilionário saudita, educado em Harvard e ocasional residente no Afeganistão Osama bin Laden passara a perna em nós. Enquanto os seguidores de Bush se atropelavam para preparar a que seria a antepenúltima das guerras – mísseis lançados pela Coréia do Norte e claramente marcados com bandeiras desse país choveriam sobre Portland, Oregon, mas seriam interceptados pelos balões de nosso escudo antimísseis -, o astuto Bin Laden sabia que só precisava de pilotos dispostos a cometer suicídio e matar os passageiros que por acaso estivessem a bordo dos aviões comerciais que sequestrariam. Assim, algo de novo realmente aconteceu sob o sol da Terça-Feira Negra.
Minha irmã, que vive em Washington, tinha uma amiga que estava a bordo de um daqueles aviões. Sem perder a calma, a amiga ligou para seu marido no celular. “Fomos sequestrados”, informou. Em seguida, passou a descrever seus últimos minutos de vida, enquanto o avião se atirava contra o quinto lado do Pentágono. Era o aniversário do marido. Sempre tivemos civis sábios e corajosos. São os militares, os políticos e a imprensa que nos deixam preocupados. Afinal, não nos deparamos com bombardeiros suicidas desde os camicases, como os chamávamos no Pacífico na época em que eu era soldado na Segunda Guerra Mundial. Naquela época, nosso inimigo era o Japão. Hoje, temos Bin Laden, os muçulmanos, os paquistaneses…
O telefone não pára de tocar. Moro ao sul de Nápoles, na Itália. Editores, televisões e rádios italianas querem comentários. Eu também quero. Recentemente escrevi sobre Pearl Harbor. Agora me fazem a mesma pergunta, repetidas vezes: o que aconteceu não foi exatamente como a manhã do domingo 7 de dezembro de 1941? Não, não foi. Não tivemos aviso prévio do ataque da terça-feira passada – pelo que estamos sabendo até agora. Nosso governo tem muitos e muitos segredos dos quais nossos inimigos sempre parecem ter conhecimento de antemão, mas dos quais nós mesmos só ficamos sabendo anos mais tarde. O presidente Roosevelt provocou os japoneses para que nos atacassem em Pearl Harbor. No livro “A Era Dourada”, eu descrevo os vários passos que ele seguiu para isso. Hoje, sabemos o que ele tinha em mente: sair em socorro da Inglaterra para combater o aliado do Japão, Hitler. Mas o que será que Bin Laden tinha -ou tem- em mente?
Há várias décadas vem ocorrendo na mídia americana um processo implacável de satanização do mundo muçulmano. Como sou um americano leal, não posso lhe dizer por que isso vem acontecendo – mas o fato é que não temos o hábito de analisar por que qualquer coisa acontece, a não ser que seja para atribuir a outros a culpa por nossos erros. Num mundo em que o demônio está constantemente à espreita, andando para cima e para baixo e nos atormentando por sermos tão bondosos, nossa imprensa quer que acreditemos que Bin Laden é simplesmente mais uma manifestação do mal puro e simples, de modo que somos obrigados a invocar a cláusula cinco da Otan e detonar todos os diabos que lhe deram abrigo, para ensinar a eles a única lição que nós mesmos jamais aprendemos: que na história, assim como na física, não existe ação sem reação.
A administração Bush, embora se mostre estranhamente inepta em tudo menos em sua tarefa principal, que é isentar os ricos de pagar impostos, vem casualmente rasgando os tratados subscritos pelos países civilizados, coisas como o Protocolo de Kyoto ou o acordo sobre mísseis nucleares que tínhamos com a Rússia. Enquanto os bushitas levam adiante seu saqueio implacável do Tesouro e da Seguridade Social (um fundo cujos recursos são supostamente intocáveis), eles vêm deixando o FBI e a CIA ou fazer o que bem entendem ou não fazer absolutamente nada – um pouco como o Mágico de Oz fazendo seus engraçados truques de mágica de faz-de-conta, enquanto torce para que ninguém descubra que é tudo de mentirinha.
Para sermos justos, não podemos pôr toda a culpa de nossa incoerência no Ser Oval atual. Embora seus antecessores, de modo geral, tenham tido QIs mais altos do que o dele, também eles trabalharam assiduamente para o 1% da população que é dona do país, enquanto deixavam todo o resto se virar sozinhos. Bill Clinton foi especialmente culpado. Embora tenha sido de longe o presidente mais hábil desde Franklin Delano Roosevelt, Clinton, em sua busca frenética por vitórias eleitorais, armou o gatilho do Estado policial que seu sucessor deve, neste exato momento em que escrevo, estar se preparando para apertar.
