Moacyr Scliar – vida, obra e a questão social

 

Moacyr Scliar (1937-2011) nasceu em Porto Alegre, no seio de uma família judaica “progressista” cujos expoentes eram o pintor Carlos Scliar, combatente da Força Expedicionária Brasileira, Esther Scliar, musicóloga da fase nacionalista da música clássica brasileira, ambos militantes do PCB, e seu tio Henrique Scliar, imigrante que fazia parte dos círculos de simpatizantes do PCB descritos por Leôncio Basbaum no livro Uma vida em seis tempos. Para estes judeus “progressistas” pertencentes aos estratos populares, a questão cultural era central na medida em que era considerada indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade. Havia fome de cultura e se forjavam verdadeiros autodidatas eruditos, para os quais nada do que é humano era indiferente. Possuíam uma presença ativa e militante, adotando uma atitude de entrega às melhores aspirações populares. Num caminho de vai e vem, abraçavam todas as causas condutoras ao arraigamento à nova terra e, ao mesmo tempo, preservavam os valores político-sociais, humanistas e literários adquiridos em suas terras natais da Europa Oriental.

Moacyr Scliar bebeu ainda menino nestas fontes, mas, sob o impacto do Holocausto, como muitos jovens de sua geração, se dividia entre o nacional e o social. Isto é, construir o socialismo num “lar nacional judeu” ou fazer a revolução no Brasil. Acabou optando por uma militância no movimento juvenil da esquerda sionista que se considerava marxista, o Hashomer Hatzair (Guarda Jovem), sem nunca ter deixado seus vínculos muito afetivos com a esquerda não sionista.

Formado em Medicina, não por acaso escolheu a docência e o exercício da Saúde Pública como sanitarista. A solidariedade, o pensar no coletivo falaram mais alto que uma brilhante carreira de prestígio. Mas acabou se notabilizando como escritor e foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Moacyr Scliar foi um dos mais prolíficos escritores brasileiros contemporâneos e, aparentemente, escrevia a respeito de assuntos muito díspares. No entanto, pode-se vislumbrar um fio condutor em toda a sua obra. Dedicou uma parte expressiva de sua produção à literatura infanto-juvenil, o que se coaduna com seu interesse pela educação. Escreveu obras sobre Saúde Pública onde se destaca a biografia de Oswaldo Cruz. Mas as mais conhecidas são os seus romances, contos e crônicas. E neles, perpassa a busca pelas origens, reminiscências de infância, a questão ética e o ser político e social.

Não cabe fazer neste espaço um resumo de toda a sua obra e muito menos fazer análise literária mas apenas destacar as obras mais representativas desta busca definida acima.

Adeus a um imortal

Adeus, Moacyr

Seu romance de estréia, com cunho autobiográfico, A guerra no Bom Fim, (1972) relembra a vida de um menino que vivia com a família na Porto Alegre dos anos 1940, no bairro Bom Fim, como os imigrantes judeus vindos do Leste Europeu. Ao mesmo tempo em que ia aprendendo as coisas da vida nas ruas do bairro, também iam chegando as notícias angustiantes da 2ª Guerra Mundial, onde a maioria havia deixado parentes e amigos.

Os voluntários (1979) reúne como personagens um grupo quixotesco que busca o inatingível. E sua incrível armada está metida numa empreitada desastrada para levar um moribundo a Israel. O objetivo da viagem é permitir ao moribundo conhecer a cidade de Jerusalém antes de falecer. Mas no fundo a história reproduz o conflito do Oriente Médio sob a ótica da Rua Voluntários da Pátria, centro comercial de Porto Alegre.

Em A estranha nação de Rafael Mendes (1983),conta a tumultuada história dos cristãos-novos vindos ao Brasil através dos tempos, e n’O ciclo das águas (1975), Moacyr Scliar tem a coragem de abordar pela primeira vez um assunto tabu na comunidade judaica, até então: trata-se da história das “polacas”, meninas judias trazidas da Europa sob vários pretextos pela máfia judaica, Tzvi Migdal, para, na verdade, serem forçadas a se prostituir nos cabarés e nos bordéis da América, terra esta que constituía o sonho dourado das comunidades pobres do Leste Europeu.

