Kain und Abel.
Penúltimo ato.
Cena 1
A voz – Kain, o que foi que você fez? Os sangues do teu irmão gritam e chegam até mim!
Ao ouvir o rumor das palavras Kain busca escapar da voz que o cerca por todos os lados e tempos. Ele joga o corpo pra trás como se quisesse amortizar um golpe. Esquivar da culpa se escondendo no desentendido:
– Hein? – Velho truque. Quer ganhar do tempo por que sabe a resposta.
Ao perceber que a Voz não se faz de rogada e começa a repetir a pergunta, Kain inverte a jogada. Lança de ponta a cabeça num retorno de corpo e resposta:
-Ele desapareceu? E daí? Sinto muito! É cada qual pra si. Ou o Senhor não sabe? – dá uma risadinha satisfeito com a própria perspicácia – Sou eu que deveria protege-lo desses animais do campo que o Senhor criou? – senhor é dito com certa ênfase irônica que acompanha o resto da fala – Não faço nem desfaço milagres. Bem que o Senhor ficou de nos ensinar o truque, mas se esqueceu.
Se eu fosse o Messias, aí, quem sabe…- se faz de íntimo, coloquial – ouvi dizer que você criou o Messias antes de fazer o mundo, antes do Adão meu pai. É verdade que ele sabe as respostas de todas as dúvidas mistérios e desaparecidos? – diante do silêncio Kain perde a paciência- Não sei por onde ele anda! Foda-se! Nunca fui seu protetor!
A Voz repete:
-Kain. O que foi que você fez? Os sangues do teu irmão gritam e chegam até mim!
Nota 1: O “sinto muito” equivale a um “nada tenho a ver com isso”. Segundo antigas tradições Kain invejava do irmão desde cedo. Vivia reclamando. Ficava contrariado quando alguém mostrava preferência por algo que Abel tivesse feito. Dito. Ou mesmo calado. Ficava irritado. Se fazia de vítima. Ameaçava.
Cena 2:
Um foco de luz ilumina os irmãos e o Pai sentados ao redor do fogo num canto do palco. Conversam. O Pai demonstra preferência pela opinião de Abel. Kain se irrita. Diz que é sempre passado pra trás. Levanta. Chuta a terra em direção ao fogo e sai xingando Deus e todo mundo. O Pai vai atrás dele.
Pai- Kain, pra que cara amarrada? Tanta raiva que não acaba mais. Você precisa aprender a controlar essa agressividade. É sempre a mesma coisa quando não consegue do teu jeito! – Adão quer tocar o ombro do filho que o segura pelo punho e afasta a sua mão com força enquanto, por cima do ombro, olha raivoso para o irmão iluminado pelo fogo. Jogo de luz e escuro como num quadro renascentista.
Nota 2: Dar ênfase na palavra “plural” da expressão “sangues de teu irmão”. Plural
como na Bíblia hebraica. Abel é Hevel nesta língua. Significa sopro. Vazio. Sem descendência. Continuidade. É toda uma humanidade que morre em Abel. Cain é um assassino de futuros. Em cada sangue todos os sangues. Em línguas semitas Kain é coisa pontuda. Que fere. A tentação do fratricídio nos acompanha desde a origem. A banalização da maldade nada tem a ver com a tantas vezes mal repetida “banalidade do mal” da Hanna Arendt. O mal nunca é banal. Banais são os seus porta vozes. Carrascos anti-humanistas. Matam em cada humano todos os humanos que ainda somos.
Cena 3
Horizonte vermelho. Impossível saber se o sol se põe ou amanhece. Nem dia nem noite. Terra árida. Kain está nu. O corpo transmite a mudez dos imperdoáveis. Talvez esteja em companhia dos filhos e esposa como no poema “A Consciência” de Victor Hugo. Sugiro leitura conjunta do poema com os atores.
Kain fala, mas não sabemos ao certo se está suplicando ou questionando.
Kain: Será que o peso do meu erro é tão maior do que os de outros?
Voz: A terra que você encharcou de sangue não te dará descanso.
Kain: E o perdão? Cadê o perdão garantido? O arrependimento não conta?
Voz: Desterrado em qualquer canto. Na tua casa. Na rua. Com ou sem máscara.
Kain: Porra! Eles vão querer se vingar dos milhares de mortos!
Voz: Serás vulto e vago.
Kain desesperado: Coloque na minha testa uma marca protetora!
O Senhor marca a testa de Kain que logo corre para ver o rosto refletido na água.
Um grito de horror.
Pano bem rápido.
[ Paulo Blank é escritor, psicanalista e membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA ]