A Linha de Demarcação
A verdade, para Buber, não era utópica nem ingênua. Estava consciente de que não vivemos no paraíso, onde o lobo habita junto à ovelha, que não é possível no nosso mundo realizar justiça plena na vida, e que estamos, por vezes, forçados a fazer injustiças. Mas advertiu, porém, a não se fazer mais injustiça do que a nossa existência exige e a interpretar o “impulso de poder” como um “impulso de vida”. Enfatiza que, caso as circunstâncias nos forcem a transgredir os mandamentos divinos, o deveremos fazer não com alegria, mas sim com tormentos de consciência. A luta desesperada de Israel para sobreviver no Médio Oriente faz a linha de demarcação de Buber especialmente compulsória.
Em consideração às contradições dos dois movimentos nacionais, Buber disse que seria a nossa obrigação entender as exigências árabes, também quando estivessem opostas aos nossos próprios objetivos. Deveríamos nos esforçar para sintonizar ambas as reivindicações. Aí, onde existirem fé e amor, se encontrará finalmente uma solução que se baseia em compromissos.
A realização do programa sionista, segundo o pensamento de Buber, estaria inevitavelmente ligada a certa medida de injustiça com os árabes domiciliados ali. Mas, tinha a visão de reduzir esse mal tanto quanto possível pelo convívio judeu-árabe. Buber sofria no dilema entre a necessidade de salvar os sobreviventes do Holocausto e a obrigação moral de reduzir a desgraça dos árabes. Por isso, exigia do governo sionista fixar limites que não poderiam ser transgredidos.
O estado judeu não se deveria desenvolver a custa dos palestinos, nem pelo deslocamento deles. Buber nos lembrou de que não deveríamos voltar à terra dos nossos pais para expropriar ou dominar um outro povo. Apesar de todas as dificuldades, Buber exigia de ambos os lados abrir um caminho comum. À aplicação de violência pelo lado árabe, Buber externou que mesmo, quando ‘homo homini lupus est’, não nos deveríamos associar à alcatéia de lobos.
Apesar da condenação constante ao uso de violência por judeus (que, na maioria dos casos, era lançada como reação ao terror árabe), ele não era um pacifista radical. Acreditava que existiam circunstâncias, nas quais estamos forçados a usar a força. Ironicamente, a sua primeira tarefa na Palestina consistiu em responder a um pronunciamento anti-sionista de Mahatma Gandhi, o líder indiano da resistência não-violenta. Na sua revista semanal “Harijan”, Gandhi aconselhou os judeus a não se mudarem para a Palestina, mas que ficassem na Alemanha sob o domínio nazista e realizassem o ato do “satyagraha” (perseverar na verdade), ou seja, realizar resistência não-violenta até à morte…
Em “Uma Carta a Gandhi”, um dos grandes documentos sionistas, Buber escreve entre outras coisas: “Não quisemos a violência. Não temos – como Jesus, filho do nosso povo e como você – proclamado a doutrina da não-violência, porque achamos que um ser humano, às vezes, para salvar a si ou até as suas crianças, precisa praticar violência. Anunciamos desde tempos primitivos a doutrina da justiça e da paz, ensinamos e aprendemos que a paz é o objetivo do mundo e a justiça é o caminho para alcançá-la. Não podemos, portanto, desejar o uso da violência. Quem se puser nas fileiras de Israel, não poderá desejar violência. Mas sou forçado a resistir ao mal no mundo, assim como ao mal em mim mesmo. Não gosto da violência. Só posso aspirar a não usar violência nenhuma. Mas se não houver outro caminho de impedir que o mal destrua o bem, então usarei a força, pondo-me nas mãos de Deus.”
Com a fundação do Estado judeu no ano de 1948, Buber traçou uma fronteira clara entre a existência do Estado de Israel e do esboço metafísico “Sion”. Buber define o Estado judeu agora como meio – uma faixa estreita de terra que podia oferecer segurança ao povo disperso e a possibilidade de uma vida normal. Buber associava o conceito “Sion” com a percepção judaica do divino, como a experimentada pelos profetas. “Sion será salvo por direito, e os que voltam a ele, pela justiça.”
