Reflexões às vésperas da celebração do Seder de Pessach em 2007
A saída do Egito, há mais de 3200 anos atrás, assinala o nascimento do povo de Israel que rompeu o jugo de escravidão e conquistou sua liberdade, feito comemorado na noite de Pessach, com a leitura da Hagada; Pela primeira vez na História da humanidade, os escravos se levantaram contra seus opressores. Mas, quais foram os fugitivos – fundadores do povo? A Bíblia fala de 70 pessoas da tribo de Jacó que vieram instalar-se no Egito, quando a seca e a fome assolaram a terra de Canaã. Vieram para ficar por pouco tempo, mas a estadia prolongou-se por 400 anos. Quando saíram à meia noite, com a lua cheia do mês de Nissan, sempre segundo a Bíblia, eram 600.000, mas não somente os descendentes diretos do patriarca Jacó. Uma massa de escravos de outras origens e etnias – a Bíblia fala de “Érev Rav”, uma grande mistura -juntou-se aos hebreus na travessia do mar e na conquista da terra de Canaã, o que contradiz as teorias sobre a “raça judia”, divulgadas no século XIX por Gobineau e Chamberlain e, no século XX, serviram de pretexto para as perseguições nazistas e o Holocausto.
No pós-guerra, a UNESCO patrocinou vários estudos científicos que concluíram que o conceito de raça não encontrava amparo nas evidências empíricas trazidas à luz por antropólogos, etnógrafos e biólogos. A descoberta mais recente do DNA não alterou os fatos da miscigenação ininterrupta dos povos, em conseqüência de migrações, guerras, conquistas e sucessivas ondas de aculturação e assimilação.
Qual é o significado histórico da saída do Egito? O levante dos escravos indubitavelmente legitimou as lutas posteriores e atuais contra a opressão e pelos Direitos Humanos. Mais de mil anos depois, Spártaco liderou a revolta dos escravos na Roma imperial e, novamente, mais de mil anos se passaram até as lutas dos camponeses na França, Alemanha e outros países europeus, brutalmente reprimidas pelos senhores feudais e o clero, inclusive o reformador Martin Lutero.
Na Idade Moderna, os novos escravos do sistema industrial foram massacrados quando ousaram reivindicar condições de trabalho e salários mais decentes. Uma visão superficial, típica dos conservadores de todas as épocas, concluirá que as lutas foram em vão, nada teria mudado. Na realidade, elas forçaram as elites a conceder reformas e direitos econômicos, sociais e políticos em escala e profundidade inéditas na História.
Se nós rejubilamos e entoamos cantos de louvor ao passado, não podemos deixar de manifestar nossa tristeza e revolta pela situação degradante vivida por centenas de milhões de pessoas, no presente.
Por outro lado, a Hagada – o relato ritual da saída do Egito – nos ensina que não devemos desanimar e cumpre-nos encarar o futuro com esperança. Por isso, ela nos ensina que “em todas as gerações, devemos considerar como se fossemos nós os libertados do Egito, ou seja, devemos construir pontes para assegurar a travessia do mar de todos os seres humanos.
O relato do êxodo do Egito encerra várias mensagens de profundo conteúdo humanístico:
Conta o Midrash que na hora da travessia do Mar Vermelho e do desastre das tropas egípcias que se afogaram na perseguição aos hebreus, os anjos romperam em gritos de júbilo, Então, o Eterno mandou-os calar-se com as seguintes palavras: “minhas criaturas se afogam no mar e vocês entoam cantos”! Uma lição válida para os dias de hoje quando, apesar de conflitos sangrentos que se espalham pelo globo nunca devemos esquecer o valor e o respeito que devemos a cada vida humana.
Cumpre, também, recordar o Levante do Gueto de Varsóvia, na Páscoa de 1943, quando uns punhados de jovens, cercados e dizimados pelas tropas nazistas, com precárias armas enfrentaram a máquina de guerra nazista. Sua luta e resistência durante algumas semanas, enquanto as tropas aliadas e a resistência polonesa permaneceram passivas, deixaram uma mensagem eterna para todos que lutaram e continuam a lutar contra a opressão, enquanto existirem guetos e genocídios, pelo mundo afora.
A terceira mensagem de Pessach nos remete à visão, várias vezes repetidas durante a leitura da Hagada, da redenção, da aproximação da era de justiça e paz, com a vinda do Messias.
