Em entrevista à Folha, o escritor israelense David Grossman, 58, tenta explicar do que é feito seu novo livro, “Fora do Tempo“, lançado pela Companhia das Letras.
Em agosto de 2006, a dois dias de um cessar-fogo que encerraria a guerra com o Líbano, um foguete lançado pelo braço armado do Hezbollah atingiu o tanque em que Uri, 20, filho caçula de Grossman, então sargento do Exército israelense, estava com outros companheiros.
Todos morreram.
Leia os principais trechos da entrevista.
Folha – O sr. ficou satisfeito com o livro?
David Grossman – Lembro que uma das primeiras sensações após a perda do Uri foi de exílio. Você não se reconhece mais. Ao menos eu tentei contar com minhas palavras, não fiquei totalmente paralisado. Foi um ato de vontade.
E por que os cinco anos de silêncio do protagonista em “Fora do Tempo”?
As palavras são superficiais. Após a morte de Uri, em vez de querer escrever, eu sentia o desejo de correr quilômetros e quilômetros até que ficasse exausto.
Mas chega um momento em que você percebe que tem algo a falar. Somos humanos, e humanos precisam de palavras para tocar a realidade interna e externa.
O que mudou na sua vida?
É muito profunda a dor. Não quero comparar com outras, mas talvez a diferença neste caso seja que ela não é algo que apenas acontece. Ela vira parte de você.
Mas este não é um livro apenas sobre perdas e mortes, é também sobre a intensidade da vida.
Por que a ficção, e não o jornalismo?
Artigos e ensaios são mais objetivos, vão diretamente ao ponto. Mas o enfoque literário é mais profundo, não oferece respostas ou dicotomias fáceis.
O que o sr. pensa do Exército israelense?
Israel precisa de um Exército forte, pois esta é uma região violenta e imprevisível. Mas o Exército sozinho não resolve nada, a paz é o melhor caminho.
E como o sr. avalia a sociedade israelense?
Devido à tensão política, cada vez há menos humor em Israel. As pessoas acabam agindo de maneira extrema, com mais agressividade e menos senso de humor ou autoironia.
Não gosto disso. A autoironia sempre fez parte da cultura judaica.
E a religião?
Em termos culturais, eu sou muito judeu. Já tive a oportunidade de viver fora de Israel mais confortavelmente. Mas recusei, porque Israel é o lugar mais relevante para um judeu viver. É onde o antigo e o moderno convivem de maneira
mais dramática.
O sr. é religioso?
Estudo a Bíblia semanalmente com três pessoas, em sessões de quatro horas, há 22 anos. Lemos como antigamente, com lupa. De quatro ou cinco semanas para cá, estamos estudando os três primeiros versos sobre a criação.
Mas o sr. acredita em Deus?
Não, ao mesmo tempo sou absolutamente secular. Sagrada para mim é a existência humana.
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Crítica de Noemi Jaffe
“Fora do Tempo” parte da ausência para falar da vida
Quando um sentimento é tão forte que se torna impossível falar sobre ele, porque nenhuma palavra da língua é capaz de expressá-lo, talvez o melhor que o humano possa fazer é deixá-lo falar.
É assim em “Fora do Tempo”, de David Grossman. Aqui, é a ausência que fala; os habitantes de uma cidade, todos eles órfãos de um filho, são não mais do que porta-vozes da língua da morte.
Não é um “homem”, mas a própria morte quem diz: “Cortarão minha língua/ os cacos de vidro/ do nome dele/ em sua boca”.
Ao buscarem, em procissão, um lugar chamado “lá”, vários moradores de uma cidade se reúnem e, tentando encontrar as palavras que possam dizer sua perda, acabam sendo ditos por elas.
O homem, o duque, a mulher, o caminhante, o anotador dos anais da cidade, um centauro, uma parteira, um sapateiro, uma mulher muda, um velho professor e a mulher do anotador dos anais da cidade, alegóricos e individuais, carregam o fardo comum de terem perdido um filho, enquanto buscam esse lugar que não conhecem.
Nesse processo, descobrem, paradoxalmente, que o luto é aquilo que eles guardam de mais vivo.
O centauro ironiza o anotador dos anais da cidade dizendo que ele tem a sorte de “espiar quanto quiser dentro do inferno dos outros, sem precisar meter nem a ponta de (seu) dedinho branquelo”.
Trata-se, certamente, de uma ironia ao próprio ofício do escritor, que, ao falar sobre o sofrimento dos personagens, acomoda-se num papel de mero observador.
Acontece que, como o autor, o anotador dos anais da cidade também perdeu um filho e, nesse caso, todos os contornos se perdem.
A morte cessa todos os juízos fáceis. Ao final, estranhamente, o livro lembra “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.
Como Severino, que em meio a tanta morte acaba encontrando um nascimento, os personagens perceberão que o luto também pode morrer, para dar finalmente voz à palavra da vida.
NOEMI JAFFE é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de “Quando Nada Está Acontecendo” (Martins)
Livro
FORA DO TEMPO
AUTOR David Grossman
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Paulo Geiger
QUANTO R$ 34,50 (176 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
[ artigos publicados na Folha de São Paulo em 24/08/2012 ]