A volta a Sion é, segundo Buber, não só uma necessidade existencial, mas também a mensagem bíblica do povo judeu, a saber: ser uma luz dos povos, para que a salvação de Deus chegue até ao fim da terra (Isaias 49,6). Buber cria que a volta a Sion fosse transformar fundamentalmente tanto a terra como o povo, produzindo a renovação de ambos. A volta para casa do povo judeu será justificada somente se “estiver a serviço do espírito”. Buber cria que a existência do povo judeu não teria sentido se não levasse à Humanidade uma mensagem importante.
Só se o povo judeu em Israel guardar o espírito de Justiça dos seus profetas, Buber escreveu, poderá esperar produzir algo maior que somente mais um país no mundo. A obrigação de Israel é “melhorar o mundo no Reino de Deus”, conforme a tarefa de Abraão: “Em ti todas as nações na terra sejam abençoadas.”
Diálogo e Paz
Num tempo em que inimizade aos estrangeiros, presunção nacional e recusa de diálogo crescem, o humanismo bíblico de Buber ganha importância especial. Lamentavelmente, a mensagem de Buber de aceitar o ser diferente vem sendo negada por ódios atávicos ao estrangeiro e arrogância nacional. A recusa ao diálogo com o “outro” se baseia no medo de que nós – Deus nos livre! – descobramos o lado humano do nosso adversário, e que o encontro com o outro, com os estranhos, e especialmente com os nossos inimigos, possa despertar sentimentos indesejados (como empatia) em nós, cujo preço moral devemos pagar.
O relacionamento de confiança com o outro pode-se, de fato, provar inquietante, e não só uma experiência dolorosa, como também um empreendimento perigoso. O “eu” que procura “ti” pode chegar a ser não só completamente negado, mas possivelmente também abusado. O esforço de entender o nosso inimigo não é somente uma tarefa difícil, mas pode também ser entendido como “atitude suicida”. Todavia, nenhum entender é possível sem se voltar para o inimigo, cujo caminho de vida se cruza com o nosso. Precisamos partir de que a recusa de falar com o inimigo (no nosso caso os palestinos) e reconhecer as suas reivindicações legítimas não só significa persistir num círculo cruel de violência, mas pode também levar à destruição de ambos os lados.
Um diálogo genuíno é de fato um palco imprescindível para a solução de conflito. Possibilita sentir os sentimentos e conseguir conhecer suas necessidades, sem nos negar a nós mesmos ou precisarmos renunciar aos nossos próprios interesses essenciais. A negação do outro e sua demonização são certamente mais fáceis do que o seu reconhecimento. Todavia, um conflito não pode ser resolvido sem se voltar para o outro. Um diálogo genuíno é, segundo Buber, aquele em que cada parceiro percebe, afirma e confirma como este outro é; só assim as diferenças podem ser resolvidas humanamente, podendo-se se aspirar supera-las.
Buber era convicto de que o futuro das pessoas como seres humanos dependia de uma retomada do diálogo. Achava que a doença humana mais aguda é o fato de que os seres humanos do presente não são mais capazes de conduzir um diálogo genuíno. Na sua palestra “O Diálogo Genuíno e a Possibilidade da Paz”, que fez em setembro de 1953 na Paulskirche de Frankfurt, na ocasião de receber um prêmio por sua atividade pacifista, Buber disse: “As demoras em entrar em diálogo um com o outro estão muito estreitamente ligadas com a perda de confiança entre os seres humanos, pois somente conseguirei falar com alguém a partir do momento em que possa pressupor que a minha palavra seja aceita como verdadeira.” Acrescentou: “Onde, porém, a língua se deixa ouvir de um lado ao outro, a guerra já está posta em dúvida.”
Com a fundação do Estado de Israel, Buber observou: “Para mim não há dúvida de que a questão do Oriente Próximo é se um entendimento entre Israel e os povos árabes se realizará, enquanto ainda houver possibilidade para isso. Para que uma obra tão grande saia bem, a pressuposição indispensável é que representantes de ambos os povos entrem uns com os outros num diálogo genuíno, no qual sinceridade mútua e reconhecimento mútuo se u.”