A visão escatológica da redenção e salvação aparece no canto que relata os momentos milagrosos na história do povo de Israel (“Vaiehi bahatzi halaila”), todos ocorridos à meia noite, e que termina com a estrofe “aproxima-se o dia que não é dia nem noite. A era messiânica é recordada na Hagada quando fala do profeta Elias que, segundo a tradição, visita as casas, onde se prepara na mesa um copo cheio de vinho para acolhe-lo. Lembramos, também, as palavras de Maimonides,…” acredito com toda minha fé na vinda do Messias, mesmo que ele demore “…
Nas orações de Pessach é lido também o “Shir Hashirim”, o cântico dos cânticos cuja autoria é atribuída ao rei Salomão. Durante gerações, os estudiosos estranharam a inclusão desta poesia na liturgia e polemizaram sobre seu possível significado. Manès Sperber, em seu livro “E a sarça virou cinzas” relata as memórias de um militante revolucionário perseguido pelos nazistas e stalinistas, entre as duas grandes guerras, na Europa Central. Em sua infância estudara no Heder, a escola religiosa. E éis, que ele lembra o velho rabino, de barba branca gotejando por acabar de sair do banho ritual, contando aos meninos o verdadeiro significado do canto. ….A moça que erra pelas ruas da cidade indagando aos guardas sobre o paradeiro de seu bem-amado, não é outra do que o povo de Israel à procura de Deus. Os guardas que dela caçoam e a maltratam, são os povos do mundo pelos quais Israel errou durante o longo período da Diáspora e que não conhecem os mistérios dos caminhos divinos. A longa noite de escuridão e trevas é o período do exílio, no fim do qual surgirá a redenção, como um raio de luz que rompe as trevas.
Jean Paul Sartre ensinou que os seres humanos nascem para serem livres. Mas, liberdade significa também responsabilidade. Somos responsáveis pelo que fazemos e pelo que deixamos de fazer a fim de assegurar a liberdade de todos, indistintamente da religião, cor, genro, idade, posição social ou profissional. Quem melhor formulou o problema do “outro” foi Martin Buber em seu livro “EU e TU”, no qual postula a impossibilidade de se alcançar a plenitude da existência enquanto ao “outro” for negada a condição de sujeito e parceiro da História, em vez de trata-lo como mero objeto.
No encerramento da cerimônia, entoa-se o último canto, aparentemente introduzido para manter as crianças acordadas até o fim, pois são elas que cantam e recitam as desventuras de nosso mundo. É o canto do “Had Gadia” – um carneirinho que meu pai comprou por duas moedas e que foi mordido pelo gato, que foi mordido pelo cão, punido com a vara que foi queimada, e o fogo foi extinto pela água, bebida pelo boi, abatido pelo açougueiro, castigado pelo anjo da morte, que, finalmente, foi recolhido pelo Eterno, senhor do universo, assim restabelecendo-se a justiça no mundo.
A Hagada relata as dez pragas que acometeram o Egito o que no leva a refletir sobre as pragas que hoje envenenam a nossa existência: a poluição das águas, a contaminação irrecuperável dos solos e dos lençóis freáticos e a intoxicação permanente do ar que respiramos que constituem em seu conjunto uma ameaça real e crescente de extinção da espécie humana, mesmo sem um inverno nuclear.
Esta reflexão nos leva a questionar o destino e o significado da vida, lembrando as palavras de Albert Einstein que “Deus não joga dados com o universo”. Outro cientista destacado, Amílcar O. Herrera que foi diretor do Instituto Bariloche, afirmou com base em pesquisas geológicas e astronômicas, que o universo não poderia ser criação do acaso, O sentido da criação e da própria existência humana estaria na missão e na busca permanente para difundir a inteligência através do cosmos. Assim, apreendemos o sentido mais profundo da injunção da Hagadá. ”Em todas as gerações cumpre-nos relatar acerca da saída do Egito e da busca da liberdade e discutir seu significado, a fim de assumirmos plenamente a nossa missão de indivíduos atuantes e responsáveis”. Reafirmamos as raízes de nossa identidade cultural e, proclamando nossa fé na vinda de uma era de paz e entendimento entre os povos, procuramos construir os elos entre as gerações, em busca de um futuro melhor.
Henrique Rattner, membro dos Amigos Brasileiros do PAZ AGORA e da ABDL, é Professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA/USP); e na pós-graduação no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
[Publicado na REA – Revista Espaço Acadêmico – www.espacoacademico.com.br em abril de 2007]