O problema Israel-Palestina está ancorado no fato trágico de que a “Terra Prometida“ foi, no fundo, prometida duas vezes: uma vez, segundo a Bíblia hebraica, a Isaac, e outra vez, segundo a tradição islâmica, a Ismael, os dois filhos de Abraão. Um dos meus amigos árabes até redigiu um filme com o título “A terra duas vezes prometida” (‘The Twice Promised Land”). A terra prometida duas vezes, que segundo a Bíblia, devora os seus habitantes, está no centro do conflito judaico-árabe de cem anos. Ambos os povos reclamam ao mesmo pequeno pedaço de terra. Ambos os povos amam esse país, ambos partem de que só eles – e não o outro – têm direito a esta terra, e não estão claros que os seus direitos têm limites ali onde o direito do outro começa.
O primeiro presidente do Estado de Israel, Chaim Weizmann, disse uma vez: “A tragédia do conflito judaico-árabe jaz em que ambos os povos têm direito, mas nós temos mais direito.”
O dilema de um único país para os dois povos estava no centro da atividade política de Buber. A vida e trabalho de Martin Buber estão ligados mais estreitamente à renovação de Israel, e sua luta por Israel se estende sobre mais que seis decênios. No seu engajamento político, Buber discutiu questões que apontavam naquele tempo, como hoje, para os problemas urgentes e não resolvidos na convivência entre judeus e árabes.
Ainda antes da sua imigração à Palestina, Buber chegou a ser membro da “Brit Shalom” (Aliança de Paz), uma organização para promoção do entendimento judeu-árabe. À ela amigos íntimos de Buber pertenciam, como Hugo Bergmann, Hans Kohn, Gerschom Sholem e Ernst Simon. Desde a sua imigração à Palestina no ano de 1938, trabalhou com grande engajamento pelo entendimento entre judeus e árabes.
Segundo o ponto de vista moral-político de Buber, a questão árabe fazia parte essencial da questão intra-judaica. Partiu de que o comportamento dos judeus em relação aos árabes representava parte constitutiva integral do judaísmo, da mesma forma como o anti-semitismo patológico põe em questão a credibilidade dos princípios cristãos. Com a fundação do Estado de Israel, a questão árabe se mostrou de fato como crítica para os valores do Judaísmo.
O Sionismo Crente e a Política Real
O sionismo crente de Buber está em contraste agudo com a assim chamada “política real” (ou ‘política de poder’, como Buber a chamava), a qual ignorava a presença árabe na Palestina. Numa discussão sobre o sionismo e a Bíblia, Buber disse que o Livro dos Livros iria existir eternamente, inclusive sem o sionismo; seria, porém duvidoso se o sionismo, que se apóia na Bíblia pudesse sobreviver sem ela. A Bíblia hebraica impõe, segundo Buber, a maior exigência sobre Israel: “O que ela tem a nos dizer é que há verdade e mentira, e que o sentido e a consistência de ser humano jazem em se decidir pela verdade e contra a mentira; que há o certo e o injusto, e que a salvação da pessoa humana depende de que ela escolha o correto e rejeite o injusto.” Buber referenciava o humanismo hebraico especialmente aos árabes palestinos.
O movimente de renascença judaico, o sionismo, deveria, segundo Buber, estar ancorado no humanismo judaico, este que designava como o “caminho da santidade”, ao contrário do “egoísmo santo” do mundo como um todo. A posição de Buber quanto ao sionismo e a questão árabe encontrou a sua expressão em 1921, no XIIº Congresso Sionista em Karlsbad, onde a questão da atitude sionista perante os árabes foi discutida. Buber se dirigiu nesse foro ao mundo árabe com o seguinte discurso: “Nesta encruzilhada histórica, quando voltamos à terra dos nossos pais, o povo judeu proclama o seu desejo de viver com os árabes em paz e fraternidade, e de poder desenvolver livremente a pátria comum para uma comunidade de povos, na qual ambos os povos se possam desdobrar livremente.”
Buber podia distinguir entre “política de longo prazo” e “política pouco inteligente”. O seu prognóstico político aos relacionamentos futuros entre os dois povos se reflete numa carta que escreveu em 1929 (mais de 60 anos antes da intifada), depois da onda de ataques árabes aos judeus na Palestina, ao seu amigo Hans Kohn: “Depois da insurreição, o movimento nacional árabe se conseguiu organizar pelo primeira vez de forma abrangente mobilizando o povo inteiro. O nosso dever seria terminar a situação aberta de guerra, tão rápido como possível, com propostas de paz, mas não fazer todos os sofismas possíveis. Qualquer impedimento no caminho a um acordo de paz aumentará o abismo entre os dois povos ainda mais.
Os seus pronunciamentos cortantes referentes ao Ishuv (a minoria judaica na Palestina), tornaram Buber impopular em seu próprio povo. Costumava-se dizer que, no começo, os conhecimentos de Buber da língua hebraica não eram suficientes para se fazer entendido.