Estado policial? Como assim? Em abril de 1996, um ano depois do atentado de Oklahoma, o presidente Clinton aprovou a lei antiterrorismo, uma chamada “lei de conferência”, para a qual contribuíram muitas mãos bastante sujas, incluindo as do líder da maioria no Senado, Bob Dole, que foi o co-patrocinador dela. Embora Clinton tenha feito muitas coisas desavisadas e oportunistas para vencer eleições, ele raramente disse alguma coisa desavisada. Sua legislação sobre o terrorismo autoriza o secretário de Justiça a utilizar as Forças Armadas contra a população civil, com isso anulando a lei Posse Comitatus, de 1878, que proibiu para sempre o uso da força militar contra nossa população. O habeas corpus, cerne da liberdade anglo-americana, também pode ser suspenso se for considerado que há um terrorista entre nós. Irritado com as críticas expressas por grupos e indivíduos apegados à Constituição, Clinton denunciou seus críticos como sendo “pouco patrióticos”. Depois, envolto na bandeira nacional, falou do trono: “Não há nada de patriótico em fazer de conta que se pode amar o país, mas desprezar seu presidente”. É uma afirmação estarrecedora, já que pode ser aplicada a toda a população, em algum momento ou outro. Em outras palavras, seria pouco patriótico o alemão que tivesse dito que odiava a ditadura nazista?
A Terça-Feira Negra já está impondo tensão considerável à nossa sociedade cada vez mais militarizada. Na década de 1970, o FBI se reinventou: de um corpo de “generalistas” treinados em direito e contabilidade e vestindo terno, gravata e camisa branca (por surpreendente que possa ser, J. Edgar Hoover seguia a linha civil), transformou-se num exército de guerreiros da linha “Armas e Táticas Especiais” (também conhecidos como SWAT), que gostam de vestir uniformes de camuflagem, roupas pretas de ninja e, dependendo da tarefa, máscaras de esqui. No início dos anos 80 foi formada uma superequipe SWAT do FBI, a Equipe 270 de Resgate de Reféns. Como tão frequentemente acontece nos Estados Unidos, esse grupo se especializava, não em libertar reféns ou salvar vidas, mas em lançar ataques assassinos contra grupos que não aprovava, muitas vezes por serem excessivamente independentes, como foi o caso da seita religiosa Ramo Davidiano – cristãos evangélicos que viviam pacificamente em seu complexo próprio em Waco, Texas, até que uma equipe SWAT do FBI, equipada com tanques ilegais do exército, matou 82 deles, incluindo 25 crianças. Isso aconteceu em 1993.
Agora, desde a terça-feira passada, as equipes SWAT já poderão ser usadas para perseguir árabes-americanos suspeitos ou, na realidade, qualquer pessoa que possa ser culpada de terrorismo, um termo que não tem definição legal (como se pode combater o terrorismo suspendendo o habeas corpus, se aqueles que querem ter seus corpus libertados da prisão já se encontram presos?). Mas, no clima de trauma pós-Oklahoma, Clinton disse que aqueles que não estavam a favor de sua legislação draconiana eram conspiradores aliados aos terroristas, interessados em transformar a América “num lugar seguro para terroristas”. Se Clinton, que tinha a cabeça tão fria, foi capaz de se enfurecer a tal ponto, o que podemos esperar do superesquentado Bush, depois da terça passada?
Embora a população americana não tenha meios diretos de influir sobre seu governo, suas opiniões de vez em quando são colhidas por meio de amostras, em sondagens de opinião. De acordo com uma sondagem da CNN e da “Time” de 1995, 55% dos americanos acreditam que “o governo federal se tornou tão poderoso que ameaça os direitos dos cidadãos”.
O “The New York Times” é o principal veiculador das opiniões recebidas do empresariado americano, e, além disso, é um barômetro mais preciso dos estados de ânimo de nossos governantes do que, digamos, o “The Wall Street Journal”, que sofre de deficiência editorial. Mesmo assim, todos as colunas de editorial publicadas pelo “NYT” desde 12 de setembro têm errado o alvo, por pouco. Desconfio que a cobertura da televisão já nos tenha deixado esgotados a todos nós, menos o sensato conservador que é Anthony Lewis. Aquelas imagens de fogo e explosão teimam em se reformar diante de nossos olhos, mesmo quando não há um tubo catódico por perto para transmiti-las.
Sob o cabeçalho “Exigências da Liderança”, o “NYT” se mostra otimista, por assim dizer. Tudo vai sair bem se o senhor trabalhar duro e não deixar sua atenção se desviar da bola, senhor presidente. Aparentemente Bush “está enfrentando múltiplos desafios, mas sua tarefa mais importante é uma simples questão de liderança”. Graças a Deus. Não apenas só é preciso liderança, como isso é simples ao extremo. Por um instante eu tinha chegado a temer…
Em seguida o “NYT” fala das coisas da maneira como se apresentam, em oposição a como deveriam se apresentar. “A administração passou boa parte do dia de ontem tentando superar a impressão de que Bush teria manifestado fraqueza quando deixou de retornar a Washington após o ataque terrorista”. Mas, pelo que pude perceber, ninguém se preocupou muito com isso. A maioria de nós se sentiu até um pouco mais segura com Bush em seu bunker em Nebraska.
