DE OE PARA OZ
“Seu discurso resiste ao silêncio”
Caro Amós Oz,
Sua resposta me deu a sensação de estar dialogando frente a frente com o senhor. É um diálogo intercalado de momentos de silêncio, não alheio à dor e à tristeza, mas durante os quais surgem sorrisos sempre que os olhos dos interlocutores se encontram.
Depois da Segunda Guerra Mundial foram reatados os laços do Japão com a cultura ocidental. Na época eu ainda era criança, mas desde então adotei o hábito de identificar os atos e discursos de profetas e apóstolos sempre que deparo com nomes bíblicos. Esse hábito permanece comigo.
Quando tomei contato com seu livro, achei seu nome idêntico ao do escritor nigeriano Tutuola, autor do soberbo “Minha Vida na Floresta dos Fantasmas” (“My Life in the Bush of Ghosts”), e lembrei-me das palavras do profeta Amós: “Portanto os prudentes guardarão silêncio nessa época, porque será uma época maligna”.
Nenhum de nós está vivendo uma boa época, mas o senhor tem se pronunciado, em vez de manter silêncio. O estilo de seu discurso, porém, é honesto e engenhosamente elaborado. Resiste ao silêncio absoluto, no entanto encerra até mesmo o silêncio inevitavelmente gerado pelo discurso humano. Como seu leitor, que percebe em suas palavras críticas a mim, às vezes sou levado a ficar em silêncio e a meditar dolorosamente, mas me descontraio e suspiro aliviado quando encontro o humor em seus textos. Sei que isso só é possível quando me sento frente a frente com uma pessoa basicamente tolerante.
Depois de viver Hiroshima, os japoneses perderam o encanto por qualquer tipo de armamento; por sua vez, os judeus, depois de viver Auschwitz, despertaram da ilusão de que poderiam viver sem armas. Ao ouvi-lo dizer isso, reduzo-me ao silêncio.
Como legado de Hiroshima, os japoneses certamente desconfiam das armas nucleares e as rejeitam. Por outro lado, podem facilmente sentir atração pelos encantos das armas comuns. O Exército de Autodefesa do Japão tem adquirido as mais modernas armas em larga escala, e o Japão tem o tratado militar com os Estados Unidos como protetor nuclear.
Continua existindo séria polêmica sobre as bases militares em Okinawa, a ilha mais meridional do arquipélago japonês. Todos sabem que a única solução será abolir o Tratado Militar Nipo-Americano e estabelecer uma nova ordem de paz no nordeste da Ásia. No entanto, nem o governo japonês nem os partidos de oposição, com exceção do Partido Comunista, nem a maioria da população desejam se manifestar. Os japoneses parecem enfeitiçados pela idéia de que estão protegidos pelo tratado militar.
Essas circunstâncias causam meu interesse por suas atividades em defesa do desarmamento como parte de uma paz abrangente no Oriente Médio. Uma coisa é ter em mente que há um longo caminho a percorrer; outra bem diferente é desistir desde o início. O Japão se envolveu na Guerra do Golfo contribuindo com uma enorme quantia para as despesas de guerra, o que foi extravagante diante das atuais dificuldades econômicas do país. Mas o cumprimento da responsabilidade econômica sem enviar forças militares foi motivo de desprezo pelo mundo inteiro.
Eu aprecio a atitude do Japão de respeitar os limites da Constituição japonesa. A lição da Guerra do Golfo, porém, teve como consequência uma nova diretriz na cooperação militar nipo-americana, a de que, em caso de uma nova Guerra do Golfo ou de uma ação bélica iniciada pelos EUA, o Japão não poderá agir dessa forma.
Escrevi isso para explicar os motivos pelos quais só posso silenciar quando o senhor diz que os japoneses despertaram da ilusão sobre as forças militares. Temo que minhas palavras soem estranhas para o senhor. Israel não participou da Guerra do Golfo, mas Saddam Hussein o atacou com mísseis balísticos. Acontece que não estavam armados com ogivas biológicas ou químicas.
O senhor explica isso dizendo que Saddam Hussein tinha consciência de que a capacidade nuclear israelense era “mais que um mero boato”. Mais uma vez não encontro palavras para responder a isso. Quanto ao sistema de defesa nuclear, seja no conjunto ou em seus detalhes, os que controlam as armas nucleares só podem ser coesos na medida em que elas não sejam realmente utilizadas.