Um amigo íntimo de Buber, Gershom Sholem, disse ironicamente: Buber, o velho judeu polonês, que foi testemunha do Holocausto, se identificava mais com os vencidos, ou seja os árabes, do que com o vencedor. Temia que, pela nossa vitória, perdêssemos a nossa imagem de Deus que os nossos inimigos nos ensinaram a guardar dentro de nós e a respeitar dentro dos outros. Por causa da sua atitude crítica referente ao judaísmo ortodoxo, foi também designado como “anarquista religioso”.
A aspiração de Buber por uma Confederação do Oriente Médio, que abrangeria ambos os povos da Palestina, provou-se, com o tempo, uma concepção utópica. Sob o ponto de vista político, Buber foi condenado ao isolamento por ambos os lados. A sua atitude crítica ao sionismo e ao judaísmo tradicionais justificaria que a fama de Buber é maior no estrangeiro do que em Israel, sendo que a sua influência no mundo cristão é muito mais forte do que em círculos judaicos.
Teólogos cristãos designam Buber como intérprete principal do judaísmo para o mundo não-judaico. O judaísmo ortodoxo o culpa de ter minado a consciência judaica, acelerando assim a assimilação. Simultaneamente, entre judeus liberais, é considerado como o grande porta-voz do judaísmo no nosso século.
Deve, todavia, ser enfatizado que a oposição de Buber ao sionismo oficial foi designada, dentro do sionismo, como uma “solidariedade crítica”. Em contraste à “política real” de Theodor Herzl, mas de acordo com Achad Haam e Chaim Weizmann, Buber enfatizava o nível cultural do sionismo com a afirmação de que, sem renovação espiritual, não existiria chance para a ressurreição nacional.
Apesar do “respeitoso isolamento”, Buber encontrou correligionários nos círculos socialistas, os quais pertenciam ao “Ichud” (a “União para Aproximação Judaica-Árabe”), da qual chegou a ser o presidente, tendo participado em seus encontros e publicações. O objetivo político do Ichud era elaborar uma forma de governo com base em direitos políticos iguais para ambos os povos na Palestina e, com isso, alcançar a fundação duma confederação. Mas havia também membros na União que preferiam uma solução binacional para a Palestina.
Com a fundação do Estado de Israel, o Ichud pasou a editar uma revista mensal com o nome de “Ner” (vela). Num editorial na primeira edição da Ner, Buber descrevia o Estado de Israel como ligado ao cumprimento do anseio milenar do povo judeu por independência. A ambição por justiça na relação entre a outras nações, dizia Buber, seria, porém, a maior exigência ao Estado de Israel.
A Questão Árabe
Buber não era o único que se ocupava com a questão árabe. Toda uma lista de amigos e adversários de Buber ocupava-se do dilema moral-político provocado pela presença árabe na Palestina. Na véspera do XIVº Congresso Sionista em agosto de 1925, o colega de Buber, Robert Weltdsch, escreveu um artigo muito discutido na “Jüdische Rundschau”, no qual dizia: “Há um povo sem terra – mas não há terra sem povo. A Palestina será sempre habitada por dois povos – judeus e árabes. A realização do sionismo é impensável, enquanto não se conseguir enquadrar a obra sionista no quadro do mundo do Oriente Próximo.”
David Ben-Gurion, o fundador de Israel, que chegou a ser acusado de ser cego à questão árabe, disse no Congresso Sionista Mundial realizado em 1930 em Berlim, que grande número de árabes viveu durante séculos na Palestina, que os seus pais e ancestrais nasceram e morreram ali, e que a Palestina é um país em que desejavam também viver no futuro, e deveríamos dar a esse fato um entendimento amigável, tirando disso todas as conseqüências necessárias.
Zeev Jabotinsky, fundador do partido revisionista e mentor de Menachem Beguin, declarou no ano de 1921, que “se nós fossemos árabes, certamente não concordaríamos com as ambições sionistas”. A diferença entre Buber e os seus adversários políticos consiste, não na sensibilidade moral como tal, mas sim nas conseqüências políticas que esta exige. Enquanto os objetivos sionistas essenciais não eram dependentes do consentimento árabe, Buber imaginava que a realização da obra sionista dependeria do consentimento dos árabes. Chegou até a sugerir a restrição à imigração de colonos judeus à Palestina para acalmar os árabes.
Já em 1918, Yitzhak Wilkanski, um dos diretores do Ichud, afirmou que, para alcançar os fins sionistas urgentes, seria preciso causar injustiça aos árabes. “Não é segredo” – – disse ironicamente, “que os árabes não concordam com os empreendimentos sionistas, e que lhes dói quando um corpo estranho entra neles”. “Por que” – Wilkanski pergunta, “os nossos moralistas não enfatizam esse ponto? Ou somos vegetarianos completos, ou comemos carne. Semi-vegetarianos, ou de terceira ou quarta parte, não existem.”