O “NYT” tranquiliza Bush, dizendo que ele não será forçado a aceitar democratas em seu gabinete, como fizeram alguns presidentes em tempos de guerra – e pronto. Aí está. Simplesmente atirado ali no meio, como que por acaso. “Em tempos de guerra”. Pacientemente, o jornal põe os pingos nos is, para Bush e para nós. “Nos próximos dias, é possível que Bush peça à nação que dê seu respaldo a ações militares que muitos cidadãos poderão achar alarmantes. Ele precisará mostrar que sabe o que está fazendo.” Assim fica fácil. Pena que FDR não recebeu cartas desse tipo de Arthur Krock, do velho “NYT”.
“Aliados contra o Terror” é o próximo editorial com título. Aparentemente, precisamos de aliados. “Como seu pai na Guerra do Golfo, ele terá que construir uma coalizão de nações dispostas a agir.” Ótimo conselho. Ele também deve encontrar um jeito de fazer com que esses aliados paguem por uma guerra que será travada pelo bem da Humanidade Inteira. Bush, pai, teve trabalho para convencer outros a ajudar a pagar a conta de sua guerra da CNN. Os japoneses tiveram a ousadia de reclamar da taxa de câmbio. Azar deles – basta ver o que aconteceu com o iene.
Quando a semana chegou o fim, paquistaneses de cabelos tingidos e olhos furtivos já estavam sendo interrogados pela CNN porque, de maneira ameaçadora, o Paquistão hoje atua como patrono extra-oficial do Taleban. “Acredita-se que o Taleban dá guarida ao mais perigoso terrorista internacional, Osama bin Laden.” Foi preciso muita coragem para publicar isso, “NYT”. Mas parece que se encaixa bem com o que vocês andam repetindo. “Washington deixou claro ontem que sua paciência com o Paquistão está se esgotando rapidamente.” Coitado do Paquistão. Eu é que não gostaria de estar em seu lugar.
Próximo editorial: “A Defesa Nacional”. “A luta contra o terror precisa se deslocar da periferia para o centro do planejamento e das operações de segurança nacional americanas. Ninguém está sugerindo que isso seja tarefa fácil ou que custe pouco, mas, com os quase US$ 30 bilhões que Washington gasta com espionagem, o país deveria saber mais sobre as redes do terror e suas conspirações. Se mais dinheiro puder ser investido com finalidades úteis…” “Os americanos precisam repensar como proteger o país sem abrir mão dos direitos e dos privilégios da sociedade livre que defendemos.” Verdade, verdade.
“Terceira Guerra Mundial”, de Thomas L. Friedman, é otimista. Friedman é muito jovem e ainda não viveu sua guerra. Mas, pensando bem, com a exceção de Colin Powell e dois ou três senadores, os membros da administração e os parlamentares, apesar de todos serem adeptos da retórica militar, são pessoas que só ficaram em casa. A região que Friedman cobre é o Oriente Médio, e muitas vezes o que ele escreve sobre o assunto é interessante. Das vozes erguidas no “NYT” na quinta-feira, apenas ele sugere que “o apoio que damos a Israel” desagrada aos árabes, mas, logo depois, ele passa a falar do ódio inato que os árabes nutrem por nossa hegemonia.
De repente, de maneira desconcertante, ele berra: “Será que meu país realmente compreende que esta será a Terceira Guerra Mundial?”. A pergunta não é meramente retórica. “As pessoas que planejaram os atentados da terça-feira conjugaram alto grau de maldade com alto grau de gênio, com efeitos devastadores. E, a não ser que estejamos prontos para colocar nossas melhores cabeças para trabalhar para combatê-las – o projeto Manhattan da Terceira Guerra Mundial -, de maneia igualmente ousada, implacável e pouco convencional, vamos ter problemas sérios.” É a receita certa para mais problemas.
A coluna “O Novo Dia da Infâmia”, de William Safire, prevê que “o próximo ataque provavelmente não será conduzido com um avião sequestrado, eventualidade contra a qual, tarde demais, vamos nos precaver. É mais provável que seja um míssil nuclear comprado por terroristas ou um barril de germes mortíferos.” Finalmente, Anthony Lewis acha de bom aviso deixar de lado o unilateralismo de Bush para cooperar com outros países, para conter as trevas da terça-feira com a compreensão de suas origens, ao mesmo tempo em que deixamos de lançar provocações contra uma cultura que se opõe a nós e nossos arranjos. Lewis – coisa incomum para um colunista do “The New York Times”- defende a paz agora. Eu também. Mas a verdade é que ele e eu somos velhos e já estivemos lá. Valorizamos nossas liberdades, que estão desaparecendo em ritmo acelerado – à diferença dos patriotas exacerbados que andam batendo seus tambores na Times Square, conclamando todos para uma guerra total a ser travada pela América.
O norte-americano Gore Vidal, 75, é romancista e ensaísta e um dos principais intelectuais dos EUA. Seu último romance publicado no Brasil é “A Era Dourada”