O sistema é uma ficção tão grande e disfarçada, com milhões de participantes, que os escritores da segunda metade do século 20 jamais conseguiram produzir algo comparável. E se as armas nucleares realmente forem usadas -sejam os mísseis estratégicos que os americanos e chineses poderiam não mais apontar uns contra os outros, ou algumas das bombas atômicas israelenses? A coesão do reino das armas nucleares deste planeta não começaria a desmoronar?
Essas já eram minhas preocupações antes de vir à tona o armamento nuclear do Paquistão. O senhor poderá achar que o que estou dizendo é amadorístico e redundante. De tempos em tempos o senhor foi obrigado a mergulhar profundamente em reflexão e num silêncio impotente, devido a circunstâncias incontornáveis.
Prezado Amós Oz, o senhor acha que pode haver lugar para sorrisos de tolerância ou de humor no silêncio recíproco engendrado por nossos diálogos epistolares? Não é essa uma questão urgente hoje? Eu pessoalmente chego confiantemente à conclusão de que existe lugar para isso, porque é um exemplo da melhor herança cultural da humanidade que conseguiu sobreviver às piores épocas da história.
Foi num seminário de que participaram o Dalai Lama e cristãos americanos que redescobri o significado positivo do silêncio que invade os diálogos. No último meio século, o Dalai Lama viveu as piores dificuldades, no entanto sempre demonstrou um grande sentido de colaboração entre diferentes crenças religiosas. Ele é um dos melhores exemplos do homem do século 20. Além disso, sua maneira de falar é cheia de humor. Acredito que ele esteja o mais distante do tipo de fanatismo que o senhor detesta acima de qualquer coisa.
O que eu gostaria de perguntar é: não poderia haver uma conferência da qual participassem e dialogassem delegados das diversas religiões do mundo?
Os participantes teriam permissão para frequentes momentos de silêncio (o melhor seria escolher pessoas dotadas do maior humor possível, sejam elas religiosas, não-religiosas ou líderes políticos). Na conferência, apesar dos momentos de silêncio, elas serão gradualmente conectadas e unidas por sorrisos de tolerância. Tanto antes como depois da conferência, deveria haver janelas da Internet abertas em escala sem precedentes para receber as opiniões de pessoas do mundo todo.
O local da primeira conferência deveria ser o Japão ou Israel. Neste último caso, também deveria ser aberta aos palestinos. E deveria ser incentivada a cooperação de todos os judeus não nascidos em Israel que estão espalhados pelo mundo inteiro.
O outro motivo é o seguinte. Minha definição do Japão como país “ambíguo” foi criticada em diversos setores. No entanto, prevejo que no futuro o Japão continuará “ambíguo”. Desde que consiga superar a atual crise econômica, possivelmente se tornará o país mais tolerante no nordeste da Ásia, caso queira.
Por outro lado, também poderá se tornar um Estado fanático, à altura dos Estados intolerantes de fato. Me pergunto se Israel também não seria um país “ambíguo” no Oriente Médio. Na juventude, certa vez ouvi dizer que W.H. Auden se recusou a dar palestras no Japão, alegando que não haveria um assento de toalete do tamanho de seu “traseiro”. Isso me insultou. Assim mesmo, fui admirador de Auden durante toda a vida, e dele emprestei uma frase para o título de meu romance “Teach Us to Outgrow Our Madness” (“Ensine-nos a Superar Nossa Loucura”).
Até hoje, caro Amós Oz, o senhor foi a única pessoa que me deu uma resposta para isso. Concordo totalmente com o senhor que o meio para superar nossa loucura reside na capacidade de rir e imaginar, no relativismo, no compromisso (que, como o senhor diz, “é sinônimo de vida”), na oposição a todo tipo de fanatismo etc. A estes eu gostaria de acrescentar a oração, tanto para os crentes religiosos como não-crentes (entre os quais me incluo) -a oração por um futuro melhor.
Sinceramente seu,
Kenzaburo Oe
O autor recebeu o Prômio Nobel de Literatura em 1994
[ Publicado na Folha de S. Paulo em 10/01/1999 ]