Raja Shehadeh
Numa ação amplamente condenada, o governo israelense baniu o grupo que fundei. É assim que eles reforçam a impunidade das suas políticais ilegais de Ocupação.
[ por Raja Shehadeh | New York Review of Books | 27|10|2021 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]
Nota dos Editores
Em 16|10, falamos com Raja Shehadeh sobre o seu trabalho como escritora e como advogado e fundador, em 1979, do Al-Haq, que logo se tornou o grupo palestino líder no monitoramento de Direitos Humanos.
“Meu mundo de Ramallah, com sua proximidade das colinas, estava sendo transformado, inexoravelmente, de uma maneita que me mistificava e assustava”, disse. “As mudança acontecendo através da tomada da terra pelo exército israelense, usando vários truques legais espúrios e substituindo os nomes de vários locais, cidades e vilarejos por nomes em hebraico, assim como as mudanças na narrativa que acompanhavam o processo, foram todos precedidos por alterações realizadas nas leis locais.
“Meu projeto legal foi de fazer uma crônica dessas mudanças e advertir contra suas consequências. Busquei levantar a consciência para exercer pressão para deter a colonização da nossa terra por Israel”.
Esse projeto de quatro décadas de responsabilização legal foi encerrado na semana passada quando, em 22|10, o governo israelense declarou a Al-Haq e cinco outras ONGs como “organizações terroristas”, colocando-as, efetivamente, como fora da lei”.
Shehadeh escreveu para nós a seguinte resposta.
The New York Review of Books
Em 1978, retornei a Ramallah de meus estudos de Direito em Londres, fervilhando de idéias sobre a importância do domínio de Lei e as possibilidade de resistir à Ocupação israelense usando a Lei Internacional. No ano seguinte, eu e dois colegas, um graduado em Yale chamado Charles Shamas e o advogado americano Jonathan Kuttab, estabelecemos uma organização que chamamos de Al-Haq (árabe para ‘O Direito’), afiliada à Comissão Internacional de Juristas (ICJ) de Genebra. Foi um dos primeiros grupos de Direitos Humanos no mundo árabe e o primeiro e único do seu tipo nos territórios ocupados por Israel.
A principal atividade da Al-Haq era documentar as extensivas mudanças nas leis locais na Cisjordânia ocupada, determinadas por ordens militares israelenses. Estas, em violação da Lei Internacional, eram concebidas para permitir a Israel realizar aquisições ilegais de terras para a construção de assentamentos ilegais. Em um estudo de autoria minha com Jonathan, intitulado The West Bank and the Rule of Law, publicado em 1980 pela Al-Haq em conjunto com o ICJ, apontamors que essas ordens eram ocultadas da visão do público. Israel estava usando legislação secreta para violar a Lei Inernacional, embora isso tivesse sido negado pelo governo e, inicialmente por vários jornalistas israelenses. Após pesquisar o assunto, esses jornalistas perceberam que nós não havíamos exagerado e que as ordens realmente não tinham sido publicadas.
No curso das mais de quatro décadas desde a fundação da Al-Haq, a ONG continuou a servir aos objetivos para os quais foi criada: documentação e resistência através das leis israelenses de direitos humanos, incluindo os maltratos a prisioneiros, a exploração econômica dos recursos naturais dos Territórios Ocupados e a construção ilegal de assentamentos. Após a criação da Autoridade Palestina (AP), que se seguiu aos Acordos de Oslo de 1993-95, o monitoramento de violações pela Al-Haq expandiu-se para cobrir as feitas pela AP, para quem Israel transferira certos poderes civis. Graças a esse registro de compromissos imparciais com a Lei, a Al-Haq se tornou um recurso confiável para numerosas organizações internacionais de Direitos Humanos, assim como para a ONU e governos estrangeiros.
O governo israelense tentou, persistentemente, desacreditar a Al-Haq e seu trabalho. Nos nossos primeiros dias, autoridades tentaram desqualificar, dizendo que seria uma fachada para a então ilegal Organização para Libertação da Palestina (OLP). Agora, eles rotularam a Al-Haq como braço de uma das mais radicais facções de OLP. Ambas são acusações absurdas. Não obstante, nos anos de 1979 a 1993, quando atuei como co-diretor da Al-Haq, passei muitas noites de insônia preocupado com eventuais represálias aos nossoa duros relatórios sobre a Ocupação.
Ao lado de fazerem seu melhor para desacreditar nossos relatórios sobre Direitos Humanos, as autoridades israelenses frequentemente me chamam para interrogatórios sobre meu envolviemento com a Al-Haq. Já pressionaram meu pai, também advogado, para me persuadir a deixar meu posto. Enquanto isso, nossos trabalhadores de campo são assediados, membros da equipe são detidos e outros proibidos de viajar.
E, ainda, durante a reinvasão da Cisjordânia, em 2002, quando o exército israelense destruiu uma série de escritórios pertencentes a ONGs, assim como os da própria Autoridade Palestina em Ramallah, a Al-Haq foi poupada. O governo nunca se sentiu tão encorajado por sua sensação de total impunidade para designar a Al-Haq como “organização terrorista”— até agora.
Estive em férias em Edinburgh, Escócia, em 22 de outubro, quando ouvi estas notícias chocantes — que o ministro da defesa e vice primeiro-ministro Benny Gantz, havia publicado uma ordem declarando que a Al-Haq e outras 5 ONGs palestinas eram organizações terroristas. As implicações desta ação são devastadoras.
A ordem do governo possivelmente será seguida por outra do comando militar na Cisjordânia, adicionando a Al-Haq à lista de organizações proscritas sob os Regulamentos de Defesa do Mandato Britânico (de 1945), que continuam vigentes na Cisjordânia Ocupada. Com esta designação, qualquer um que trabalhe para ou forneça serviços para a Al-Haq, ou mesmo expresse apoio a ela, estará sujeito a prisão por terrorismo. Todos os ativos financeiros da ONG serão confiscados e os bancos israelenses impedirão que fundos cheguem a ela.
Em outras palavras, esta importante organização de Direitos Humanos, que através do seu trabalho legal de tantos anos ocupou um papel tão vital no fornecimento de informação sobre violações legais israelenses, e usando a litigação para resistir a tal transgressão contra habitantes palestinos nos Territórios Ocupados, que goza de proteção sob a Lei Internacional, será neutralizada.
A ordem de Gantz teve reações fortes em Israel e no Exterior. A Human Rights Watch e a Amnesty International, que trabalham de perto com a Al-Haq, publicaram uma Declaração Conjunta chamando a ação israelense de “decisão terrível e injusta” e a descrevendo como “um ataque pelo governo israelense ao movimento internacional pelos Direitos Humanos”. Num editorial de 24|10, o principal diário israelense Haaretz condenou a como” uma mancha sobre Israel”.
O significado literal é claro. Toda resistência à Ocupação é terror. Israel está minando a diferença entre luta legítima e ilegítima.
Este é um presente para organizações terroristas e o uso da violência. Se todas as formas de resistência constituem terror, como se pode resistir à Ocupação sem ser um terrorista?
Irão essas críticas forçar Gantz a rescindir a ordem? É improvável. Por enquanto, enquanto a questão está à vista do público, o governo pode deixar de agir ou de fazer represálias contra a Al-Haq e seus funcionários. Mas isto é temporário. O EDI, que tem pleno controle da Cisjordânia, certamente usará a ordem e seus poderes para atacar a Al-Haq, como faz contrar qualquer grupo rotulado como “terrorista”,
Por que agora, pode-se perguntar. A resposta mais provável é que a Al-Haq deu recentemente forte apoio à Corte Criminal Internacional (ICC), fornecendo evidências oara sua investigação de crimes de guerra de Israel, durante a Guerra de Gaza em 2014. O ICC também está estudando acusações contra o grupo militante Hamas por crimes de guerra no mesmo conflito. Entre os candidatos que poderiam ser indiciados estaria o próprio Gantz, que foi na época comandante em chefe do exército de Israel.
Isto apenas ressalta o quanto é importante para o ICC ter sucesso em apurar as responsabilidade de Israel – e como é importante frustrar os esforços do governo americano para obstruir o trabalho do ICC para trazer à justiça qualquer oficial israelense que tenha cometido crimes de guerra. A percepção do governo israelense de que é imune a qualquer acusação o reforçou a continuar violando a Lei Internacional — como atesta a última ordem contra a Al-Haq.
Sempre tive orgulho da Al-Haq, e do meu trabalho na ajuda para estabelecer a organização e slvaguardar sua credibilidade internacional. Meu orgulho não será diminuído por esta declaração que a chama de entidade terrorista. Nei irei, como antigo morador de Ramallah, cessar meu apoio a ele, sejam quais forem as consequencias.
Raja Shehadeh é fundador do grupo palestino de Direitos Humanos palestino ‘Al-Haq‘, filiada à ICJ – International Comission of Jurists. Seu livro mais recente é Going Home: A Walk Through Fifty Years of Occupation, publicado em 2019. O próximo, ‘We Could Have been Friends, My Father and I, deverá ser lançado em 2022.
[ por Raja Shehadeh | New York Review of Books | 27|10|2021 | traduzido pelo PAZ AGORA|BR ]