O pensador da vida dialógica estava bem consciente do triste fato de que paz no Oriente Próximo não pode ser alcançada só mediante confiança altruísta, mas também por negociações regulares. Buber observa que estadistas sábios, como bons comerciantes, resolvem os seus problemas pelo saber distinguir entre os seus interesses mútuos e comuns e os distinguir claramente. “O que precisamos”, Buber disse, “são negociadores da paz – negociadores de paz judeus e arábes.” Assim é que foi também um negociador de paz árabe, o então presidente egípcio Anwar Sadat, que provou que paz pode ser alcançada por negociações.
Realmente, tais “negociadores de paz” árabes e judeus – em parte adeptos de Buber – mudaram completamente a História do Oriente Próximo pelo seu encontro em Oslo. O Acordo de Oslo, que surpreendeu o mundo todo, entre os dois inimigos prévios, marca sem dúvida um momento de transição numa História de séculos de disputas armadas. Apesar dos impedimentos enormes no caminho da paz, o processo israelense-palestino de paz, como penso, é irreversível.
Epílogo
O antever de Buber referente à política de poder árabe se provou certo na Guerra dos Seis Dias que irrompeu em junho de 1967. A celebrada vitória israelense se provou, lamentavelmente, como uma vitória de Pirro. A dominação israelense sobre quase dois milhões de pessoas nas áreas ocupadas abalou a base democrática da sociedade israelense. Embora um nacionalismo agressivo tenha se apoderado da política israelense, grande parte dos israelenses acabou se conscientizando de que não deveríamos reinar eternamente sobre outro povo. Os diversos movimentos de paz em Israel, especialmente o “Shalom Achshav” (PAZ AGORA, fundado na primavera de 1978), aceleraram o processo de paz hodierno. Essas tendências não teriam sido possíveis sem o humanismo hebraico de Buber.
O escritor Amós Oz, um dos fundadores do movimento de paz “PAZ AGORA”, constatou que o nosso país infelizmente é a pátria de dois povos, cujo destino seria viver um com o outro, porque “nem Deus nem os anjos descerão para separar entre o ‘certo’ e o ‘certo’. A vida de ambos depende de um processo duro, complicado e sério para viverem um com o outro nessa terra amada por ambos.”
Buber Hoje
O quê Martin Buber nos diz hoje? A mensagem humanista de Buber poderia ser realmente realizada no nosso mundo pragmático? O Estado de Israel existiria, se tivéssemos aceito a visão de mundo de Buber? Que aspecto o Israel de hoje teria sem Buber? Está claro que as propostas de confederação de Buber, para a solução do conflito do Oriente Próximo não tinham nenhuma chance (veja Líbano, Chipre e Tchecoslováquia). Também está claro que o mundo árabe não o teria reconhecido, caso Israel não tivesse sido capaz de se defender.
Lamentavelmente, as duas figuras de Israel, David Ben-Gurion – o fundador do Estado judeu e Martin Buber – o filósofo judeu mais importante – trocaram os seus papeis. Ben-Gurion se interessava principalmente pela filosofia grega, enquanto Buber se engajou durante toda a sua vida na política. Cabe a afirmação de Sócrates de que os filósofos seriam os melhores governantes. Apesar de todos os seus prognósticos políticos não-realizados, Buber era o contestador e, com isso, a consciência incômoda de Israel. Chegou a ser um ícone para o humanismo hebreu e para a ânsia pela paz.
Uma das contribuições políticas de Buber era e é ainda hoje a “linha de demarcação” – o limite moral que nunca deve ser transgredido. O imperativo categórico de Buber vale também para os diálogos de paz israelense-árabes, que não terão sucesso senão quando incluirmos a mensagem de Buber de paz.
Queria finalizar com uma palavra de Gustav Landauer, amigo mais íntimo de Martin Buber: “A Paz é possível, porque é necessária.”
Essas palavras são hoje mais atuais do que nunca. Oro para que, no presente e no futuro, aprendamos mais de Buber do que no passado.
[ por Kalman Yaron, publicado no site http://www.jcrelations.net/pt/ e traduzido para o português brasileiro pelo PAZ AGORA|BR ]