O exército de um homem só (1973) é um preito ao tio Henrique, que na juventude fôra o único propagandista do projeto stalinista de transformar a região autônoma do Birobidjan (União Soviética), num lar nacional dos judeus. Mas, num belo texto publicado no Zero Hora de 2 de junho de 1990*, Moacyr Scliar afirma que entre os que fundaram o Clube de Cultura de Porto Alegre “se destacava a figura lendária de Henrique Scliar, meu tio. O tio Henrique, como todos o conheciam, construiu o clube com suas mãos. Literalmente: muitas vezes o vi no meio dos operários, carregando tábuas ou baldes de cimento. E o fazia, em primeiro lugar, pela fé que depositava no empreendimento; depois, pela veneração com que os velhos militantes encaravam o trabalho dos obreiros; e por último, porque cultura era sua vida. Cultura foi, numa época, a religião da esquerda. O Clube de Cultura representava um capítulo da longa e tormentosa história das relações entre esquerda e judaísmo.

Uma história que começou cheia de esperanças – a Revolução Russa prometia aos judeus uma completa emancipação – entrou num período sombrio com o stalinismo, e chega agora a uma fase indefinida, em que a tolerância da Perestroika convive com o velho antissemitismo eslavo.

A União Soviética emergia da 2ª Guerra como a força que havia derrotado os nazistas, e os crimes de Stalin não haviam sido divulgados. O fim do sonho comunista foi um golpe, mas o sonho que ela representava permanece vivo.

Em outro depoimento, Moacyr Scliar, mesmo que de forma generalizante, ao comentar o grupo progressista gaúcho do qual fazia parte seu tio Henrique, entende que a perspectiva de militância de grandes parcelas judaicas europeias dentro de ideais socialistas era feita “não da maneira maquiavélica que daria origem ao stalinismo, mas à luz de uma tradição ética que, vinda dos profetas bíblicos, pode ser ainda detectada na obra do jovem Marx”.

É bem provável que esta seja a fonte dos livros que o autor escreveu sobre ética judaica, entre os quais se destaca o premiado O centauro no jardim. Uma narrativa ao mesmo tempo realista e fantástica, onde o protagonista busca a verdadeira natureza do ser humano e sua luta contra a alienação.

Mas o autor não esquece a temática brasileira representada por Uma história farroupilha (2004), em que o mais longo conflito interno da nossa história serve de palco para a conquista e colonização de áreas ainda pouco exploradas do território gaúcho, com ênfase na decisiva contribuição dos povos imigrantes para a riqueza cultural e sócio-econômica do Brasil.

Em Mês de cães danados (1977) narra a saga de um estancieiro dos pampas cuja vida atribulada o leva à sarjeta de Porto Alegre. O pano de fundo são os dias tensos da renúncia do presidente Jânio Quadros, a crise institucional instalada e o papel de Leonel Brizola nos dias que antecedem a posse de João Goulart na presidência.

Os vendilhões do Templo (2006) tem início com a parábola cristã da Antiguidade que trata das relações entre crença e poder, interesses e ideais. Mas de forma emblemática a história culmina no Brasil dos primeiros anos do século 21. Embora seja denunciada a corrupção numa pequena cidade gaúcha, o livro vem à tona em tempos de “mensalão”.

A majestade do Xingu (1997) talvez seja a síntese de tudo que tocava mais de perto o coração de Scliar. É uma homenagem a Noel Nutels, imigrante judeu, grande sanitarista, vinculado ao PCB, que consagrou sua vida a cuidar dos indígenas brasileiros.

Mas a grande surpresa é seu último romance, de temática genuinamente brasileira, Eu vos abraço, milhões (2010). O texto envolve, direta e indiretamente, personagens e delírios da cultura política comunista no Brasil; um deles em especial: Astrojildo Pereira. Apesar disso, o livro é construído à maneira da maioria das obras de escritores judeus que se expressavam em ídish, constituídas de narrativas centradas num único personagem, na forma de monólogos, sendo Scholem Aleichem o grande mestre do gênero. Têvie, o leiteiro é composto por vários contos concebidos como monólogos, em que o personagem Têvie se dirige a Scholem Aleichem para lhe narrar todas as suas atribulações ao longo da vida, e se inicia com uma carta do personagem ao escritor. E o personagem de Scliar escreve uma carta para o neto relatando episódios de sua longa vida num monólogo.

Levando-se em conta que Scholem Aleichem escreveu um conto chamado Se eu fosse Rothschild e Scliar tem um conto com o mesmo nome, o humor no meio da desgraça dos seus personagens preferidos, os gauche da vida, vislumbra-se a tradição do conto judaico na literatura brasileira.

 

Dina Lida Kinoshita, professora doutora, é membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e do Conselho da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância – IEA USP.

[ Publicado no Boletim Asa nº 130 – mai-jun/2002 ]

 

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